A Viagem de Trem
de Sonia Re Rocha Rodrigues
Houve um tempo em que os
poetas encantavam as pessoas com suas alegorias, os trovadores declamavam e
toda gente aguardava os jornais de domingo para ler os versos escolhidos da
semana.
Nesse clima criou-se Cecília, rica por nascimento e com
poesia na veia. Ela formou-se professora por ser a faculdade possível, casou-se
por amor com o pretendente escolhido pelos pais, sem que na frase haja alguma
contradição - como filha obediente, ela amaria o noivo que lhe apresentassem.
Assim seguiu sua vida, previsível, cristã, ordenada, até o dia da fatídica
viagem de trem.
Cecília era uma ávida leitora,
mas sua estreia como autora aconteceu certa noite em que o filho sofria de
cólicas. Na vigília que se seguiu, os versos brotaram de sua alma. Ela acolheu,
curiosa, aquela estranha invasão de rimas em seus pensamentos, e nunca mais
parou de escrever.
Apesar da oposição do marido, publicou suas trovas em
todos os jornais e revistas que sabia aceitarem trovas e sonetos. Depois de
algum tempo, eram os editores que a perseguiam, pois, os leitores queriam mais.
Publicou um primeiro livro, depois um segundo, recebeu um primeiro prêmio,
seguido por um segundo, um terceiro e muitos outros. Era a fama não procurada,
embora merecida.
Um belo dia recebeu um comunicado - o poeta Inácio estava
a fundar uma associação nacional de trovadores e a convidava - melhor, ele a
intimava - a ser a vice-presidente. Muita correspondência foi trocada entre
eles, até ser decidido tudo, em todos os detalhes. A solenidade de abertura
seria no Rio de Janeiro.
A poetisa mal cabia em si de contente.
Cecília despediu-se do marido
e do filho.
- Voltarei no domingo, nem dará tempo de vocês sentirem
minha falta.
O calor do dia avermelhava as faces risonhas da jovem
mulher. Ela acomodou sua valise no banco traseiro do táxi. Ah, como ela se
sentia orgulhosa!
Vaidade das
vaidades, tudo é vaidade, sussurrou para si mesma a metade católica de sua
personalidade, mas já que há tempo para tudo, há tempo também para usufruir das
pequenas alegrias da vida, retrucou sua teimosa outra parte mundana. Ela se
divertia com esses pequenos diálogos mentais, a um tempo inocentes e
reveladores.
Chegando ao hotel, ela vestiu o seu pretinho básico para
a festa daquela noite e foi procurar a amiga paulista Irene. Essa escritora ela
conhecia pessoalmente. Rindo e tagarelando, as duas amigas foram ao encontro de
Inácio.
- Ah, cá vejo eu duas rosas! Seu marido também veio, Cecília?
- Impossível. Jurandir não pode deixar o fórum.
Inácio demorou-se a olhar a
colega.
- Cecília, você é muito mais bonita do que sonhei.
Garanto que é uma mulher feliz. Só as pessoas genuinamente felizes têm este
olhar entusiasmado e sonhador.
Inácio colocou-se no meio das
duas mulheres e de braços dados, dirigiram-se ao salão.
- Cecília vai sentar à minha
direita, como manda o protocolo. Irene, acho que a coloquei entre Luís Filipe e
Gabriela Gouveia.
- Mais tarde conversaremos
mais, Cecília - afirmou Irene - Afinal, teremos o sábado todo ocupado com a
programação da associação e domingo… a que horas parte seu ônibus?
- Ônibus, não. Trem. Reservei lugar no trem das duas
horas, Irene, para poder almoçar primeiro, afinal, são muitas horas de viagem.
- Iremos juntos, então, também
reservei meu lugar no trem das duas. - exclamou Inácio.
- Que bom! Poderemos falar à
vontade, teremos muitos assuntos pelos próximos meses para nos ocuparmos. -
Cecília abriu um sorriso largo e demorou-se a contemplar o belo rosto de
Inácio. Um rosto que lembrava os querubins barrocos de certas igrejas.
- Venha comigo, Cecília -
disse Irene -você precisa conhecer algumas pessoas…Com licença, Inácio.
As duas amigas se misturaram
então aos mais de trinta poetas que pipocavam por todo canto, trocando risos,
pilhérias, jogos de palavras e muita animação.
Durante o jantar, Inácio, ao lado de Cecília, fez brindes
à sociedade poética que ali nascia, e terminou com um discurso oficial recheado
de trovas.
