Gosto de Sangue
de J. J. Souza
Estive em Januária, no
norte de Minas, para rever amigos, o local é um arraialzinho naquela
cidade, o distrito do Tijuco. Lugar agradável de pessoas agradáveis, porém faz
um calor infernal, sem dúvida nenhuma, em horário de pico a temperatura deve
ter batido uns quarenta graus, por baixo. Nada que uma boa cerveja gelada e um
bate-papo gostoso na praça debaixo de um pequizeiro centenário não refresque.
Foi em um desses
bate-papo que conheci um vaqueiro por nome Antônio Cipriano mais conhecido como
Marimbondo. Sujeito boa prosa, falastrão, contador de casos, muito religioso,
daqueles sujeitos que é difícil se apartar deles, tamanha a empatia. Marimbondo
não é muito chegado a cerveja, mas de cachaça, “valei-me nossa Senhora”, o
cabra toma é para lá de litro.
Indaguei a ele sobre
aquele apelido “Marimbondo” e olha que em todo aquele vilarejo ele era muito do
conhecido, mas se procurasse por “Antônio Cipriano” ninguém sabia quem era,
ninguém dava notícias.
Ele riu, gargalhou
bastante, tomou mais umas duas doses de cachaça e disse:
- “Quer mesmo saber?
”
E continuou sorrindo,
mostrando lindos dentes bem cuidados, onde um deles tinha sido obturado com um
pedaço de ouro.
Eu mais que rapidamente
respondi:
- “Ora! Claro que quero,
conta aí vai! ”
Ele começou a história
do apelido falando bem baixinho, parecia que não queria que ninguém escutasse e
soubesse o que todo mundo já sabia. Aquela história já correra chão por aquelas
bandas.
“Eu era jovem, estava
aprendendo a profissão de vaqueiro, tinha lá uns dezessete anos, e um dos bois
havia se desgarrado da manada e entrado para dentro da mata, João Capataz
mandou justo eu trazê-lo de volta. Me embrenhei mata adentro atrás do fujão.
Caça daqui, procura dali, avistei o danado e fui atrás fazendo com que ele
voltasse. Para meu azar, ele, o boi fujão, passou em meio há uns arbustos e eu
fui atrás, ao passar não percebi uma casa de marimbondos pendurada no galho de
uma das árvores e bati forte com minha cabeça nela, quando percebi, vi uma nuvem
preta atrás de mim e sai em disparada ainda montado no cavalo e gritando,
marimbondo, marimbondo e os outros vaqueiros, alguns mais experientes, caíram
na gargalhada e começaram a gritar, corre marimbondo, corre marimbondo. A
partir daquele dia todos passaram a me chamar de Marimbondo. Foi aí que ganhei
esse apelido.
Sorri demais imaginando
a cena de “Marimbondo” em cima do cavalo correndo dos marimbondos e perguntei
na maior gargalhada:
- “Mas... eles não te
picaram não? ”
- “Minha Nossa Senhora,
foi tanta picada que precisei de mais de uma semana para me recuperar, se
tivesse algum problema tinha morrido, tenho marcas até hoje. ” Respondeu.
Continuamos a beber e a
conversar. Marimbondo sempre tinha um caso para contar e sempre com muita
alegria. Contou sobre o dente de ouro. Segundo ele, o ouro foi presente de um
padre garimpeiro que ele salvara da queda de um penhasco, que, com certeza, se não fosse
por ele teria morrido. O padre muito agradecido lhe deu aquela porção de ouro,
que foi benzida e consagrada por um bispo, ouro que ele havia conseguido em um
garimpo lá pelas bandas de Riacho dos Machados em Porteirinha e o recomendou
que nunca se desfizesse-se dele e para isso não acontecer colocou a
obturação.
Nisso chegou um outro
peão amigo do pessoal e passou a prestar atenção na prosa de Marimbondo, até
que em determinado momento ele virou para ele e disse:
- “ O Marimbondo'' conta
aquela história do vaqueiro fantasma. ”
Marimbondo mudou
completamente. Do sorriso largo, a cara fechada.
