Amor de Prímula, Paixão de Algodão
de Schleiden Nunes Pimenta
Mal havia voltado a dormir e já batiam à minha porta. O sol
nem baixara ainda. Meu estômago doeu e percebi o cheiro do arroz no alho; ouvi
o barulho da água refogando-o também. Pulei animado, mas recolhi-me desde logo
ao me lembrar da razão do jantar.
Que vergonha!
Quando dei por mim já recebia Maria Cândida na porteira de
trás da casa. Vinham do povoado de Barranquinha e não da estrada que dava em
Cegonhal. Sua comitiva trazia sua mãe e seu padrasto, mais a avó. Não era
bonita. Maldade minha dizer que não era. Estava escuro e meio que só a lua
meiada iluminava, mas até isso colaborou para realçar as junções das suas
tranças louras. Batiam nas coxas, ou nas nádegas; de maços grossos e uniformes,
aparentavam serem lisos de tão onduladas que eram. Fazia jus à fama da sua
família: rosto afunilado, olhos grandes, sem-cor, uns tinham amarelos e outros
tinham de burro-quando-foge; os de Candinha (assim passei a chamá-la) eu nunca
cheguei a decifrar.
Não comemos na cozinha. Mamãe transpôs a mesa da copa para
a varanda, que dava visão para o pé da serra. Nem fazia frio, só uma geadinha,
e ficamos por lá. Não havia sombra porque era de noite, mas estávamos debaixo é
de uma baita árvore de framboesa e sua sombra imaginária nos protegia do vento
mais forte. Também não ameaçava chover.
Papai sentou-se em uma das pontas, como costumavam fazer os
chefes da casa, porém não enganava: mamãe estava sempre ao lado para qualquer
necessidade, para qualquer deslize. O forro da mesa era grande, tampava até os
calcanhares, o tamanho ajudava. Por vezes – quantas vezes não vi! –, chutava-o,
não forte, mas para alertá-lo; noutras vezes o beliscava por baixo da toalha de
limpar as mãos, daquelas de forrar o colo. Diziam que granfinos da capital as
utilizavam, mas eu as via só como um tipo aprimorado de babador. Preferia,
antes, valer-me dele para esconder a minha cara.
Elaborei um penteado, uma franja, para tentar esconder as espinhas
da testa, e naquele dia achei que funcionou maravilhosamente. Depois, meu pai
indagou-me sobre a minha tentativa vã. Falo isto também por causa da impressão
que passei para Candinha (ela odiava que eu a chamasse assim): olhava-me torto,
tamborilava os dedos de uma mão nas costas da outra mão; comia como que se
tivesse asco do tempero da minha mãe e, no mais, portava-se de modo que nem
queria estar ali. Pode ser que estivesse frustrada; pode ser que até quisesse
algo comigo, mas duvido. Ela só tinha onze anos! Não aparentava, era maior do
que eu, mas era estranho. Seu vestidinho de laço violeta, a botinha de
cavalgar, meu terninho de linho... Não passávamos de crianças. A quem nossos
tutores queriam enganar? Queriam é antecipar uma situação, prevenir um problema,
desocupar a mente do que lhe era uma terrível inquietação.
Por duas ou três vezes notei que ela olhou para meus
brinquedos, um carrinho de rolimã, em que brincava com Gina, e alguns outros de
madeira também. Coisa pouca, mas nem achávamos que era pouca naquela idade; divertíamo-nos
até com os dedos das mãos; encenávamos, uma espécie de teatro daquela roceria. Me
desculpem mas essa molecada de hoje nem sabe mais correr, só fica sentada, nem
sabe o que é brincar.
No mais, era assim: chamávamos toda gente é pelo sobrenome.
Candinha era do povo dos Martini, que viera da Itália pelo que me disseram. Só
o padrasto que não era; descendia de índio, mesmo, só que não podia se casar
com Ana Imaculada, mãe de Candinha. Acontecia que seu marido, Jorgiano Martini,
se não me engano, falecera de doença estranha da qual sempre tive muito medo:
bicho no fígado. Era uma enfermidade que permeou meus pesadelos e desenhou meu
imaginário desde então. Temia padecer do mesmo mal. O que não importa, porque
nem foi disso que morri porque ainda estou vivo; pode ser que disso ainda morrerei,
mas definitivamente não importa agora.
