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Antologia Romance à Vista: 1x05 - Dia de Visita

Conto de Valdeci Santana
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Sinopse: O  conto narra as aflições de um velho solitário, no dia em que vai visitar sua esposa. Enquanto se arruma, ele vai revivendo momentos ao lado dela.


Dia de Visita
de Valdeci Santana

            Enfim, chegou o dia de visitas. Senhor Antenor estava com a alma transbordando em alegria.

            Nem mesmo as entonações daquela manhã que nascera nublada, vestida com um véu cinzento, afetou seu humor. Era um dia especial e nada mudaria isso. Portanto, ignorou as nuvens que se adensavam, se opondo ao sol, ameaçando chuva.

            Mais cedo, ele passou naquela mesma floricultura. E nem foi necessário dizer qual ramalhete levaria. Os atendentes sabiam perfeitamente quais eram as preferidas de sua amada. Aliás, conheciam cada detalhe dela, através das tantas vezes em que ele falou de seu grande amor. Tulipas vermelhas e amarelas.

            Barbeou-se e cuidou para que não sobrevivesse nenhum fio branco naquele rosto que já exibiu a juventude em dias idos. Cantarolou velhas canções, ou, pelo menos, a parte que se lembrava delas. Caprichou na colônia. A mesma que usou em vários passeios ao lado de sua amada. Também era o mesmo o paletó cinza, o sapato preto. E agora, enquanto conferia o nó de sua gravata diante do espelho, ele repassava cada instante que viveu ao lado dela. Lembrou-se de quando a conheceu, e de como ela ria de seu embaraço no primeiro encontro. Um riso leve que cativou sua alma. Lembrou-se do escurinho do cinema. E de como se esforçou para esgueirar-se para ela e assim desfrutar sua colônia adocicada. Recordou o brilho que vazava de seus olhos marejados, no primeiro filme que assistiram juntos. E de como se envergonharam quando, depois de minuciosas tentativas, suas mãos finalmente se entrelaçaram pela primeira vez. O banco da praça depois da missa. O cheiro de pipoca. A banda no coreto. Os passarinhos que revoavam nas copas das árvores. Nada fugia as suas recordações.

             Um suspiro invadiu sua alma, quando relembrou o primeiro beijo. Tantos anos se passaram, quanta coisa mudou, e mesmo assim, ele jamais se esqueceu daquele momento. E de como aquele beijo ficou para sempre incrustado em sua alma. É lógico que vieram outros tantos beijos, alguns até lhe sugaram todas as energias, quando ele mergulhava no calor de sua amada, mas, aquele primeiro beijo jamais sairia de sua memória. E assim, como um barquinho que vai mansamente deslizando nas aguas, se deixando levar pelos embalos das ondas, permitiu-se divagar, reacendendo lembranças que floresciam obedientes no solo fértil da memória, trazendo consigo o frescor das sensações colhidas em cada momento.

            Viu-se jovem, desfrutando de um corpo atlético, totalmente diferente daquela atual caricatura amassada. Os braços, com os quais apertava para si sua amada eram vigorosos. E quanto a ela? Ah como ele se lembrava de cada detalhe de seu corpo. A pele que o tempo foi acariciando até amarrota-la era incrivelmente lisa. Os lábios perolados traziam um luzir especial para aquele rosto bem desenhado. E quanto aos olhos? Os profundos, porém sutis olhos reluzente, capazes de penetrarem na alma. Olhos carregados de bondade. As maçãs de seu rosto que coravam com facilidade, os magníficos traços de suas sobrancelhas, a cintura fina onde qualquer vestido cingia bem.

            O velho Antenor colocou os óculos para melhor espreitar a moldura pendurada na parede. Hoje percebia que devia ter sorrido naquela ocasião, embora, teve que reconhecer o charme naquela pose séria de estudante. Já sua doce amada, escancarava um sorriso que não tinha medo de ser exagerado. Depois, como quem vai estendendo sua existência através de feitos que estão materializados, segurou um a um, os tantos porta retratos espalhados pela casa. Os filhos que ele raramente via, abraçados às suas respectivas esposas e filhos. Naquelas pessoas, senhor Antenor tinha certeza que viveria com sua doce amada eternamente. Frutos colhidos na imensa árvore que o amor dos dois semeou.

            Conferiu o relógio pela centésima vez. E protestou contra a má vontade do tempo que caminhava lentamente sobre as horas, zombando de sua ansiedade. Apanhou o chapéu, o guarda chuva e é claro, o ramalhete de tulipas e saiu.

            O alarido do trânsito, os faróis, as luzes nas vitrines, as praças, a confusão dos odores, os transeuntes concentrados em suas rotinas, os arranha-céus, de onde alguém, talvez identificasse sua figura solitária caminhando vagarosamente. Porém, nada, absolutamente nada conseguia puxar para si a atenção daquele velho. Seus pensamentos eram inteiros miseráveis reféns de sua senhora.

