Dr. Mathias
de Luiz F. Haiml
Madrugara
o doutor Mathias.
Sem
ainda nem ter feito a primeira refeição do dia, fechara-se em seu gabinete e
mergulhara, fervorosamente, em suas anotações.
A
Congregação Regional de Médicos soubera da pesquisa sobre o Mal da Terra, que nos
tempos de Faculdade, lá em Viena, ele não chegara a concluir; ansiosos pelo
resultado, os catedráticos da Congregação motivaram-lhe o término e a apresentação
de tal estudo.
Naquela
alvorada de domingo, ele retirara da gaveta sua inacabada tese, e após uma
concentrada leitura do que havia já escrito, registrava nela novos apontamentos,
quando, do lado de fora, os cães agitaram-se de tal forma que o médico obrigou-se
a largar o que fazia e ir até a janela. Nesse momento, o relógio do casarão iniciou
o badalar das sete horas.
Pelo
vidro, Mathias viu chão e céu a tecerem-se numa única e imensurável muralha
branca, que não avançara para dentro do terreno, mas enroscava-se em sinistras fiações
aos arames da cerca da propriedade.
A
Villa, no município de Bambus, era a concretização de um ambicionado sonho de Mathias.
Mudou
ele banhados e pântanos em jardins arcádicos e prédios em que o neoclássico e o
colonial germânico belamente se harmonizavam, tendo acrescentados a si, sem
gritantes contrastes, leves traços de um barroco, um vitoriano e até um gótico.
As
construções eram envoltas por uma exuberante vegetação de formas várias por entre
as quais se espalhavam, aqui e ali, graciosas estátuas, a maioria de motivação
pagã, e chafarizes, mesas e bancos de feitio rústico, pontezinhas de pedra ou
madeira sobre plácidos açudes e regatos.
***
Os
cães não mais ladravam, o pêndulo terminava de marcar a sétima hora, o médico voltava
a escrivaninha, quando um forte pressentimento o pôs de novo à janela: alguém a
cavalo acabara de parar em frente ao casarão.
O
casarão, a residência da família, constituía-se numa das três principais edificações
do lugar. As outras eram a Casa de Saúde e a Clínica, na qual, além das
consultas, se realizavam cirurgias de menor complexidade. Como a cidade
encontrava-se desprovida de hospital, o doutor fizera erguer uma ala adjacente aos
necessitados de cuidados mais constantes. Até então cedia cômodos de sua
própria casa para abrigá-los.
Aparecer
gente àquela hora era fato incomum, por isso Mathias apressou-se em buscar o
chapéu e a capa e ir ao encontro de quem tão cedo chegava.
Alto
e muito branco de pele era o homem. Vestia trajes de capataz. O rosto jovem
exibia traços vigorosos e expressava grande vitalidade, mas ao mesmo tempo revelava-se
impregnado de misteriosos ares antigos, de quem muito vivera, muito conhecera. Embora
fosse respeitoso, algo nele perturbava o doutor, talvez fossem os olhos, nos
quais uma opacidade lembrava a densa bruma que engolfava as redondezas da
Villa. Muito quieto, usou poucas palavras ao pedir para o ilustre médico acompanhá-lo
a um sítio próximo, onde uma criança, filha de seu patrão, padecia sem que
ninguém soubesse a causa.
Mathias
confirmou a consulta, mas primeiro queria fazer uma rápida refeição e tomar
algumas providências, uma delas que mandassem buscar o médico-assistente para
substituí-lo enquanto estivesse fora.
Convidou
o doutor o recém-chegado para o café da manhã, mas ouviu dele uma solene recusa
e o homem foi esperar junto ao animal que o trouxera, de belo porte e de uma
alvura tanta quanto o que nele viera.
O
badalar dos sinos da igreja alcançou a Villa.
A
comunidade, acostumada com a presença do doutor Mathias com a esposa e os
filhos mais velhos, estranharia a falta deles na missa daquela manhã.
***
Desta
vez ele mesmo terá que conduzir a charretinha inglesa, presente do amigo Newlands,
o cocheiro fora ao casamento de uma sobrinha. O esmaecido cavaleiro seguirá na
frente, o outro desconhece o caminho.
O
doutor veste as luvas, tem um extremo cuidado com as mãos, dá um último aceno à
esposa e toca as rédeas.
O
ar inunda-se de uma fragrância acre e doce, é dos longos canteiros de brancos lírios
que tangem ambos os lados da estradinha. Entre as flores imaculadas que se
debruçam em direção a eles, aparece a grande casa de bonecas.