Na manhã seguinte, Cecília
atendeu o telefone. Certamente era o marido. Sua voz entediada logo mudou para
um tom mais alegre e positivo, ao escutar a voz alegre do outro lado do fio:
- Minha querida amiga, é cedo para o café, mas tenho
assuntos importantes para decidir e sei que você acorda cedo. Estou no saguão do hotel.
- Dê-me dez minutos.
Ela desceu ligeira, o coração disparado, as faces
coradas, bem-disposta.
- Bom dia! - ele a segurou pelos ombros e deu-lhe dois
beijos nas faces - Que achas de irmos ao jardim?
-. Vamos, então, procurar o cenário perfeito para
conversarmos sobre poesia.
- O assunto é espinhoso, porém. Conheces o Mendes? Quero
dizer, pessoalmente?
- Ernesto Mendes? Estudamos juntos dos dez aos doze,
quando eu morava em Niterói.
- Eu pensei que…
- Sim, eu estudei em um desses
colégios tradicionais “só para moças”. Esclarecendo: Ernesto e eu estudamos
piano. No mesmo conservatório. Ele era meio que vizinho, íamos e vínhamos
juntos das aulas com frequência.
- Ótimo, folgo em saber. Pois esse sujeito me escreve,
fazendo oposição à criação da Associação dos Trovadores, porque ele não foi
convidado, imagine!
- Como é que é? Eu nem sabia que Ernesto é trovador.
- Dos ruins. Você sabe, há trovadores e escrivinhadores
de trovas. Tudo que ele escreve é rima de pé quebrado...
- Mande-o a um ortopedista. - ela sugeriu, rindo.
- Telefone a ele, por favor.
- Como? Eu nunca mais o vi…Nem deve se lembrar de mim.
- Pois ele citou seu nome, como referência, imagine...o
sujeito é político, chefe da câmara dos vereadores, não quero ter esse tipo de
oposição logo no início da associação.
- Ele é político, então? Então será facílimo.
- O que minha interessante colega tem em mente?
- Ele quer
trabalho? Vamos oferecer a ele.
Haviam chegado a um caramanchão e ele tocou de leve o
cotovelo de Cecília para encaminhá-la para um banco e convidá-la a sentar. Ela
sentiu um choque percorrer-lhe o braço e espalhar-se em ondas de calor pernas
abaixo.
- Oh, é cruel, mas penso que ainda vamos ganhar um
aliado.
- Fale, Cecília.
O braço dele estendeu-se por detrás dela, apoiado no
encosto do banco. Ele não a estava tocando, mas o gesto permitiu que ele se
aproximasse. Ela sentia o hálito dele, fresco e agradável. Ela inspirou
profundamente antes de começar a explicar sua ideia:
- Veja bem, eu telefono a ele, finjo que nada sei sobre a
carta… aliás, quando essa carta chegou?
- Ontem. Chegou muita correspondência, ainda não tive
tempo de ler todas as cartas que chegaram para nós.
- Perfeito. Pois então faça de conta que não leu. Eu digo
a ele que estou telefonando porque sei que ele aprecia arte e pode ser de
grande ajuda para nós da diretoria.
- Como…
- Organizando os Jogos Florais
de Niterói. Os primeiros jogos da Associação. Claro, como ele estará na
organização não poderá concorrer. Assim, ele só ganhará a visibilidade, pois é
o que todo político deseja. Vou telefonar às dez, no intervalo da manhã e
deixar meu recado.
A mão dele apertou a dela em agradecimento.
- Ah, maravilhosa amiga! Que ideia brilhante! Além do
talento poético, tem habilidades políticas. Que preciosa mulher.
Ela correspondeu ao aperto de mão com alegria e
levantou-se bruscamente.
- Creio ter visto um lago com patos ali adiante,
Inácio. Vamos até lá?
- Há um lago com patos e
pedalinhos, sim, já verifiquei. Dá para darmos um passeio. Ainda faltam trinta
minutos para abrirem o salão do café.
- Pedalinhos! - ela exclamou - Isso me leva de volta à
adolescência. Lá em Guarujá há pedalinhos para alugar na praia, eu ia passear
toda semana com meu grupo de amigos durante as férias de verão.
Lembrou-se de que conhecera o marido em um desses
passeios. Ela ficara de ligar para ele naquela manhã, mas esquecera-se. Ligaria
na hora do almoço, depois de ter falado com o tal Ernesto, decidiu-se. Afinal,
não poderia perder um passeio de pedalinhos no lago.
