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Cine Virtual: A Elvira

Conto de Maurício Limeira
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Sinopse: No café do cinema, sujeito encontra ex-amante doidinha e vão assistir um filme juntos. Conversas sobre filmes, autores, narrativas, criatividade. Ainda existe muita identificação entre os dois, e ele logo descobre que o desejo também sobreviveu.


A Elvira
de Maurício Limeira

Havia um homem velho com um rabo de cavalo circulando pelo saguão do cinema.

No pôster de um filme, a mulher com maquiagem borrada não tinha expressão nenhuma.

Eram sete e quinze da noite. Sexta-feira. Numa das mesas do café do cinema, o homem de barba descrevia para a mulher a trajetória de uma família judaica na Polônia ocupada. Enquanto escutava, a mulher fingia coçar a perna cruzada sobre a outra. Assim ia subindo discretamente a barra do vestido rosa.

Em outra mesa, uma mulher de cabelo curto e óculos contava para a amiga o curso de extensão que estava fazendo. Cinema e Psicanálise. Já havia baixado na internet mais de vinte filmes indicados pelo professor. Passara cinco dias e cinco noites na frente do computador.

O café do cinema estava enchendo. Nenhuma mesa desocupada. Era assim que normalmente ficava nos finais de semana, quando todos resolviam deixar as suas casas e vir ao cinema. Em outra mesa, alguns homens reclamavam da dificuldade para estacionar em Botafogo. Eu era o único sozinho no lugar, por isso volta e meia vinha alguém perguntando se poderia pegar uma das cadeiras vazias.

“Estou esperando alguém”, eu dizia, com um sorriso simpático.

E estava mesmo. Vinha sempre àquele cinema com uma amiga. Quando nos conhecemos, íamos ao cinema juntos e terminávamos a noite na casa dela. Na cama dela. Ficamos assim dois anos, até ela resolver que havia se apaixonado por mim. Aquilo tirara todo o meu tesão, e então achei melhor desaparecer por uns tempos. Acabaríamos nos reencontrando, porém, e ficando amigos. Retomamos o cinema nos finais de semana, mas sem o sexo depois.

Chamava-se Elmira e, embora fosse mais velha do que eu, não parecia. Por implicância eu a chamava de Elvira. Ou de rainha das trevas. Não apenas pela semelhança do nome com o da personagem do filme, mas porque Elmira tinha o costume de fazer do preto a cor proeminente em seu guarda-roupa. Isso se não fosse a única cor. Eu achava fascinante, no início. Ela toda branquela, quase cintilante, dentro daqueles trajes negros. Uma das primeiras perguntas que fiz, depois de nos beijarmos pela primeira vez, foi se a calcinha que ela usava também era preta.

“É sim”, ela respondeu. E, puxando para cima a calcinha, que apareceu por sobre a cintura da calça, deixou que eu conferisse.

Gostávamos de filmes esquisitos. De preferência, os europeus do leste. Filmes que não fossem muito apegados a cartilhas ou a convenções. Não gostávamos de histórias em que o personagem dissesse que ia abrir a porta, e então abria a porta.

“Um dia vou escrever um roteiro”, Elvira dizia, “em que o homem diz que vai abrir a porta. Então ele caminha até o sofá e se senta.”

Ela vivia tendo ideias desse tipo.

“Um dia vou escrever uma história em que o homem grita ‘Cale-se!’ toda vez que o telefone toca. E o telefone obedece. Fica caladinho. Já pensou?”

Às vezes eu me perguntava por que não me apaixonara por Elvira. Mas isso foi antes. No tempo em que eu fazia perguntas.

“Pronto”, ela disse de repente. Eu nem percebi quando ela chegara e sentara ao meu lado. “Agora você não é mais a única pessoa aqui dentro sem companhia.”

É, ela lia pensamentos. Ou me conhecia muito bem.

“Já ia te ligar”, falei.

“Teu celular tá com crédito?”

“Acho que não.”

“Então não ia.”