Todavia, depois que Jorgiano faleceu, Ana Imaculada não
poderia se casar novamente porque a igreja não deixava. Casou uma vez? Outra
vez não casava. Podia ir noutra igreja, em centro, no terreiro, na missa protestante,
tudo, porque cada um faz o que quiser no mundo, mas, na católica, não podia.
Fizeram uma festa discreta de união, para, se não fosse
permitido pelo Santo Papa, ao menos que não fosse escondido lá do pessoal da roceria.
Eram ambos bem sistemáticos, mas o padrasto ardia de doer. Nem precisava de
piada para dar risada, pois ele era o piadista e também quem ria da sua própria
piada. Ria tão alto que incomodava os pássaros que dormiam no pé de jabuticabeira;
incomodava até a nós mesmos. Não me lembro do seu nome, o que é uma pena; acho
que algo entre André e Antônio, mas o sobrenome era Silva, o apelido era Sapão,
tinha a boca grande, cabelo lambido. Não era má pessoa, é que parecia
interessar-se por chamar a atenção. Sofria de mania de estrela, queria brilhar
mais do que o resto do universo. Ana Imaculada é que andava feito uma garça ao
seu lado, orgulhosa, não digo que pela juventude do seu parceiro só; é que ele
era de boa aparência. O bigode o tornava alguma coisa que as mulheres pareciam
adorar. Desligado de tudo ao seu redor, não se importava, e mesmo a razão
daquela reunião ele parecia desconhecer; quando surgia um assunto pouco sério,
a mais do que o normal, ainda assim a continuidade dos seus causos
interessava-lhe mais. Empertigava-se por sobre a bandeja de frango, quase
derrubava a de couve. Pecado! Couve é coisa de Deus, tão boa que é. Trocaria
facilmente suas piadas por um grande prato com couve. Refogada, minha mãe tinha
feito. Fazia piada até do que não devia, por exemplo, da eminência de uma guerra
entre Minas Gerais e São Paulo. Dizia ser vidente e que logo entraríamos em
guerra civil. Mas Sapão falava demais e por isso eu nem achava capaz de
acontecer.
Nessa hora todos nos entreolhamos, Candinha e eu mais do
que os outros; tínhamos um medo danado de tudo porque criança sabe é de nada.
Tem medo de tudo, tem medo de nada, não dá para entender. Enfim, em nossa troca
de olhares parecemos ter nos aconchegado, confortado um pouco o coração.
Olhamo-nos uma vez, viramos o rosto rapidamente, envergonhados; olhamo-nos uma
segunda vez, devagar; sorrimos um para o outro, brevemente. Foi gostoso; a
procura lenta, a fuga breve. Mais não teve; o silêncio que todos fizeram,
olhando-nos, admirando-nos, numa ânsia, torcendo por algo mais, destruiu
qualquer possibilidade. Aquela troca de olhares jamais repetir-se-ia; não seria
mais igual. Se não fosse isso, ah!, não sei, ainda hoje medito, conjeturo o que
seria. Quem sabe...
Logo nossos pratos esvaziaram, a lua já descia, as cigarras
cansaram-se, meu penteado se desfez, as espinhas reapareceram. Era hora de
criança dormir.
Dias depois viemos a saber que Sapão
realmente estava certo, e nossos pais saíram a guerrear em nome de assuntos que
hoje ainda não compreendo muito bem, mas talvez porque a minha atenção fora
furtada por outras coisas que aconteceram também. Geralmente, os livros falam
dos que foram à guerra, mas não me lembro de ter lido sobre quem ficou cuidando
do roçado.
*
Nesses tempos peguei mania de caminhar
pelas plantações da vizinhança; por vezes ia até longe demais, quase que em terras
das quais eu nem sabia o nome. Levava comigo um caderno de desenhos no qual
rascunhava sobre características dos insetos que eu via; desenhava pétalas de prímula,
pés de laranja... Achava que me
preparava já para a faculdade pois queria ser agricultor.