- Meus filhos adoram pedalinhos. Certa vez, estávamos de
viagem… - as lembranças dele fluíam como uma canção.
Ela estava consciente da brisa matinal, do perfume das
flores, da tranquilidade das águas, das amigas observando pela janela…
- Bom dia - acenou Cecília com entusiasmo.
Ele também olhou para o hotel e acenou com energia para
alguns rostos curiosos, afirmando:
- Ótimo exercício para começar o dia.
Ela o chamou de volta para a conversa:
- Você estava me contando de seus filhos.
- Manuelzinho, o mais velho…
Quinze minutos mais tarde, os dois entraram no café, de
braços dados, a gargalhar, em evidente cumplicidade.
Aproximaram-se da mesa dos trovadores.
- Seu marido ligou, Cecília, e deixou um recado para você
na recepção.
- Claro que não dissemos onde você estava.
- Nem com quem.
- Sabemos como Jurandir é ciumento.
Risos.
- Cadê sua esposa, Inácio? Gosto muito dela. Ela sempre o
acompanha.
- Eu pensei que havia dito ontem que Maria Rosa está
organizando um concurso público de professores que está acontecendo justamente
nesse fim de semana.
- Porque então você escolheu essa data?
- Porque nessa data estávamos ambos livres. Até
recentemente. O concurso estava programado para quinze dias atrás, mas
aconteceu uma chuvarada torrencial, as estradas inundaram, houve até um
desabamento de terra que bloqueou o acesso à cidade e então a prova foi
cancelada e escolheram uma nova data - justo nesse fim de semana.
- É mesmo, ouvi falar desse desastre.
O tópico da conversa desviou-se e Cecília, intrigada, perguntava-se
porque nunca antes ela havia comido morangos tão saborosos, creme de leite tão
suave e pão tão crocante. Aquela refeição era um deslumbramento de odores e
sabores. “Sou eu”, percebeu ela, “minhas sensações estão à flor da pele, como
uma criança que experimenta pela primeira vez as delícias de estar em férias.”
- Ah, como é bom tirar férias da própria vida! - então
percebeu que havia dito essas palavras em voz alta.
- Sua vida está assim tão difícil, amiga? - perguntou
Irene.
Gaiatamente, Cecília respondeu com uma troca.
Inácio retrucou com outra.
Cecília olhou para o rosto de
Inácio e analisou a sua silhueta. Sem chegar a ser um perfil grego perfeito,
tinha lá suas semelhanças. O nariz, por exemplo, embora a testa não se
encaixasse nos padrões gregos. O conjunto era bonito, talvez ela pudesse mais
tarde desenhar o rosto do poeta de memória. Ela distraiu-se e perdeu uma
acirrada polêmica entre os trovadores, que culminou com Inácio falando algo
sobre sentimentos profundos. Então, Irene provocou, citando uma trova do
próprio Inácio, em que ele dizia ser a trova uma indiscreta, que conta tudo a
todo mundo.
Enquanto muitos na mesa riam a bom rir, Cecília sentiu-se
incomodada com a expressão de Irene.
Inácio também observou Irene
com olhos surpresos.
Nesse momento, a metade
mundana de Cecília sussurrou em seu ouvido alguma coisa sobre o seu sentir mais
profundo e a sua metade católica ordenou-lhe com urgência telefonar ao marido,
e ela, obediente, afastou-se da mesa em direção à recepção.
O sábado passou-se em uma correria. Cecília lembrava-se
bem de ter ficado alguns minutos preciosos bem quieta e risonha ao lado de
Inácio posando para as fotos. Uma felicidade inesperada brotava em seu peito,
como se a fama lhe importasse mais do que gostaria de admitir. Só os dois em
frente à bandeira da Associação. Só os dois de braços dados em frente a um
arranjo de flores. Só os dois exibindo o estatuto assinado em cartório. Os dois
juntos a sorrir no centro de todos os trovadores.
Tudo terminado, despediram-se dos que iriam partir na
manhã de domingo. Poucos ficariam para aproveitar o final do domingo.
Cecília tagarelava sem parar em seu quarto, junto com a
amiga Irene..
- Ah, estou tão animada. Nunca pensei que organizar jogos
florais, escolher juris e telefonar para prefeituras fosse tão empolgante.
Quanto trabalho tenho pela frente. Ah, Irene, a vida que me aguarda daqui para
a frente será diferente e bem mais interessante.
