O Menino Jesus Roubado
de João Paulo Clemente
1
A democracia, à conta da
revolução de abril, entrava na adolescência. Outubro chegava e com ele o quadro
negro, o giz branco, a secretária da professora Rute e o cristo crucificado. O
sol feliz do verão ia-se despedindo, e a imagem da escola cada vez mais viva
desfalecia os rostos dos irmãos mais novos do Pedro, o Tiago e a Maria. A
passagem diária pela taberna do Ti Zé para comer o papo-seco com molho das
iscas era o único lenitivo para a rotina escolar até ao Natal. Na taberna do Ti
Zé das iscas estendia-se um grande balcão em madeira, coberto por uma tira de
mármore gasto e riscado, e aonde eles só chegavam pondo-se em bicos de pés. As
mesas, em feitio de pipo, davam ao espaço um ar pitoresco. Também era aqui que
um tal de Jacinto terminava infalivelmente as manhãs, entornando de uma só vez
dois brutos copos de aguardente pelas goelas abaixo.
Enquanto a escola não começava
era o tempo da caça aos tralhões. Depois dos incêndios, os pintassilgos e os
melros pousavam menos por ali, e eram aquelas pequenas aves que agora tomavam
conta das serras e dos vales. As oliveiras e as árvores de fruto serviam-lhes
de poiso e de abrigo – davam vida a uma terra com cada vez menos vidas. Os
grupos dos rapazes formavam-se e preparavam a caçada. O Pedro liderava um
desses bandos, pois conhecia muito bem todas as encostas bem como as rotinas
das aves. No dia anterior, apanhavam a aúde¹ e era com ela que enganariam os pássaros.
Ainda o sol preguiçava já o Pedro andava de casa
em casa a convocar os colegas para o grande dia. Saíam as ovelhas para os
pastos e ele tinha e de as sacudir para não tropeçar nelas.
– Shô, bonecas! Shô! Deixem
passar.
Havia no ar um cheiro a
rosmaninho enquanto desciam as encostas e lá mais para baixo, na encosta do
Corvo, uma águia planava sobre os carvalhos. Chegados ao local pretendido,
armadilhavam o terreno com os costilos. Levantavam um pouco a terra fria e
húmida com uma das mãos e, com a outra, plantavam o embuste junto à árvore que
o tralhão regularmente visitava.
A ave chegava e, do cimo da
sua árvore, pressentia lá em baixo um brilho silencioso que a inquietava. Num
piscar de olhos, o voo da morte. Apenas se ouvia um pequeno som trágico.
Após algum tempo de espera, lá
vinha o bando de crianças a fazer a ronda pelas armadilhas. Subiam e desciam os
barrões² dezenas de
vezes. Não continham a emoção – “Mais um!”, bradavam. Na morte das aves, a
alegria das crianças.
O momento de glória ocorria
quando entravam na povoação com os tralhões atados uns aos outros, formando,
deste modo, um cordão que exibiam ao peito.
A saborosa crueldade unia a
criançada.
Este espírito de união e
fraternidade ajudava-os a passar melhor o tempo durante os infindáveis meses de
escola.
Os dias, as semanas iam-se
arrastando, lentamente, pesadamente, rumo a um inverno que se previa gélido. Já
os ares da serra exigiam novembro adentro os casacos quentes sepultados nos
velhos armários.
No início de dezembro, a neve
fizera uma visita, vestindo de branco os penedos mais escuros. A aldeia
tornara-se um mundo de fantasia e as crianças corriam loucas de alegria. Os
mais velhos renasciam com as brincadeiras dos pequenos.
A professora Rute, tantas
vezes severa, também ela revivia neste dia com os alunos as brincadeiras,
sempre iguais, de há três décadas. Sem aulas, com aquele doce manto branco, só
havia um plano: construir bonecos de neve e fazer a guerra da neve, a única que
deveria ser permitida a toda a humanidade.
O Jacinto também lá estava. A cara
rugosa de sobreiro dos seus cinquenta anos era escura e tenebrosa. Na sua
estranha figura semi-andrajosa, mantinha distância e observava a criançada a
brincar. Os outros olhavam-no de través e adivinhavam qualquer desgraça.