Candinha ia comigo, mas por troca
interesseira, apenas: fazia-me barganha, dizia que me acompanharia somente se
ela pudesse colar, nas páginas do meu caderno, um exemplar das flores mais
bonitas que ela encontrasse em cada dia de pesquisa. Flor de algodão, flor de
romã. Colou até flor de café.
Escondidas por entre a aspereza e a
sequidão das páginas de papel elas não morreriam; morriam, mas pareciam não morrer;
é como contar histórias, é como fotografar: a pessoa fotografada morre, mas a
sua imagem permanece; as personagens se vão, mas suas estórias eternizam-se: as
flores não florescem mais, mas também não deixam de existir; resta seu
espectro, sua lembrança materializada, seu contorno nas páginas, feito um choro,
feito um grão...
Lembro-me de cada flor e de uma e de
outra folha. Meus dias não se davam mais por segunda a sexta, ou sábado e
domingo; para que nos situássemos no tempo, ela fez questão, pôs-me a condição,
de chamar a cada dia o nome de uma daquelas flores. "Aquele dia,
lembra-se? Qual? Aquele, do Ipê Amarelo, ou da Pessegueira". E eu
precisava me lembrar ou ela não conversaria comigo àquele dia. Seria um dia sem
flor, sem história, sem cor. Aquele dia, o que teve nele? O que fizemos? Se não
havia flor significaria que tal dia não existiu.
Lembro-me de muitos dias, de muitos
acontecimentos, esparsos, que não significam nada, mas que para sempre estiveram
grudados na minha memória. A passagem do fotógrafo da região, que é sempre
especial para qualquer família; vinha uma vez a cada dois ou três anos, porque
viajava toda aquela Bahia a registrar o rosto das pessoas, a história de cada
uma delas. Era importante, era coisa de uma vez na vida, se bobeasse. Eu disse
que ele vinha de dois ou de três em três anos, mas, além disso, ainda havia o
problema do dinheiro porque não era sempre que o possuíamos, ou, noutras
palavras, não era sempre que nos dávamos ao capricho de retirar a despesa da
comida para colocar nesses registros tais. Quem tinha dinheiro ostentava a
parede de suas casas tomadas por retratos emoldurados. Para nós, que não éramos
abastados, restava ter uma foto de cada casal e já estava de bom tamanho; ou
foto da família reunida; para que mais do que isso?
Daquela época não tenho fotos de Virgínia,
minha irmã; era ausente, não pertencia à família. Tirávamos fotos – digo:
aparecíamos nelas em poses eretas, a matriarca sentada ao centro; o patriarca
em pé com a mão ao ombro dela; os filhos ao derredor imitando-os ao seu jeito. Devíamos
aparentar como que da realeza, como filhos de coronéis; precisávamos parecer
seguros, donatários de terras, de estirpe; éramos frios e sisudos. Era mentira.
Tantas imagens não condizem com a verdade! Gina estava, pela sua ausência, mais
do que presente! Quem via as fotos já se indagava “Onde está a moça, a pequena,
sua filha?”. Mandada, por nós, para o convento, por achar que não tinha se
casado virgem. Vimos apenas muito depois que grande violência foi aquilo – não porque
descobrimos que tinha hímen complacente, razão pela qual não sangrara, mas
porque fomos monstruosos e preconceituosos de outra geração, mesmo.
Faltou-nos exatamente aquela
complacência e compreensão, bem como amá-la simplesmente por amar. “Onde estava
Virgínia?”, insistiriam, e dir-lhe-íamos: no semblante sisudo de cada um de
nós. Por que deveria ser sisudo? Porque algo estava errado, porque não é para
ser tão formal; porque deveríamos rir, ou, na pior das hipóteses, ter regra
nenhuma ao fotografar. A melhor fotografia foi aquela que, por nos pegar de surpresa,
não deu chances para a nossa sisudez.
Hoje, fotografo plantas; coloco suas
imagens em uma revista; publiquei imagens de todas as flores que Candinha
gostava, que catalogamos por aqueles campos, por aqueles charcos, por aquela
serra. Como as plantas sorriem, como dançam! Como elas dançam! E penso: como
sou sisudo perto delas! Por que alguém quereria me fotografar? Antes
aparentar-me uma flor. Como não posso sê-la, como não posso, sou fotógrafo. A
arte de fotografar é magnífica porque registra a exuberância que é viver. Fotografamos
a todo tempo, com o olhar; para registrar é preciso largar a sisudez.