Irene estava estranhamente quieta e não respondeu.
- Bem, despeço-me aqui. Você vai mesmo partir antes do
café?
- Sim, Cecília, e você deveria fazer o mesmo.
- Não, as passagens já estão compradas e eu mereço
descansar um pouquinho mais. O Jurandir dará conta das crianças. O que
digo? Minha mãe é quem dará conta dos
netos. Ele deve ter pedido socorro à sogra, claro. Jurandir estará mesmo
enfiado no meio da papelada burocrática de algum medonho processo.
Irene apertou-lhe as mãos com simpatia.
- As trovas servem de descanso para a jornada diária,
Cecília, e eu estou com saudades daqueles dois capetinhas, os meus gêmeos. Dê
cá um abraço, amiga.
Cecília viu a amiga sair do quarto com um aperto no
peito. Ela suspirou e olhou para o telefone. Deu-lhe vontade de ouvir a voz do
filho, que àquela hora já estaria dormindo. De repente o telefone tocou e ela
atendeu, com a respiração paralisada.
- Cecília, que correria, ficamos todo o sábado juntos e,
no entanto, nem nos falamos, querida.
- Inácio.
- Que tal um passeio de pedalinho antes do café? Caso
esteja disposta, claro, talvez você esteja cansada, meu Deus, que ideia boba a
minha, esqueça.
- Sim, é claro, eu encontro você às seis. No saguão do
hotel. Sabe-se lá quando terei outra oportunidade dessas, não é, quero dizer,
outra oportunidade de andar de pedalinho.
- Durma bem. Bons sonhos.
O ambiente estava colorido de novo, as cores brilhavam
nas rosas do papel de parede e ela até podia sentir o aroma de pinho da loção
de barba de Inácio.
Cecília desceu cedo, quase a correr, desejosa de tomar
sol. Inácio a esperava, com a câmara na mão.
- Quero tirar umas fotos do lago - disse ele.
- Ah, eu não trouxe máquina.
- Não seja por isso, eu tiro.
Depois lhe envio pelo correio. Vamos mesmo nos corresponder e muito, Cecília.
- É mesmo - de repente ela sentiu-se acanhada.
Caminharam vagarosamente pelas alamedas floridas, sem
falar.
Cecília arriscou um comentário neutro:
- O que esperar de nossa associação, quero dizer, nem
todo poeta considera que a trova seja um gênero importante de poesia.
Inácio retrucou:
- Como diz o nosso talentoso
Antonio Augusto de Assis:
Trova é bom para a saúde,
faz amigos, dá prazer.
Talvez até nos ajude
a esquecer de envelhecer…
Sorriram. Chegavam à beira do
lago e Inácio ofereceu a mão à Cecília. Ela pegou-lhe nos dedos, a suspirar, e
ficou silenciosa. Ele também. Os peixes podiam ser vistos abaixo, nas águas
claras. Os pássaros chilreavam num alarido matinal.
Seguiu-se um diálogo todo em
trovas, em que cada um falava a outro sobre seus sentimentos mais preciosos.
Ela começou comentando que uma
trova não consegue traduzir a riqueza dos sentimentos do poeta.
Ela retrucou que quando se
sentia angustiada, a poesia entrava pela janela da alma.
Ele retrucou com outros versos
em que dizia que marcava encontro consigo mesmo na solidão para consolar-se com
as incertezas da vida.
Então ela falou de seus filhos
em uma trova e ele respondeu com outra trova que fizera para seus meninos.
Ela, então, completou:
- Filhos são sempre fontes de inspiração, não é mesmo,
comecei a escrever poesia por conta do meu pequeno, em uma noite de vigília. -
e recitou essa primeira trova.
A manhã havia começado animada e agora estavam ambos
calados.
- Vamos ao café - propôs ele.
Entrando no salão encontraram alguns trovadores
retardatários preparando-se para partir.
Foram saindo um a um, ficaram na mesa apenas Inácio e
Cecília.
Meia hora depois estavam com as contas do hotel quitadas,
o táxi programado para a estação e as malas guardadas em lugar apropriado.
Eles então partiram para um último passeio.
- Você é cristã, Cecília?
- Como você. Por que pergunta?
- Sabe, algumas pessoas me questionaram porque a
Associação é católica. O Albino Franco, por exemplo, parece que alguém andou
comentando sobre Francisco de Assis ser o padroeiro dos trovadores.
- Não é proibido que um cristão seja poeta. A poesia alegra
esse mundo de Deus.
