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Antologia Romance à Vista: 1x06 - Amor de Prímula, Paixão de Algodão

Conto de Schleiden Nunes Pimenta
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Sinopse: "Amor de prímula, paixão de algodão" é uma história de época. Nela, Wagninha narra lembranças familiares, desde o cheiro da refoga do alho até o conflito armado que houve entre Minas Gerais e São Paulo na década de 30, enquanto discorre sobre o amor-paixão que nutria por Maria Cândida (Candinha). Conta, meio a um mar de lembranças, aromas, texturas e inocência, sobre a primeira vez em que se viram, sobre a coleção de flores que eles reuniam, e sobre as enigmáticas frases que ela lhe dizia e que ele nunca veio a compreender com certeza. Mas, como Candinha mesmo lhe afirmava: "Não tem problema, Wagninha, amar sem ter certeza. Não tem problema".


Amor de Prímula, Paixão de Algodão
de Schleiden Nunes Pimenta

 

Mal havia voltado a dormir e já batiam à minha porta. O sol nem baixara ainda. Meu estômago doeu e percebi o cheiro do arroz no alho; ouvi o barulho da água refogando-o também. Pulei animado, mas recolhi-me desde logo ao me lembrar da razão do jantar.

Que vergonha!

Quando dei por mim já recebia Maria Cândida na porteira de trás da casa. Vinham do povoado de Barranquinha e não da estrada que dava em Cegonhal. Sua comitiva trazia sua mãe e seu padrasto, mais a avó. Não era bonita. Maldade minha dizer que não era. Estava escuro e meio que só a lua meiada iluminava, mas até isso colaborou para realçar as junções das suas tranças louras. Batiam nas coxas, ou nas nádegas; de maços grossos e uniformes, aparentavam serem lisos de tão onduladas que eram. Fazia jus à fama da sua família: rosto afunilado, olhos grandes, sem-cor, uns tinham amarelos e outros tinham de burro-quando-foge; os de Candinha (assim passei a chamá-la) eu nunca cheguei a decifrar.

Não comemos na cozinha. Mamãe transpôs a mesa da copa para a varanda, que dava visão para o pé da serra. Nem fazia frio, só uma geadinha, e ficamos por lá. Não havia sombra porque era de noite, mas estávamos debaixo é de uma baita árvore de framboesa e sua sombra imaginária nos protegia do vento mais forte. Também não ameaçava chover.

Papai sentou-se em uma das pontas, como costumavam fazer os chefes da casa, porém não enganava: mamãe estava sempre ao lado para qualquer necessidade, para qualquer deslize. O forro da mesa era grande, tampava até os calcanhares, o tamanho ajudava. Por vezes – quantas vezes não vi! –, chutava-o, não forte, mas para alertá-lo; noutras vezes o beliscava por baixo da toalha de limpar as mãos, daquelas de forrar o colo. Diziam que granfinos da capital as utilizavam, mas eu as via só como um tipo aprimorado de babador. Preferia, antes, valer-me dele para esconder a minha cara.

Elaborei um penteado, uma franja, para tentar esconder as espinhas da testa, e naquele dia achei que funcionou maravilhosamente. Depois, meu pai indagou-me sobre a minha tentativa vã. Falo isto também por causa da impressão que passei para Candinha (ela odiava que eu a chamasse assim): olhava-me torto, tamborilava os dedos de uma mão nas costas da outra mão; comia como que se tivesse asco do tempero da minha mãe e, no mais, portava-se de modo que nem queria estar ali. Pode ser que estivesse frustrada; pode ser que até quisesse algo comigo, mas duvido. Ela só tinha onze anos! Não aparentava, era maior do que eu, mas era estranho. Seu vestidinho de laço violeta, a botinha de cavalgar, meu terninho de linho... Não passávamos de crianças. A quem nossos tutores queriam enganar? Queriam é antecipar uma situação, prevenir um problema, desocupar a mente do que lhe era uma terrível inquietação.

Por duas ou três vezes notei que ela olhou para meus brinquedos, um carrinho de rolimã, em que brincava com Gina, e alguns outros de madeira também. Coisa pouca, mas nem achávamos que era pouca naquela idade; divertíamo-nos até com os dedos das mãos; encenávamos, uma espécie de teatro daquela roceria. Me desculpem mas essa molecada de hoje nem sabe mais correr, só fica sentada, nem sabe o que é brincar.