“Se não fosse pelas
outras crianças, já a teria posto abaixo. Mas, e se Edla e Ruthe continuam ali
a brincar?”
Gutten morgen, her doctor.
É
o negro Antunes, vai junto à charrete acompanhando-a num passo ligeirinho.
Who gehen Sie?
Ich werde Orchidee fangen
diz
o negro se embrenhando por uma estreita trilha rente a Clínica. É um bruxo o
Antunes, em se tratando do mundo vegetal, por isso o doutor o designara
responsável por jardins e hortas do lugar.
Aproximam-se
cavaleiro e charrete da tosca ponte com beirais feitos de troncos retorcidos.
Abaixo
dela, quietas, paradas, as águas que haviam levado Edla e Ruthe.
Nada
refletem, a não ser uma profunda escuridão.
***
Martha,
uma das irmãs do doutor, freira, tentara consolá-lo:
“Mathias,
as crianças ficam bem, vão logo às mãos dos anjos.”
Mas
havia questões que não calavam, que, diferente das borboletas da coleção do
médico, não conseguiam ficar encerradas, definitivamente, em suas caixinhas. Incertezas
que se enraizaram com maior intensidade em suas crenças há quase vinte anos.
A
esposa, ele sabia, também as tinha, mas parecia aquietá-las no conforto do
catolicismo.
O
padre sempre repetia “Deus tem seus motivos, e quem sabe as arrebatou, pois a
vida delas, aqui na Terra, seria de muito padecer”.
Porém,
eram feridas complicadas as dúvidas de Mathias e teimavam em ficar abertas.
“Por
que Deus as levara de modo tão cruel? Não sofremos todos, uns mais, uns menos,
aqui neste plano? E, contrariando a ideia do sacerdote, a existência delas
fosse feliz?”.
Revolve-se
no doutor a saudade de quando as abraçava e sentia a calidez das testinhas em
seu queixo e ouvia as gostosas risadas que as pontas do bigode produziam nas
bochechinhas delas.
Mesmo
como homem de ciências, e alguém que acompanhava os preceitos de sua religião, uma
parte dele não compreendia o porquê de uma vida ter que vir ao mundo só para dele
tão rapidamente ser tirada. Acostumou-se a dizer que deveria ter sido ele, em
vez delas, atitude essa que o consumia em conflitante ambivalência de
sentimentos, pois não esquecia também os muitos que iria poder curar.
No
entanto, não estivera quando o mal acontecera. Não estivera presente, nem chegara
a tempo. Poderia tê-lo impedido. Teria conseguido salvá-las. Volta-lhe o
ritornelo do padre: Deus tem seus motivos.
***
A
charrete se aproxima da Casa de Saúde. No alpendre, derreado numa espreguiçadeira,
enrolado num poncho, o Arnaldo, como sempre acompanhado de um livro.
“Tão
cedo e com esse clima, mas o Arnaldo é meio excêntrico mesmo”, resmunga o doutor
e grita-lhe:
“Cuida
com a umidade!”
“A
admiração de si garante contra os resfriados”, responde o Arnaldo.
Mathias
sorri pela evocação da frase de Nietzsche. A Casa de Saúde é uma estação de
tratamentos diversos através da hidroterapia. Tem piscina, banheiras, filtros, duchas
e caixas de suadores. A água é puxada dos morros e mantida quente por uma
fornalha sempre acesa.
Solteirão,
dono de uma loja de tecidos em outra cidade, Arnaldo está na Villa para tratar
de umas dores nas costas e nas pernas, após ter ouvido falar bem do lugar, do
Dr. Mathias e do sucesso de suas várias técnicas hidroterápicas, baseadas no
sistema Kneipp.
Apreciador
dos clássicos, dos filósofos, dos metafísicos, o lojista também é metido a poeta.
Em seus versos despeja, com ironia, o que pensa sobre as coisas da vida, e tem
nos planos o estudo do latim, para ler os antigos no original.
Toda
essa cultice, todavia, não impede o Arnaldo de ser um sujeito alegre, divertido.
Leva tudo no bom humor, em deliciosa zombaria, e, com o ânimo sempre para cima,
diverte muito o médico, com quem tem produtivas conversas.
“O
que lês?”, pergunta o esculápio.
“Hoje
o Virgílio”, e vira-lhe a surrada capa de uma edição da Eneida.
O
cavalo e a charrete, já quase a cruzar o portão principal da Villa, vão
perdendo os contornos à medida que se enredam na alvacenta e vaporosa teia da
neblina matinal.