- Seja como for, esse pequeno mal-entendido foi
corrigido, todos são bem-vindos, sejam de qual religião forem.
Cecília então contou:
- Quando eu me casei, apenas lia muito, comecei a
escrever depois. Estranho, não é? A maior parte dos escritores escreve desde
muito cedo. Quando você descobriu sua vocação?
- A de dentista? Ou a de poeta?
- A de poeta, é claro.
- Bem, eu sempre me vi com todas essas imagens, sons e
rimas dentro de mim. Foi quase um choque saber que para algumas pessoas era
diferente. - e prosseguiu, mudando de assunto - Teremos muito trabalho pela
frente, mas com sua ajuda acho que a Associação dará conta.
- Claro que sim. Eu me vejo como uma vencedora. Uma
pessoa que busca soluções.
- Exatamente a parceira que eu preciso nesta empreitada.
Uma pessoa forte que não foge do sucesso.
Estavam de novo serenos e
Inácio começou a falar de sua juventude:
- Conheci minha esposa bem jovem. Para dizer a verdade,
éramos vizinhos. Quando me vi na idade de casar pareceu a coisa certa a fazer.
Quero dizer, pedir a mão dela em casamento. Vivemos felizes até hoje. - disse
ele
- Pois eu nem pensava em me
casar, eu estava muito bem com meus pais, mas as amigas de repente pareceram
estar tomadas por uma epidemia, todas noivando e casando. De repente eu me
senti muito solitária. Eu acho que no fundo eu queria ser mãe.
Ele sorriu com tristeza e
comentou:
- Bem, você não deu nenhuma razão coerente para seu
casamento.
- Não houve razão coerente. Oh, falando assim meu
casamento parece ter sido uma atitude insensata e leviana.
- Todos fazemos isso. A mais importante decisão de uma
vida é tomada assim, nem se sabe ao certo o porquê.
- Voltemos ao hotel, temos de almoçar antes de voltarmos
para casa.
- Lembra o ditado popular “quem pensa não casa, quem casa
não pensa”?
Assim foram discursando, sobre
porque fazemos o que fazemos e se essas razões são mesmo as verdadeiras, se
seguimos a moda, os hormônios, ou a emoção do momento…
O almoço foi alegre. Tomaram um vinho, riram muito e
descobriram que tinham um senso de humor um tanto irreverente e fora do comum.
Daí passaram a fazer desafios.
Um sugeria o tema, o outro criava a trova.
Até o momento em que Cecília
falou de um casal unido pelas afinidades e apartado pela distância.
De repente fez-se silêncio
entre ambos e ficaram muito ocupados em consultar o relógio, pedir a conta e
partir.
No trem, como estivessem cansados, um pouco pelo vinho,
outro tanto pelo calor, quase sem sentir, adormeceram. Inácio escorregou e foi
declinando a cabeça no colo dela. Cecília em algum momento acordou. Estava
debruçada por sobre o ombro dele, tinham as mãos entrelaçadas e tudo lhe pareceu
bastante natural.
Ela tentou sair daquele
abraço, sem acordar o companheiro. A mão dele procurou o ombro dela e
abraçou-a, a suspirar. Ela adormeceu novamente, agradavelmente embalado pelo
calor dos braços dele.
- Cecília - ele murmurou, sacudindo-a de leve. - Cecília,
me desculpe, eu acho que adormeci.
Apenas acordados, retomaram a conversa interrompida.
- Quais os seus autores prediletos?
Três horas depois ainda estavam a trocar ideias sobre
livros e autores e poemas.
A viagem chegava ao fim.
Desembarcaram. Pegaram as malas.
Um tanto agastada pela longa
jornada, a estação pareceu para Cecíli cinzenta e feia. Os cheiros de fumaça,
de pó, de fim de dia, juntos lhe provocavam náusea. A sua pele estava seca, os
cabelos grudentos.
- Cecília.
Inácio a olhava. Fixo. Um olhar que lhe trespassava a
alma. Ela olhou para ele e se deu conta de que era uma despedida.
Então ele a beijou na testa e
exclamou:
- Ah, que Deus nos ajude, querida, o que é que vamos
fazer?
- Inácio.
Ele virou-se e partiu quase a correr, sem olhar para
trás.
Ao redor dela tudo pareceu desaparecer - os trens, as
pessoas, os gritos, os cheiros, as imagens..
Ela ficou plantada na estação, completamente desperta, como se só agora se desse conta das coisas que realmente tinham importância.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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