No mais, era assim: chamávamos toda gente é pelo sobrenome. Candinha era do povo dos Martini, que viera da Itália pelo que me disseram. Só o padrasto que não era; descendia de índio, mesmo, só que não podia se casar com Ana Imaculada, mãe de Candinha. Acontecia que seu marido, Jorgiano Martini, se não me engano, falecera de doença estranha da qual sempre tive muito medo: bicho no fígado. Era uma enfermidade que permeou meus pesadelos e desenhou meu imaginário desde então. Temia padecer do mesmo mal. O que não importa, porque nem foi disso que morri porque ainda estou vivo; pode ser que disso ainda morrerei, mas definitivamente não importa agora.

Todavia, depois que Jorgiano faleceu, Ana Imaculada não poderia se casar novamente porque a igreja não deixava. Casou uma vez? Outra vez não casava. Podia ir noutra igreja, em centro, no terreiro, na missa protestante, tudo, porque cada um faz o que quiser no mundo, mas, na católica, não podia.

Fizeram uma festa discreta de união, para, se não fosse permitido pelo Santo Papa, ao menos que não fosse escondido lá do pessoal da roceria. Eram ambos bem sistemáticos, mas o padrasto ardia de doer. Nem precisava de piada para dar risada, pois ele era o piadista e também quem ria da sua própria piada. Ria tão alto que incomodava os pássaros que dormiam no pé de jabuticabeira; incomodava até a nós mesmos. Não me lembro do seu nome, o que é uma pena; acho que algo entre André e Antônio, mas o sobrenome era Silva, o apelido era Sapão, tinha a boca grande, cabelo lambido. Não era má pessoa, é que parecia interessar-se por chamar a atenção. Sofria de mania de estrela, queria brilhar mais do que o resto do universo. Ana Imaculada é que andava feito uma garça ao seu lado, orgulhosa, não digo que pela juventude do seu parceiro só; é que ele era de boa aparência. O bigode o tornava alguma coisa que as mulheres pareciam adorar. Desligado de tudo ao seu redor, não se importava, e mesmo a razão daquela reunião ele parecia desconhecer; quando surgia um assunto pouco sério, a mais do que o normal, ainda assim a continuidade dos seus causos interessava-lhe mais. Empertigava-se por sobre a bandeja de frango, quase derrubava a de couve. Pecado! Couve é coisa de Deus, tão boa que é. Trocaria facilmente suas piadas por um grande prato com couve. Refogada, minha mãe tinha feito. Fazia piada até do que não devia, por exemplo, da eminência de uma guerra entre Minas Gerais e São Paulo. Dizia ser vidente e que logo entraríamos em guerra civil. Mas Sapão falava demais e por isso eu nem achava capaz de acontecer.

Nessa hora todos nos entreolhamos, Candinha e eu mais do que os outros; tínhamos um medo danado de tudo porque criança sabe é de nada. Tem medo de tudo, tem medo de nada, não dá para entender. Enfim, em nossa troca de olhares parecemos ter nos aconchegado, confortado um pouco o coração. Olhamo-nos uma vez, viramos o rosto rapidamente, envergonhados; olhamo-nos uma segunda vez, devagar; sorrimos um para o outro, brevemente. Foi gostoso; a procura lenta, a fuga breve. Mais não teve; o silêncio que todos fizeram, olhando-nos, admirando-nos, numa ânsia, torcendo por algo mais, destruiu qualquer possibilidade. Aquela troca de olhares jamais repetir-se-ia; não seria mais igual. Se não fosse isso, ah!, não sei, ainda hoje medito, conjeturo o que seria. Quem sabe...

Logo nossos pratos esvaziaram, a lua já descia, as cigarras cansaram-se, meu penteado se desfez, as espinhas reapareceram. Era hora de criança dormir.

Dias depois viemos a saber que Sapão realmente estava certo, e nossos pais saíram a guerrear em nome de assuntos que hoje ainda não compreendo muito bem, mas talvez porque a minha atenção fora furtada por outras coisas que aconteceram também. Geralmente, os livros falam dos que foram à guerra, mas não me lembro de ter lido sobre quem ficou cuidando do roçado.