            Parou diante de uma boutique na Paulista, especializada em artigos para noivas. Seu coração velho saltitou tal como nos tempos idos. Um turbilhão de lembranças invadiu sua alma cansada, enquanto percorria o olhar pelos manequins enxovalhados, os adereços matrimoniais e os casais que os escolhiam. De repente, viu-se no altar daquela velha capelinha, que já não tem a mesma cor, nem o mesmo padre, mas, ainda está lá, fiel testemunha de seu matrimônio. Ele estava tão ansioso por ver sua amada como agora. Lembrou-se bem da canção que o coral entoou e do momento em que sua noiva, vestida no mais puro branco surgiu para turvar sua alma de frenesi.

            Seus dedos velhos e grossos tatearam o bolso do paletó, até encontrarem um lenço, com o qual tratou de enxugar as lágrimas que lhe desciam pelo rosto, ondulando nas marcas que a batalha contra o tempo lhe deixou.

            Cruzou com casais enamorados pelas ruas, trocando aqueles diálogos derramados de meiguices, andando à passos vagarosos, apontando para as vitrines.

            Diante do portão ele hesitou. Tantos anos se passaram e ele ainda não se acostumou com aquela rotina. Sentia aquele mesmo nervosismo percorrer sua epiderme, que experimento anos atrás, quando foi pedir sua mão em casamento.

            Se pudessem, suas pernas velhas sairiam correndo ao encontro de sua amada. Mas, os sentimentos que ele carregava pesavam como chumbo.

            Na recepção, cumprimentou cordialmente uma moça que colhia ainda os alegres frutos da juventude. Ela retribuiu com um gesto carinhoso.

            -Vou chama-la, senhor Antenor.

            No jardim, ele aguardou impaciente uma eternidade. Cada minuto de demora ardia em sua alma. Conferiu o laço que prendia o ramalhete, espanou mais uma vez o paletó, conferiu o nó da gravata, limpou as lentes dos óculos e pigarreou, para que sua voz não falhasse no momento de lhe falar. Ocorreu-lhe recitar um poema, mas, temia ser atrapalhado pela emoção, portanto, aboliu a ideia. Não queria embaraços diante de sua amada.  

            A moça que a acompanhava sussurrou ao seu ouvido. Talvez, mencionara como ele estava elegante e como ela era uma senhora de sorte. E ela tratou de abrir um lindo sorriso. Óbvio que sua acompanhante se sentia agraciada por promover um reencontro tão especial. Como um pai que deixa a filha diante do altar, a moça estacionou a cadeira de rodas diante do corpo frágil de Antenor.

            Era ainda a sua menina! Mesmo com aquele rosto amarrotado, onde floresciam pequenas nódoas deixadas pelo tempo, mesmo com aquele prateado maculando seus cabelos castanhos, agora curtos, mesmo com seu corpo frágil e trêmulo. Era sua menina.

             Estava sorridente e isso fez com que senhor Antenor se alegrasse. Gostava de vê-la de bom humor. Seus olhos brilhavam, penetrados no rosto do esposo. Um olhar que mesmo depois de muitos anos, era capaz de lhe desconsertar.

            -Meu amor. –Murmurou ele, derramando-se inteiramente para ela. Banhando-a com um olhar cheio de cuidados e alegria.

            Ela fincou aquele olhar no rosto sorridente de seu amado. Remexeu na cadeira de rodas, lançou um demorado olhar ao redor. Sua expressão sorridente foi aos poucos se dissolvendo, ganhando contorno mais interrogativo. O brilho de seu olhar se apagou e sem prévio aviso, assassinou o lindo sorriso. De repente, estava indisposta.

            -Leve-me daqui. –Disse ela impaciente, para sua condutora. Sem se importar com o tom áspero modulando a voz.

            A jovem enfermeira, vestida de impecável branco, trocou o sorriso de segundos antes, por uma expressão penosa. Estava confusa e sem jeito. Foi gentil ao dizer:

            -Sinto muito.

            Porém, o velho Antenor tratou de amenizar o pesar que recaiu nos ombros da jovem moça.

            -Não há porque se desculpar.

            Deus sabe o esforço que ele fazia para manter vivo no rosto, o sorriso que aquele nó na garganta tentava assassinar. O coração apertava no peito. As pernas, de tão pesadas, pareciam imersas em água.

            Com todo cuidado do mundo, tal qual um cavaleiro medieval prestes a ser coroado, dobrou o dorso, inclinou-se para sua amada e beijou suavemente aquele seu rosto amarrotado. Dela, recebeu um olhar vago.

            -Senhor Antenor. –Iniciou a jovem sem jeito. Procurando cada palavra. Com um olhar de piedade. Incomodada pela situação.  –Porque o senhor ainda vem, sistematicamente todo mês? Sabe muito bem que ela não o reconhece mais. O Alzheimer nela é agudo. Ela não faz ideia de quem seja o senhor.

            O olhar do velho pesou. Mas, não deixou de encarar a moça.

            -Ah minha jovem! Ela não sabe mais quem eu sou. Mas, eu sei muito bem quem ela é. E o que ela representa em minha vida. O quanto a amo e o quanto já fui amado por ela. Ela pode ter se esquecido, mas, eu jamais me esquecerei. 


Conto escrito por
Valdeci Santana

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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