– “Quero falar disso
não”. Respondeu.
Mesmo com a insistência
do vaqueiro Marimbondo foi taxativo.
- “Quero falar disso
não! ”
Mas eu que sou muito
curioso e gosto de história, não deixei por menos. A insistência foi quase
unânime.
- “Conta Sô! Eu gostaria
muito de ouvir essa história, está com medo de que? ”
- “Medo de nada não”!
Respondeu.
- “Então conta”.
Os olhos de Marimbondo
se arregalaram. Senti que tinha algo diferente acontecendo. Apesar do calor que
fazia, Marimbondo começou a tremer como se estivesse com muito frio. Dessa vez
ao invés de uma dose de cachaça, encheu o copo até na risca e virou goela abaixo
de uma só vez. Parou mais um instante deixando a cachaça assentar. Se remexeu
na cadeira e disse:
- “ Isso não é lenda
igual esse povo falador conta, isso é caso real que eu vivi”.
- “Eu sempre participei
de rodeios e vaquejadas, participava de todas as competições principalmente de
derrubada de boi e sempre ganhei. Nunca encontrei vaqueiro que fizesse frente,
até começar a entender tudo naquele dia”.
Marimbondo parou um
pouco, ficou meio pensativo, enfiou a mão no bolso, como se fosse retirar algo e
continuou.
“Nessas competições por
muitos anos fui imbatível, devido a minha coragem. Fui convidado a participar
de uma competição lá pelas bandas do Goiás, na divisa com Minas Gerais. Fui, e
já dava como certa minha vitória. Era mês de agosto e as noites eram claras e
estreladas e não muito frias apesar do vento, me lembro bem pois na maioria
delas dormi ao relento junto com outros vaqueiros.
Esse tipo de competição
a gente faz em dupla, você pode derrubar o boi pelo rabo ou pelo pescoço
depende da coragem do vaqueiro. Aí, uma dupla vai eliminando a outra. Eu já
havia vencido umas cinco duplas, com vaqueiros daqueles bons, nas noites
anteriores. Tudo pronto para a última noite de competição. Noite estranha,
estava muito mais escuro, o céu mais estrelado, eu não consegui ver a lua.
Senti uma vibração diferente, tinha algo errado, uma energia anormal, negativa.
Na boca, gosto de sangue, como se estivesse acabado de tomar um copo. Você sabe
né? O gosto de sangue a gente não esquece. Naquele momento passei a sentir
raiva, o ódio invadiu meu coração, onde havia amor e compaixão só danação
agora. No fundo eu lutava contra, esse não sou eu. Sou sujeito bom, temente a
Deus. Meus pensamentos fugiram quando ouvi aquela voz tenebrosa sussurrar no
meu ouvido:
-“Não adianta lutar,
esse é você, escondido no seu íntimo!
De repente surge um ser
horripilante, que se escondia nas sombras, cuja fisionomia não consigo
descrever. Se postou bem diante de mim, seu olhar fixo nos meus me mostrou quem
eu era. Naquele momento eu era um vaqueiro velho, esquelético, montado num
cavalo também velho e fraco, onde se via só pele e osso, olhos fundos, parecia
não comer a anos. O velho, que naquele momento parecia ser eu, tinha o corpo
esguio, esquelético, suas pernas quase encostavam no chão de cima do
cavalo, vestia trapos de pano com peles surradas por cima. Quando levantei meu
rosto e tornei a mirar os olhos dele, uma vida passou por mim, percebi o porquê
de tantas vitórias em rodeios passados, era influenciado. Vi quantas
atrocidades eu poderia ter cometido e como aquilo me alegrava. Tentava lutar
contra, impossível. Minha irracionalidade falava mais alto.
Naquele momento ao meu
lado estava meu parceiro. Ele se virou para mim e disse:
– “É você o tal campeão,
né? O que acha que sempre vence sozinho. Vou te ajudar a vencer agora. Essa
coroa de rei das vaquejadas você terá que dividir comigo”.