 

*

 

Nesses tempos peguei mania de caminhar pelas plantações da vizinhança; por vezes ia até longe demais, quase que em terras das quais eu nem sabia o nome. Levava comigo um caderno de desenhos no qual rascunhava sobre características dos insetos que eu via; desenhava pétalas de prímula, pés de laranja...  Achava que me preparava já para a faculdade pois queria ser agricultor.

Candinha ia comigo, mas por troca interesseira, apenas: fazia-me barganha, dizia que me acompanharia somente se ela pudesse colar, nas páginas do meu caderno, um exemplar das flores mais bonitas que ela encontrasse em cada dia de pesquisa. Flor de algodão, flor de romã. Colou até flor de café.

Escondidas por entre a aspereza e a sequidão das páginas de papel elas não morreriam; morriam, mas pareciam não morrer; é como contar histórias, é como fotografar: a pessoa fotografada morre, mas a sua imagem permanece; as personagens se vão, mas suas estórias eternizam-se: as flores não florescem mais, mas também não deixam de existir; resta seu espectro, sua lembrança materializada, seu contorno nas páginas, feito um choro, feito um grão...

Lembro-me de cada flor e de uma e de outra folha. Meus dias não se davam mais por segunda a sexta, ou sábado e domingo; para que nos situássemos no tempo, ela fez questão, pôs-me a condição, de chamar a cada dia o nome de uma daquelas flores. "Aquele dia, lembra-se? Qual? Aquele, do Ipê Amarelo, ou da Pessegueira". E eu precisava me lembrar ou ela não conversaria comigo àquele dia. Seria um dia sem flor, sem história, sem cor. Aquele dia, o que teve nele? O que fizemos? Se não havia flor significaria que tal dia não existiu.

Lembro-me de muitos dias, de muitos acontecimentos, esparsos, que não significam nada, mas que para sempre estiveram grudados na minha memória. A passagem do fotógrafo da região, que é sempre especial para qualquer família; vinha uma vez a cada dois ou três anos, porque viajava toda aquela Bahia a registrar o rosto das pessoas, a história de cada uma delas. Era importante, era coisa de uma vez na vida, se bobeasse. Eu disse que ele vinha de dois ou de três em três anos, mas, além disso, ainda havia o problema do dinheiro porque não era sempre que o possuíamos, ou, noutras palavras, não era sempre que nos dávamos ao capricho de retirar a despesa da comida para colocar nesses registros tais. Quem tinha dinheiro ostentava a parede de suas casas tomadas por retratos emoldurados. Para nós, que não éramos abastados, restava ter uma foto de cada casal e já estava de bom tamanho; ou foto da família reunida; para que mais do que isso?

Daquela época não tenho fotos de Virgínia, minha irmã; era ausente, não pertencia à família. Tirávamos fotos – digo: aparecíamos nelas em poses eretas, a matriarca sentada ao centro; o patriarca em pé com a mão ao ombro dela; os filhos ao derredor imitando-os ao seu jeito. Devíamos aparentar como que da realeza, como filhos de coronéis; precisávamos parecer seguros, donatários de terras, de estirpe; éramos frios e sisudos. Era mentira. Tantas imagens não condizem com a verdade! Gina estava, pela sua ausência, mais do que presente! Quem via as fotos já se indagava “Onde está a moça, a pequena, sua filha?”. Mandada, por nós, para o convento, por achar que não tinha se casado virgem. Vimos apenas muito depois que grande violência foi aquilo – não porque descobrimos que tinha hímen complacente, razão pela qual não sangrara, mas porque fomos monstruosos e preconceituosos de outra geração, mesmo.

Faltou-nos exatamente aquela complacência e compreensão, bem como amá-la simplesmente por amar. “Onde estava Virgínia?”, insistiriam, e dir-lhe-íamos: no semblante sisudo de cada um de nós. Por que deveria ser sisudo? Porque algo estava errado, porque não é para ser tão formal; porque deveríamos rir, ou, na pior das hipóteses, ter regra nenhuma ao fotografar. A melhor fotografia foi aquela que, por nos pegar de surpresa, não deu chances para a nossa sisudez.