Ela tirou o casaco preto que estava usando. Estava se exibindo. Sabia que atraía olhares, principalmente com aquela camisetinha preta e decotada. E sem sutiã. Ela fazia sempre isso, e sempre funcionava. Os homens ficavam olhando. As mulheres também.

“Esse café tá bom?”, ela perguntou.

“Se não estivesse, eu estaria cuspindo. Mas estou bebendo.”

“Vou pegar um.”

Ela se levantou e foi até o balcão. Fiquei olhando Elvira entrar na fila, então apostei comigo mesmo que ela ia conversar com alguém. Ela sempre conversava com desconhecidos, e daquela vez não foi diferente. Bastou que eu virasse a cabeça por dois segundos, e lá estava Elvira conversando com um casal. Era toda sorrisos. Enquanto observava, fiquei especulando o que passaria na cabeça do homem e da mulher com quem ela falava. O cara estaria certamente imaginando como seria na cama a doidinha de preto. A garota estaria apenas atenta ao jeito de Elvira, ciente de que agradava os homens, para fazer igual. Ou, então, estava pensando a mesma coisa que o seu acompanhante, e se imaginando na cama com ela.

Quando Elvira voltou para a mesa com o café, perguntei o que tanto conversara com o casal.

“Que casal?”, ela sempre se fazia de desentendida. “Ah. Nada demais. Ela elogiou a minha tatuagem.”

Sim, esqueci de dizer. Elvira tinha uma fábrica soltando fumaça pela chaminé tatuada no lado esquerdo das costas. Aquele desenho chamava bastante a atenção, e permitia que ela pudesse, de costas para alguém com quem conversava, virar a cabeça para trás para ver o interlocutor. Como numa posição sexual.

“Você só pensa nisso”, ela reclamou, quando externei o comentário acima.

“Você também.”

“Claro que não.”

“Claro que sim. A diferença é que, enquanto eu penso em chegar às vias de fato quando penso em sexo, você só quer despertar o desejo em todos os homens da Terra. Mas sem satisfazer nenhum deles.”

“Nenhum, não senhor. Eu dou conta de uns quarenta por cento. Se estiver bêbada, pode mandar até mais.”

Uma vez ela me perguntou se os homens ficavam intimidados com a disposição e a liberdade de algumas mulheres em relação ao sexo. Na verdade, ela queria saber se eu ficava intimidado diante dela.

“Eles acham ótimo”, respondi.

Claro que eu estava mentindo. Tudo o que eu gostaria de ouvir de Elvira era um atestado de satisfação sexual. Queria que ela dissesse que, depois de mim, nunca mais sentiria vontade de dar pra mais nenhum outro homem. Que eu a preenchia, satisfazia, que a esgotava como nenhum outro havia sido capaz.

Ela disse isso tudo. Mas eu não acreditei.

“Eles vão ver o mesmo filme que nós”, ela falou.

“Quem? O casal?”

“É. Eles parecem gente boa. Adoram Luís Buñuel. Eles vão chamar uns amigos e fazer uma maratona de Buñuel na casa deles. Eles moram no Flamengo, aqui pertinho. Na Senador Vergueiro.

“Deu tempo de conversar isso tudo só nesses dois minutos que você ficou na fila do café? Você pegou até o endereço deles?”

Ela deu então uma gargalhada escandalosa.

“Diga que não é possível”, ela desafiou. “Que eu estou inventando.”

“Eu não.”

“Diga!”

“Não vou dizer. Em se tratando de você, eu não duvido de nada.”

“É bom mesmo. Me conhece o suficiente pra saber que eu não minto nunca. Falando nisso, deixa eu te falar. Eu tô saindo com um cara.”

“Um cara?”

“É. Conheci um cara.”

“E por que você não está com ele, agora? Com o cara?”

“Ele é separado e tem uma filha. Vai ficar com ela nesse fim de semana. Ele é legal, você vai gostar dele.”

“Não, não vou. Eu não gosto de ninguém.”

“Gosta de mim.”