*
Das lembranças quase esquecidas ainda
havia o circo. Também, se tínhamos dinheiro, não tínhamos circo; tínhamos
circo, não tínhamos dinheiro (mas arrumávamos emprestado). Circo era coisa
séria; juntávamos moedinhas para ir. Eu gostava do malabarista; Virgínia
preferia a mulher que cuspia fogo.
Tio Nelson, que curioso... não se
animava a ir conosco porque nutria pena de animais enjaulados. Nisto estava até
com a razão. Uma vez por ano, geralmente em setembro. Uma vez veio em dezembro,
foi bom, coincidiu com o natal. Minha irmã ria, gargalhava com os palhaços, sua
face reluzia, suspirava no fim do riso e a contemplávamos a suspirar;
esperávamos por isto, por este instante, e então ela se recompunha, envergonhada;
abaixava a cabeça, acariciava o bordado do seu vestidinho porque percebia que
estávamos a observá-la. Ante a mulher do fogo: perplexidade! Duvidava, bem, ao
certo, não sabia o que brilhava mais: o tremular das chamas ou a brasa nos
olhos eternamente virgens de minha irmã. Se para fotografar é preciso
surpreender-se, para surpreender-se é preciso virgindade.
Essa era, para mim, e sempre foi, a
maior significância do nome de Virgínia; todo ano, desde que me entendi por
gente, íamos lá; eles vinham do Uruguai, levantavam as barracas na saída que ia
para a capital, no trevo, num terreno baldio; pois, em todos os anos, o brilho
continuava igual. Virgindade absoluta.
Lembranças cotidianas que significavam
nada; imperceptíveis: o damasco fresco da páscoa, o pêssego do natal, o aroma
da feira, o gostinho café com leite das manhãs, a refoga do alho no arroz, a
textura do tronco a se desfolhar da jabuticabeira, a framboesa a exalar da pele
de Candinha, a brisa ao descortinar da sua franja irregular: virgindade
absoluta!
Bem, mas, antes, bem antes dessa
ladainha, eu dizia dos nomes das flores, que registrávamos Candinha e eu.
*
Foi aproximadamente um ano, 365 dias,
catalogando flores, o que somaram 365 flores – embora não tenham sido 365 flores
diferentes.
Pensei isso, a princípio, pois as
espécies eram limitadas, e discutíamos quanto a algumas flores já que pareciam
repetidas. Candinha insistia que as flores não se repetiam, que não eram as
mesmas, que, mesmo se fossem pertencentes à mesma espécie, tratavam-se de seres
peculiares. Dizia mais: que, se eu olhasse para a mesma flor por duas vezes
seguidas, por fim ela não seria mais a mesma do primeiro olhar. A saída foi
sobrenomeá-las; algumas ganharam meu sobrenome, outras, o dela, e ainda havia
aquelas que ganharam os de nós dois.
Eu aceitava a brincadeira porque não via
razão de não aceitar, então as colava sem nem questionar. Só que nem toda brincadeira
dela era interessante. Gostava de teatrar, de atuar papeis de novela, de fazer
poesia e de dissimular. Mostrou-me, uma vez, um texto que escrevera em
homenagem a Virgínia, e obrigou-me a ler com ela, meio a gestos largos, o que
ela chamou de encenação poética. Cantava ela, subindo e descendo de uma rocha que
ficava debaixo da jabuticabeira, até que inesperadamente me perguntou:
— Você me ama?
— O que você quer que eu responda? – disse eu
tentando demonstrar superioridade.
— Você me ama – afirmou, convicta. – Você me
ama.
— Acha?
— Pense, vamos pensar juntos, Wagninha. Você
foi à aula hoje?
— Fui, e não a vi.
— Vê?
— Já disse que não a vi...