Hoje, fotografo plantas; coloco suas imagens em uma revista; publiquei imagens de todas as flores que Candinha gostava, que catalogamos por aqueles campos, por aqueles charcos, por aquela serra. Como as plantas sorriem, como dançam! Como elas dançam! E penso: como sou sisudo perto delas! Por que alguém quereria me fotografar? Antes aparentar-me uma flor. Como não posso sê-la, como não posso, sou fotógrafo. A arte de fotografar é magnífica porque registra a exuberância que é viver. Fotografamos a todo tempo, com o olhar; para registrar é preciso largar a sisudez.

 

*

 

Das lembranças quase esquecidas ainda havia o circo. Também, se tínhamos dinheiro, não tínhamos circo; tínhamos circo, não tínhamos dinheiro (mas arrumávamos emprestado). Circo era coisa séria; juntávamos moedinhas para ir. Eu gostava do malabarista; Virgínia preferia a mulher que cuspia fogo.

Tio Nelson, que curioso... não se animava a ir conosco porque nutria pena de animais enjaulados. Nisto estava até com a razão. Uma vez por ano, geralmente em setembro. Uma vez veio em dezembro, foi bom, coincidiu com o natal. Minha irmã ria, gargalhava com os palhaços, sua face reluzia, suspirava no fim do riso e a contemplávamos a suspirar; esperávamos por isto, por este instante, e então ela se recompunha, envergonhada; abaixava a cabeça, acariciava o bordado do seu vestidinho porque percebia que estávamos a observá-la. Ante a mulher do fogo: perplexidade! Duvidava, bem, ao certo, não sabia o que brilhava mais: o tremular das chamas ou a brasa nos olhos eternamente virgens de minha irmã. Se para fotografar é preciso surpreender-se, para surpreender-se é preciso virgindade.

Essa era, para mim, e sempre foi, a maior significância do nome de Virgínia; todo ano, desde que me entendi por gente, íamos lá; eles vinham do Uruguai, levantavam as barracas na saída que ia para a capital, no trevo, num terreno baldio; pois, em todos os anos, o brilho continuava igual. Virgindade absoluta.

Lembranças cotidianas que significavam nada; imperceptíveis: o damasco fresco da páscoa, o pêssego do natal, o aroma da feira, o gostinho café com leite das manhãs, a refoga do alho no arroz, a textura do tronco a se desfolhar da jabuticabeira, a framboesa a exalar da pele de Candinha, a brisa ao descortinar da sua franja irregular: virgindade absoluta!

Bem, mas, antes, bem antes dessa ladainha, eu dizia dos nomes das flores, que registrávamos Candinha e eu.

 

*

 

Foi aproximadamente um ano, 365 dias, catalogando flores, o que somaram 365 flores – embora não tenham sido 365 flores diferentes.

Pensei isso, a princípio, pois as espécies eram limitadas, e discutíamos quanto a algumas flores já que pareciam repetidas. Candinha insistia que as flores não se repetiam, que não eram as mesmas, que, mesmo se fossem pertencentes à mesma espécie, tratavam-se de seres peculiares. Dizia mais: que, se eu olhasse para a mesma flor por duas vezes seguidas, por fim ela não seria mais a mesma do primeiro olhar. A saída foi sobrenomeá-las; algumas ganharam meu sobrenome, outras, o dela, e ainda havia aquelas que ganharam os de nós dois.

Eu aceitava a brincadeira porque não via razão de não aceitar, então as colava sem nem questionar. Só que nem toda brincadeira dela era interessante. Gostava de teatrar, de atuar papeis de novela, de fazer poesia e de dissimular. Mostrou-me, uma vez, um texto que escrevera em homenagem a Virgínia, e obrigou-me a ler com ela, meio a gestos largos, o que ela chamou de encenação poética. Cantava ela, subindo e descendo de uma rocha que ficava debaixo da jabuticabeira, até que inesperadamente me perguntou:

— Você me ama?

— O que você quer que eu responda? – disse eu tentando demonstrar superioridade.

— Você me ama – afirmou, convicta. – Você me ama.

— Acha?

— Pense, vamos pensar juntos, Wagninha. Você foi à aula hoje?

— Fui, e não a vi.

— Vê?

— Já disse que não a vi...

