Dia de Visita
de Valdeci Santana
Enfim, chegou o dia de visitas. Senhor Antenor estava com
a alma transbordando em alegria.
Nem mesmo as entonações daquela manhã que nascera
nublada, vestida com um véu cinzento, afetou seu humor. Era um dia especial e
nada mudaria isso. Portanto, ignorou as nuvens que se adensavam, se opondo ao
sol, ameaçando chuva.
Mais cedo, ele passou naquela mesma floricultura. E nem
foi necessário dizer qual ramalhete levaria. Os atendentes sabiam perfeitamente
quais eram as preferidas de sua amada. Aliás, conheciam cada detalhe dela,
através das tantas vezes em que ele falou de seu grande amor. Tulipas vermelhas
e amarelas.
Barbeou-se e cuidou para que não sobrevivesse nenhum fio
branco naquele rosto que já exibiu a juventude em dias idos. Cantarolou velhas
canções, ou, pelo menos, a parte que se lembrava delas. Caprichou na colônia. A
mesma que usou em vários passeios ao lado de sua amada. Também era o mesmo o
paletó cinza, o sapato preto. E agora, enquanto conferia o nó de sua gravata
diante do espelho, ele repassava cada instante que viveu ao lado dela.
Lembrou-se de quando a conheceu, e de como ela ria de seu embaraço no primeiro
encontro. Um riso leve que cativou sua alma. Lembrou-se do escurinho do cinema.
E de como se esforçou para esgueirar-se para ela e assim desfrutar sua colônia
adocicada. Recordou o brilho que vazava de seus olhos marejados, no primeiro
filme que assistiram juntos. E de como se envergonharam quando, depois de minuciosas
tentativas, suas mãos finalmente se entrelaçaram pela primeira vez. O banco da
praça depois da missa. O cheiro de pipoca. A banda no coreto. Os passarinhos
que revoavam nas copas das árvores. Nada fugia as suas recordações.
Um suspiro invadiu
sua alma, quando relembrou o primeiro beijo. Tantos anos se passaram, quanta
coisa mudou, e mesmo assim, ele jamais se esqueceu daquele momento. E de como
aquele beijo ficou para sempre incrustado em sua alma. É lógico que vieram
outros tantos beijos, alguns até lhe sugaram todas as energias, quando ele
mergulhava no calor de sua amada, mas, aquele primeiro beijo jamais sairia de
sua memória. E assim, como um barquinho que vai mansamente deslizando nas
aguas, se deixando levar pelos embalos das ondas, permitiu-se divagar,
reacendendo lembranças que floresciam obedientes no solo fértil da memória,
trazendo consigo o frescor das sensações colhidas em cada momento.
Viu-se jovem, desfrutando de um corpo atlético,
totalmente diferente daquela atual caricatura amassada. Os braços, com os quais
apertava para si sua amada eram vigorosos. E quanto a ela? Ah como ele se
lembrava de cada detalhe de seu corpo. A pele que o tempo foi acariciando até
amarrota-la era incrivelmente lisa. Os lábios perolados traziam um luzir
especial para aquele rosto bem desenhado. E quanto aos olhos? Os profundos,
porém sutis olhos reluzente, capazes de penetrarem na alma. Olhos carregados de
bondade. As maçãs de seu rosto que coravam com facilidade, os magníficos traços
de suas sobrancelhas, a cintura fina onde qualquer vestido cingia bem.
O velho Antenor colocou os óculos para melhor espreitar a
moldura pendurada na parede. Hoje percebia que devia ter sorrido naquela
ocasião, embora, teve que reconhecer o charme naquela pose séria de estudante.
Já sua doce amada, escancarava um sorriso que não tinha medo de ser exagerado.
Depois, como quem vai estendendo sua existência através de feitos que estão
materializados, segurou um a um, os tantos porta retratos espalhados pela casa.
Os filhos que ele raramente via, abraçados às suas respectivas esposas e
filhos. Naquelas pessoas, senhor Antenor tinha certeza que viveria com sua doce
amada eternamente. Frutos colhidos na imensa árvore que o amor dos dois semeou.
Conferiu o relógio pela centésima vez. E protestou contra
a má vontade do tempo que caminhava lentamente sobre as horas, zombando de sua
ansiedade. Apanhou o chapéu, o guarda chuva e é claro, o ramalhete de tulipas e
saiu.
O alarido do trânsito, os faróis, as luzes nas vitrines,
as praças, a confusão dos odores, os transeuntes concentrados em suas rotinas,
os arranha-céus, de onde alguém, talvez identificasse sua figura solitária
caminhando vagarosamente. Porém, nada, absolutamente nada conseguia puxar para
si a atenção daquele velho. Seus pensamentos eram inteiros miseráveis reféns de
sua senhora.