— Não! Vê o que você disse agora? Agora, que
lhe fiz uma pergunta simples, não me fez rodeios. Respondeu, apenas. Não me
perguntou o que eu quero que você responda; apenas respondeu. Se fez rodeios
antes é porque a pergunta o incomodou. É porque me ama.
— Isso não quer dizer nada – balbuciei,
enquanto envergonhava-me ao lembrar das minhas feições, no movimento dos
músculos da face no instante em que tentei lhe responder – ou fugir do seu
questionamento. Mas eu não a amava! Acho
que não, mas não sabia dizer. Por que era tão complicado tocar nesses assuntos
afetivos, ditos do coração? Talvez porque eu pensava nos poréns, no futuro, nas
consequências. Dizer que a amava seria coisa séria, acarretaria compromisso,
vínculo, casamento. Também não sei por qual razão. Candinha parecia
compreender; brincava comigo. Logo depois aproximou-se de mim; sem que eu
esperasse, segurou meu rosto, olhou-me profundamente, sussurrou-me:
— Não tem problema, Wagner, não tem. – E sorria.
– Pode dizer, não dá em nada. Pode falar que não tem problema.
Não soube se ela quis dizer que não havia
problema em falar ou se era para falar-lhe que não havia problema. Comi seus
olhos; ela me flagrou, por um milésimo de tempo, a flertar com os seus lábios
de muita carne. Pensei: "Não tem problema". Eu podia, ela quem dizia,
não havia pelo quê não poder. Minha boca tremeu, lembro-me bem; pude senti-la
na imaginação fértil de criança. Quando criança, uma imaginação valia por
qualquer toque real; hoje, adulto, pouco vale o real e a imaginação é quase
nula.
Por ela me dizer que não havia problema é que
quis correspondê-la. E se, mesmo não amando, dissesse que a amava? Podia não
ser amor, até, mas, no mínimo, era algo bem próximo; com exatidão, mesmo, quem
garante amar? Cadê o ser amoroso, inconteste? Qual é a principal característica
ou sintoma? O estalo inconfundível, qual é? “Ai, não há por que ser tão sério!”,
ela quem me dizia. Sorria-me com beiços de morango, como se cochichasse "É
só morango, que mal tem?"; se for polpa, se for fruta, se for suco:
lambuze-se a não mais poder! O que importa é comer, se quiser comer. Se for
laranja, chupe! Comia-me, ela, com absoluta precisão; chuparia toda a minha
razão. Nem era tão bela, já disse; mas, quê tinha? Algo tinha. "Não tem
problema", quis-lhe gritar. "Amo-te! Coma-me! Não tem problema! Se
preferir, chupe-me sem dó!". Mas, no ímpeto, ela se virava também com precisão;
os cachos de cabelo a esvoaçar. Também, se eu não amasse, se ela não amasse,
qual o problema? Talvez ela quisesse dizer tal coisa bem como eu. Se nada
acontecesse, "não tem problema, Wagninha".
Candinha sabia das coisas. Por tantas vezes
quis dizer que a amava e não lhe disse... poderia ter-lhe dito incontáveis
vezes. Não porque a amava verdadeiramente, mas porque sentia uma vontade
absurda de lhe dizer: "Amo-te!, Candinha! Amo-te! desesperadamente!",
com exclamações em todas as palavras. Nessa vida de meias-verdades, de falsas
convicções, de sonhos ilusórios, de fulgor tão vívido e de tempo curto, por que
não amar sem ter certeza? Por que tanto cuidado? Para, depois, morrer de pesar
e de saudade? Sentia o toque de seus dedos nas minhas bochechas, no deslize do
meu maxilar; um breve e imperceptível encostar dos nossos cantos de boca... –
ou foi só imaginação?
Amava-a, de alguma forma, de qualquer afeto, de
uma necessidade comestível, de me saciar, inteiramente, para não mais perdê-la.
Por que não disse? Por quê?
Quando ela se foi tão prematuramente, no outono seco e adoentado de 1932, desesperei-me e quis amá-la, e, como que num carinho, ouvia-a a me sussurrar que, nisto, também, "não tem problema". Não mesmo; ela não haveria, nunca, de ser-me um problema. Acho que é o que ela queria que eu respondesse de pronto, sem pensar duas vezes, apenas querendo brincar.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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