Ladeando-os,
desvanecem-se também os canteiros de lírios.
Arnaldo,
do Fausto, solta uma fala:
“Tenho
pena dele: tão bom, tão franco.”
Em
simultâneo gesto, guia e doutor ajeitam melhor os chapéus, ambos de feltro, mas
de estilos e origens diferentes.
Mathias
imagina um gigantesco iglu circundando tudo.
***
Fora
a música, prazer imprescindível e irremovível da vida do médico, que o fizera
encontrar Amália Antônia. Combinara com o Newlands encontrarem-se numa
determinada rua, e pelo amigo esperava quando ouviu uma melodia tocada esplendidamente
ao piano. Reconheceu-a como algo de Schumann, e deixou-se conduzir por ela a um
sobrado onde, naquele dia, não conseguiu saber quem tão maravilhosamente
tocava.
Começou
o jovem clínico a passar mais vezes por ali, descobrindo que o horário das sessões
pouco se alterava. E toda a vez que acertava a hora do piano, aquele era o
momento mais feliz de seu dia. Então a sorte, ou o destino, por uma fresta de cortina,
revelou-lhe o perfil de uma moça a dedilhar o instrumento.
Mesmo
sem conhecê-la, mesmo sem conseguir vê-la direito, sentiu por ela uma agradável
simpatia, e um inesperado sentimento de comunhão. Decidido, enviou um ramalhete
àquela que, sem o saber, deliciava-o com seus cotidianos consertos. Anexou às
flores um cartão no qual propunha um encontro, caso a destinatária quisesse
conhecer o remetente. Especificava dia, local e hora e pedia que, na ocasião, ela
tivesse às mãos o mimo recebido.
No
momento e lugar combinados, deparou-se o nervoso moço com duas moças num banco.
Atrás delas, lírios, vermelhos e ainda não desabrochados. No regaço de uma
delas, daquela que enrubesceu, o ramalhete. Sorrisos de encanto foram então trocados,
e não se demorou o namoro para ter início.
Quando
as notas que compõem as melodias de duas almas, no éter do amor o destino faz com
que se achem, e nesse encontro ambas em natural consenso se agreguem em única
pauta, nasce então uma nova música que perdurará por toda a eternidade. Foi o
que se deu com Amália Antônia e Mathias.
A
futura esposa lhe completaria a metade que faltava de sua felicidade, a outra
parte já ocupada pelo amor dele à medicina.
De
espírito aguçado, determinada, trabalhadora, Toninha, assim era carinhosamente
conhecida, logo se poria a ajudar o noivo que já ia numa carreira de prestígio.
Foi secretária e enfermeira, e após casados, após mudarem para a cidade onde Mathias
instalou seu complexo termal, Amália Antônia passaria a cuidar com desenvoltura
das economias domésticas, do casarão, dos vários filhos, e acabaria por se
fazer indispensável no administrar da Villa.
Mathias,
com aprazo, assim a todos a enaltecia: Se aqui sou o capitão, Toninha é meu primeiro-imediato.
***
Não
há mais o som das rodas e dos cascos no cascalho. Deixaram a Villa. Estremece o
doutor. Puxa-se mais para dentro do cachecol e do casaco.
Por
um tempo que parece sem fim, seguem em silêncio por um trajeto do qual só distinguem
as veias centrais de uma larga estrada de chão. Ouvem, sem ver, quero-queros,
outros pássaros, alguns outros bichos, o resto é silencio, silencio de mundo
extinto. Uma criatura gigante sairá das brumas e os atacará? e o doutor está naquelas selvas dos seriados
de aventura que quando moço não perdia no Cine-Café Schneider.
A
neblina, ao redor deles, aos poucos vai se abrindo, recuando para os lados como
o mar Vermelho, que deixou passar Moisés, e sobre as margens da estrada vão se
debruçando distorcidos braços de diferentes comprimentos e espessuras, são os
galhos desfolhados das árvores de junho.
Cumes
de morros e colinas revelam a majestosa cordilheira que circunda o extenso vale
em que se encontram, a névoa, uma branca grinalda a abraçá-la, logo será desfeita
em rendas a serem consumidas pelos tênues raios do sol invernal.
O
cavaleiro se detém, aponta uma porteira ainda bem distante.
“É
lá!”
Para
além dela, o doutor enxerga apenas um longo caminho.
O
cavaleiro põe-se de novo em movimento, a charretinha atrás.