Parou diante de uma boutique na Paulista, especializada
em artigos para noivas. Seu coração velho saltitou tal como nos tempos idos. Um
turbilhão de lembranças invadiu sua alma cansada, enquanto percorria o olhar
pelos manequins enxovalhados, os adereços matrimoniais e os casais que os
escolhiam. De repente, viu-se no altar daquela velha capelinha, que já não tem
a mesma cor, nem o mesmo padre, mas, ainda está lá, fiel testemunha de seu
matrimônio. Ele estava tão ansioso por ver sua amada como agora. Lembrou-se bem
da canção que o coral entoou e do momento em que sua noiva, vestida no mais
puro branco surgiu para turvar sua alma de frenesi.
Seus dedos velhos e grossos tatearam o bolso do paletó,
até encontrarem um lenço, com o qual tratou de enxugar as lágrimas que lhe
desciam pelo rosto, ondulando nas marcas que a batalha contra o tempo lhe
deixou.
Cruzou com casais enamorados pelas ruas, trocando aqueles
diálogos derramados de meiguices, andando à passos vagarosos, apontando para as
vitrines.
Diante do portão ele hesitou. Tantos anos se passaram e
ele ainda não se acostumou com aquela rotina. Sentia aquele mesmo nervosismo
percorrer sua epiderme, que experimento anos atrás, quando foi pedir sua mão em
casamento.
Se
pudessem, suas pernas velhas sairiam correndo ao encontro de sua amada. Mas, os
sentimentos que ele carregava pesavam como chumbo.
Na recepção, cumprimentou cordialmente uma moça que
colhia ainda os alegres frutos da juventude. Ela retribuiu com um gesto
carinhoso.
-Vou chama-la, senhor Antenor.
No jardim, ele aguardou impaciente uma eternidade. Cada
minuto de demora ardia em sua alma. Conferiu o laço que prendia o ramalhete,
espanou mais uma vez o paletó, conferiu o nó da gravata, limpou as lentes dos
óculos e pigarreou, para que sua voz não falhasse no momento de lhe falar.
Ocorreu-lhe recitar um poema, mas, temia ser atrapalhado pela emoção, portanto,
aboliu a ideia. Não queria embaraços diante de sua amada.
A moça que a acompanhava sussurrou ao seu ouvido. Talvez,
mencionara como ele estava elegante e como ela era uma senhora de sorte. E ela
tratou de abrir um lindo sorriso. Óbvio que sua acompanhante se sentia
agraciada por promover um reencontro tão especial. Como um pai que deixa a
filha diante do altar, a moça estacionou a cadeira de rodas diante do corpo
frágil de Antenor.
Era ainda a sua menina! Mesmo com aquele rosto amarrotado,
onde floresciam pequenas nódoas deixadas pelo tempo, mesmo com aquele prateado
maculando seus cabelos castanhos, agora curtos, mesmo com seu corpo frágil e
trêmulo. Era sua menina.
Estava sorridente
e isso fez com que senhor Antenor se alegrasse. Gostava de vê-la de bom humor.
Seus olhos brilhavam, penetrados no rosto do esposo. Um olhar que mesmo depois
de muitos anos, era capaz de lhe desconsertar.
-Meu amor. –Murmurou ele, derramando-se inteiramente para
ela. Banhando-a com um olhar cheio de cuidados e alegria.
Ela fincou aquele olhar no rosto sorridente de seu amado.
Remexeu na cadeira de rodas, lançou um demorado olhar ao redor. Sua expressão sorridente
foi aos poucos se dissolvendo, ganhando contorno mais interrogativo. O brilho
de seu olhar se apagou e sem prévio aviso, assassinou o lindo sorriso. De
repente, estava indisposta.
-Leve-me daqui. –Disse ela impaciente, para sua
condutora. Sem se importar com o tom áspero modulando a voz.
A jovem enfermeira, vestida de impecável branco, trocou o
sorriso de segundos antes, por uma expressão penosa. Estava confusa e sem
jeito. Foi gentil ao dizer:
-Sinto muito.
Porém, o velho Antenor tratou de amenizar o pesar que
recaiu nos ombros da jovem moça.
-Não há porque se desculpar.
Deus sabe o esforço que ele fazia para manter vivo no
rosto, o sorriso que aquele nó na garganta tentava assassinar. O coração
apertava no peito. As pernas, de tão pesadas, pareciam imersas em água.
Com todo cuidado do mundo, tal qual um cavaleiro medieval
prestes a ser coroado, dobrou o dorso, inclinou-se para sua amada e beijou
suavemente aquele seu rosto amarrotado. Dela, recebeu um olhar vago.
-Senhor Antenor. –Iniciou a jovem sem jeito. Procurando
cada palavra. Com um olhar de piedade. Incomodada pela situação. –Porque o senhor ainda vem, sistematicamente
todo mês? Sabe muito bem que ela não o reconhece mais. O Alzheimer nela é
agudo. Ela não faz ideia de quem seja o senhor.
O olhar do velho pesou. Mas, não deixou de encarar a
moça.
-Ah minha jovem! Ela não sabe mais quem eu sou. Mas, eu sei muito bem quem ela é. E o que ela representa em minha vida. O quanto a amo e o quanto já fui amado por ela. Ela pode ter se esquecido, mas, eu jamais me esquecerei.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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