“Fiquei pensativo por um
momento. Por que ele não se assustou? ” Havia um monstro bem ali, à sua frente.
Olhei para ele com tanto ódio que consegui sentir o cheiro do sangue exalar de
seu corpo. Me vi com os dentes cravados em sua carne suculenta e macia, cheguei
a sentir o gosto de sangue na boca novamente, seu coração pulsava em minha
mão.
Um tiro! O boi partiu em
disparada. O medo me consumia. Eu realmente estava preso naquele corpo nojento.
O velho esporeou o cavalo, que saiu a galope, com um só golpe derrubou o boi,
matando o coitado do animal, quase arrancando-lhe a cabeça, que caiu exatamente
onde se somaria mais pontos. Quando o boi é derrubado dentro da faixa própria
demarcada com as quatro patas para o ar o juiz grita “valeu boi”, esta foi a
única vez que se ouviu tal grito na competição. Vencemos aquela com uma
tremenda facilidade. Muitas palmas, o público foi ao delírio. Por um instante olhei
e vi vários corpos, mutilados, animais e seres humanos despedaçados, me vi
saboreando carne e sangue, me regozijando com aquele espetáculo de horror. Quanta violência! Havia uma legião de
demônios e todos estavam aplaudindo de pé. O som dos gritos e das palmas me
tiraram daquele transe. Quando finalmente voltei eles haviam desaparecido, o
velho não deixou vestígio de sua passagem a não ser pelo boi morto e meu
medo. Tudo voltará ao normal.
Passei um longo período
para me recuperar de tudo o que aconteceu. Ainda não sei o que de fato houve.
Sei que de lá para cá não participei mais de nenhuma competição. Por medo de
realmente ser aquela coisa ou um dia me tornar.
Um tempo depois fiquei
sabendo de uma lenda muito parecida no nordeste do país e algum interior do
Brasil, principalmente nas localidades que tem fortes tradições no Ciclo do
Gado. Ela é contada por muitos vaqueiros em lugares diferentes, onde o velho
vaqueiro sempre aparece para participar das competições de derrubada de boi,
mata-os, deixando sempre um rastro de sangue e medo.
Ele sempre é descrito como um vaqueiro velho, malvestido, com um cavalo fraco, um pangaré, participa e ganha as competições e quando alguém procura por ele para saber quem é ou de onde veio, ele acaba sumindo sem deixar nenhuma pista. Vence, mas não leva o prêmio.
“Não gosto de relembrar essa história, ainda hoje quando me lembro sinto como se aquele velho estivesse aqui, ao meu lado. Parece próximo, sinto calafrio na alma, gosto de sangue na boca, acho que foi o próprio demônio que esteve ali comigo, ou que eu mesmo era o próprio deus do mal. Nunca mais fui o mesmo”.
“Às vezes penso que o amuleto preso em meu dente tenha me salvo. O homem é o juiz de seu destino ele pode aliviar seu suplício ou prolongá-lo por tempo indefinido. O destino não é uma questão de sorte, e sim uma questão de fé”.
Marimbondo interrompeu a narrativa e fez o sinal da cruz
benzendo-se. Continuei com os olhos e os ouvidos arregalados na direção dele e
vi que do bolso ele tirou um terço e uma medalhinha de São Raimundo Nonato dos
Mulundus, que é o padroeiro dos vaqueiros e a apertava com força começando uma
oração. Tomou mais um dedo em pé de cachaça e saiu calado sem se despedir,
ainda repetindo a oração, montou em seu cavalo e partiu a galope, provavelmente
rumo a fazenda onde trabalha; mas antes passou pela igreja que fica ali no
centro da praça. A história do vaqueiro Marimbondo me impactou. Voltei ao
distrito do Tijuco outras vezes na esperança de reencontrá-lo; mas infelizmente
nunca mais tive notícias daquele vaqueiro alegre de sorriso largo.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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