“Isso não é extensível a seus namorados. Não se atreva a me apresentar a ele.”

“Ok.”

“Se eu passar por você na rua, e você estiver com ele, finja que não me conhece.”

“Tá certo.”

“Porque eu vou fingir que nunca te vi mais gorda.”

“Ok.”

Então, como se entidades malignas invadissem o café do cinema, o celular de Elvira sinalizou o recebimento de mensagem. Ela tirou o aparelho da bolsa e leu.

“Era ele?”, perguntei, depois que ela guardou o celular. “Está avisando que deu Lexotan pra filha e que o caminho está livre? Você vai pra casa dele agora?”

“Era minha irmã.”

“Ah.”

“Você encontrou com ela recentemente?”

“Não.”

“Ela disse que te viu na Av. Rio Branco.”

“Ah, foi. É verdade. Tinha esquecido.”

“Você já fez alguma coisa com ela?”

“Com a Eunice? O que eu poderia ter feito com a Eunice?”

“Comê-la. Ela é fascinada em você.”

“Ela disse isso?”

“Vivia dizendo que você era inteligente. Culto. Ela nunca te deu mole?”

“Não. E, mesmo que desse, não teria acontecido nada.”

Pronunciei esta última frase tentando sinceramente acreditar no que dizia. Elvira olhou o relógio.

“Vamos? Tá na hora.”

Levantamo-nos, então, e caminhamos até a sala que exibia A Grande Beleza. Luzes apagadas, acomodados em nossas poltronas, tentei beijá-la. Mas ela não deixou.

“Ah, qual é”, falei, tentando de novo.

“Para. Tô falando sério.”

Ela não estava brava. Apenas não queria mais. Terminaríamos assistindo o filme, e até hoje não sei se não gostei de A Grande Beleza porque ele é ruim ou se foi por causa da rejeição de Elvira.

Quando saímos ela ficaria falando como se nada tivesse acontecido. Adorara o filme. Adorara a movimentação da câmera, os diálogos, a sensibilidade afiada do diretor Paolo Sorrentino, para ela um Federico Fellini melancólico e atualizado – talvez melancólico porque atualizado, ela mesma acrescentaria, embora, ainda segundo Elvira, a paixão de Fellini pelas pessoas fosse tão grande que era bem capaz de permanecer, mesmo nos dias de hoje. Ela ainda afirmaria não ter dificuldade em enxergar Marcelo Mastroianni no lugar de Jap Gambardella, o personagem que protagoniza o filme e cai tão bem sobre Toni Servillo, o ator que o veste. Elvira enxergaria, ainda, nas festas, na sociedade sofisticada e vazia, na crise criativa do protagonista, os mesmos ingredientes de Oito e Meio e A Doce Vida, temperados com o mesmo olhar que toca na ferida sem deixar de ser terno.

“E a girafa?”, ela continuaria. “Não causa a mesma reação de surpresa e deslumbramento do pavão de Amarcord ou do rinoceronte de E La Nave Va?”

Eu me limitava a concordar. Ela não pararia de falar enquanto caminhamos até a estação do metrô e, depois que nos despedimos, segui para casa. Provavelmente, seguiu falando sozinha, ou com algum passageiro que lhe desse atenção.

Abri a janela. Nunca entendi de astronomia, por isso batizava as estrelas a esmo. Aquela grande e brilhante seria Júpiter. A menorzinha ao lado, Europa. A outra, mais à direita, Vulcano. A dificuldade para conceber a distância que me separava delas só era menor do que a vontade de transpor tal distância.

“Agora era uma boa hora de você fazer alguma coisa”, resmunguei, olhando a imensidão acima da minha cabeça, que sempre me fazia sentir com a mesma importância de um verme.

Então, como se fizesse parte de um milagre cósmico, a campainha tocou. Ato contínuo, me dirigi até a porta. E então parei, no meio do caminho, e me sentei no sofá.

Conto escrito por
Maurício Limeira

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima Alex Xela Lima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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