Mathias
começa a ouvir uma cantiga, é entoada por muitas vozes em alemão. A letra fala
de saudade. De repente ele está na Europa, à época em que retornara em defesa
da pátria arrastada para a guerra. Está na cantina com os companheiros, cada
qual ganhara o direito a um caneco de cerveja, tinham voltado de uma batalha
recente, tinham sobrevivido. Entoavam tal canção.
Um
solavanco da charrete e algo lhe espeta o peito. Pendurada em seu colete a
medalha ganha por bravura, nela a efígie do imperador Francisco. Quer tocá-la,
mas ao levar a mão em direção ao objeto, esse não está mais ali.
As
vozes cantam outra coisa, uma melodia alegre vinda da terra materna, uma que o
Grupo de Cantores Alemães, do qual o médico é membro-fundador, costuma ter no
repertório quando se apresenta em festas e outros eventos. Mas há outros sons:
bastões de cricket, uma partida de futebol,
algazarra de meninos.
“Enfim,
é domingo” pensa o doutor “mas é tão cedo, tão cedo”.
A
origem das músicas, ele descobre, está sob um arvoredo mais adiante, e à medida
que se aproxima do lugar vai percebendo melhor os tons, reconhecendo as vozes, que
lhe soam cada vez mais familiares.
Mathias
apruma o óculos, apura o olhar, mas nos últimos dias a vista andava a cansar
fácil, a turvar constantemente, e, por isso, os rostos, na distância, surgem
indistintos. No entanto, consegue vislumbrar alguns retângulos, que logo se
configuram em barracas, barracas de escoteiros junto às árvores.
O
cavaleiro passa por elas e pelos cantores como se não existissem. Parece também
não ouvir os outros sons. O médico, porém, ao chegar mais perto e identificar o
coro, e assim ter confirmadas suas suspeitas, espanta-se:
“O
que fazem aqui, e nesta hora do dia, o Willrich, o Bauer, o Rick e o Kichler?”
Preparando-se
para lhes falar, já a encostar a charrete, dá-se conta, atônito, de que desapareceram,
foram-se, assim como a canção, as barracas e o resto.
Diante
deles, a tão distante porteira.
O
cavaleiro apeia e a transpõe sem voltar a montar. Espera a charrete para fechá-la,
e no momento em que o veículo termina a passagem, há uma casa onde antes nada
havia.
De
aspecto humilde, modesta, tem as poucas janelas fechadas. Ao pé da porta de
entrada, ao lado de uns poucos degraus, um canteiro de lírios, lírios
silvestres.
Não
há ninguém a esperá-los.
Com
sua maleta, com o alto e silencioso homem, o doutor adentra a moradia; enquanto
sobem a escadinha ambos tiram seus chapéus.
A
sala em que entram surpreende o médico, tem o formato de um longo retângulo
cujas dimensões não condizem com o tamanho externo da casa, e não há nela nenhum
móvel, nenhum objeto, nenhuma divisória, e não se encontram em suas paredes, despidas
de qualquer ornamento, as aberturas respectivas das janelas que viu ao entrar.
Como
na rua, ninguém também ali, naquela peça desmesurada e vazia de gente e de
coisas, na qual o médico percebe então uma única abertura, sem porta ou cortina,
para outro compartimento, de onde exala uma luz morna, desmaiada.
Aquele
que o procurara e que o guiara por tão estranha jornada lhe pede então que
espere um pouco e a atravessa. Nenhum som ainda lá de dentro, mas, de repente, murmúrios.
Vozes
de crianças.
Meninas.
O
doutor apura-se para perto da porta, e ao fazê-lo descobre que o cômodo não está
assim tão desprovido ao quase tropeçar num cavalinho de balanço de madeira, e para
evitá-lo, tal movimento o põe diante de um quadro, uma pintura que antes não notara:
a de uma moça meio submersa em turvas águas, em vestes diáfanas e guirlanda.
“É
Ofélia”, murmura o médico, “a infeliz que morreu por Hamlet”.
Ao
pé da tela, alguém escrevera Os mortos e
os que dormem são pinturas, nada mais.
A
luz do aposento, agora radiosa, inunda a sala em que o doutor em apurada curiosidade
aguarda. Emoldurados na sobrepujante luminosidade, dois pequenos vultos começam
a se delinear frente ao umbral.
Mathias
as reconhece, e é como se lhe quebrassem os joelhos. O peso de tudo o que trazia
represado se liberta.
Caído
ao chão, o doutor chora. Chora como nunca antes.
Não mais as deixarei, diz, entre lágrimas, que são agora somente de alegria.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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