— Não! Vê o que você disse agora? Agora, que lhe fiz uma pergunta simples, não me fez rodeios. Respondeu, apenas. Não me perguntou o que eu quero que você responda; apenas respondeu. Se fez rodeios antes é porque a pergunta o incomodou. É porque me ama.

— Isso não quer dizer nada – balbuciei, enquanto envergonhava-me ao lembrar das minhas feições, no movimento dos músculos da face no instante em que tentei lhe responder – ou fugir do seu questionamento.  Mas eu não a amava! Acho que não, mas não sabia dizer. Por que era tão complicado tocar nesses assuntos afetivos, ditos do coração? Talvez porque eu pensava nos poréns, no futuro, nas consequências. Dizer que a amava seria coisa séria, acarretaria compromisso, vínculo, casamento. Também não sei por qual razão. Candinha parecia compreender; brincava comigo. Logo depois aproximou-se de mim; sem que eu esperasse, segurou meu rosto, olhou-me profundamente, sussurrou-me:

— Não tem problema, Wagner, não tem. – E sorria. – Pode dizer, não dá em nada. Pode falar que não tem problema.

Não soube se ela quis dizer que não havia problema em falar ou se era para falar-lhe que não havia problema. Comi seus olhos; ela me flagrou, por um milésimo de tempo, a flertar com os seus lábios de muita carne. Pensei: "Não tem problema". Eu podia, ela quem dizia, não havia pelo quê não poder. Minha boca tremeu, lembro-me bem; pude senti-la na imaginação fértil de criança. Quando criança, uma imaginação valia por qualquer toque real; hoje, adulto, pouco vale o real e a imaginação é quase nula.

Por ela me dizer que não havia problema é que quis correspondê-la. E se, mesmo não amando, dissesse que a amava? Podia não ser amor, até, mas, no mínimo, era algo bem próximo; com exatidão, mesmo, quem garante amar? Cadê o ser amoroso, inconteste? Qual é a principal característica ou sintoma? O estalo inconfundível, qual é? “Ai, não há por que ser tão sério!”, ela quem me dizia. Sorria-me com beiços de morango, como se cochichasse "É só morango, que mal tem?"; se for polpa, se for fruta, se for suco: lambuze-se a não mais poder! O que importa é comer, se quiser comer. Se for laranja, chupe! Comia-me, ela, com absoluta precisão; chuparia toda a minha razão. Nem era tão bela, já disse; mas, quê tinha? Algo tinha. "Não tem problema", quis-lhe gritar. "Amo-te! Coma-me! Não tem problema! Se preferir, chupe-me sem dó!". Mas, no ímpeto, ela se virava também com precisão; os cachos de cabelo a esvoaçar. Também, se eu não amasse, se ela não amasse, qual o problema? Talvez ela quisesse dizer tal coisa bem como eu. Se nada acontecesse, "não tem problema, Wagninha".

Candinha sabia das coisas. Por tantas vezes quis dizer que a amava e não lhe disse... poderia ter-lhe dito incontáveis vezes. Não porque a amava verdadeiramente, mas porque sentia uma vontade absurda de lhe dizer: "Amo-te!, Candinha! Amo-te! desesperadamente!", com exclamações em todas as palavras. Nessa vida de meias-verdades, de falsas convicções, de sonhos ilusórios, de fulgor tão vívido e de tempo curto, por que não amar sem ter certeza? Por que tanto cuidado? Para, depois, morrer de pesar e de saudade? Sentia o toque de seus dedos nas minhas bochechas, no deslize do meu maxilar; um breve e imperceptível encostar dos nossos cantos de boca... – ou foi só imaginação?

Amava-a, de alguma forma, de qualquer afeto, de uma necessidade comestível, de me saciar, inteiramente, para não mais perdê-la. Por que não disse? Por quê?

Quando ela se foi tão prematuramente, no outono seco e adoentado de 1932, desesperei-me e quis amá-la, e, como que num carinho, ouvia-a a me sussurrar que, nisto, também, "não tem problema". Não mesmo; ela não haveria, nunca, de ser-me um problema. Acho que é o que ela queria que eu respondesse de pronto, sem pensar duas vezes, apenas querendo brincar. 


Conto escrito por
Schleiden Nunes Pimenta

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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