Desde a morte do pai, o Jacinto
nunca mais fora o mesmo. A tragédia dos incêndios a que esta gente se habituara
apanhara-o desprevenido a dormir no barracão lá na encosta ao pé das terras. O
Jacinto não se conformou e ia enlouquecendo. Antes, amanhava as terras com o
pai, tratava dos animais de criação e cuidava das mil árvores por quem tinha um
carinho especial. E havia sempre fartura em casa. Agora, a rilhar uma erva seca
ao canto da boca, andava sempre sozinho pelos caminhos da aldeia e pelos campos
em volta; outras vezes viam-no vir de terras vizinhas. E ganhara o hábito de se
alcandorar no cimo dos grandes penedos ovais do castro de Santiago. Visto de
longe, parecia um lobo vigilante, à espera do momento para se vingar não se
sabia de quem. Um hábito não perdera – de quando em vez plantava uma árvore.
2
Os invernos na Beira são
rigorosíssimos. Mas nas noites de geada, em que o céu está limpo, as gentes
olham a serra e não é raro verem uma estrela cadente ou qualquer corpo celeste
a cruzar o firmamento por entre os milhões de estrelas brilhantes. Parecem
indicar um caminho, como aquela que guiou os pastores na noite em que jesus
nasceu.
A noite de Natal
aproximava-se.
Na aldeia sentia-se já a
azáfama da época, e uma paz misteriosa alastrava viscosamente pelas ruas. As
crianças raspavam das pedras o musgo para o presépio. No adro da igreja
construía-se também um presépio que iluminava as noites. Um menino jesus
exageradamente desproporcionado centrava as atenções. Às vezes o vento gélido
da serra vinha sacudi-lo, mas a firme igreja de granito impedia grandes
estragos.
Os adultos também se
atarefavam.
A sra. Lurdes, por exemplo,
telefonara já a seu filho que em Lisboa, tão longe!, iria passar o Natal
encandeado por montras e praças luminosas mas com o coração preso na luz que brilhava
junto ao menino, na igreja da sua terra. Este ano não fora possível vir.
O sr. José, por outro lado,
partilhava com o sr. Amílcar o vinho do seu³. As videiras que entrançara
delicadamente saciavam-no com um vinho aromático e ainda com a graça da partilha.
Era-lhe doce aquele gesto, tido com quem durante o ano punha a conversa em dia,
na rua, no campo ou à volta de uma mesa na taberna do Viegas. De copo na mão,
lembrava ao amigo Amílcar os dias mornos de setembro, passados na vindima com
os parentes da cidade que agora se haviam ido. Eram dias calorosos, a festa da
família. Logo de manhãzinha, sob a fresca respiração da serra, buliam os cestos
cheios de uvas. Os burritos carregavam-nos por vales e encostas até ao lagar do
Cândido.
Depois era a feijoada ao
almoço para retemperar forças e cumprir rituais – na pisa da uva os homens
transformavam o bago em vinho, num abraço fraterno. Cá fora ouvia-se um eco
granítico de cantigas – Uva tinta
amadurada… Um acordeão soprava às vezes uma música popular. E o sr. José
esforçava-se por ilustrar em toscas palavras os ocres e os reflexos dourados da
paisagem.
A noite de Natal
aproximava-se.
Nesta altura, também se
cumpria o ciclo da azeitona. Organizavam-se e distribuíam-se as tarefas no dia
anterior sob as ordens do Alípio. No próprio dia, de madrugada, antes de
atacarem os olivais, sossegavam o estômago com a sopa de couves e o mata-bicho.
As mulheres bebiam o café negro feito à lareira; por vezes misturavam-lhe o pão
esfarelado numas malgas e adocicado com açúcar amarelo. Depois saíam em
ranchos, quebrando a geada dos caminhos, e de longa vara às costas guiando os
burros. Os mais pequenos ficavam a dormir. À exceção do Pedro, do Tiago e da
Maria, que acompanhavam os pais, os outros meninos só mais tarde se juntariam a
eles.
Quando chegavam, já a figura
do Jacinto os olhava do cimo de um barrão. Aquele diabo não dorme?, resmungavam
alguns. Lá longe, escavava furiosamente com uma enxada, e depois espetava umas
varas no chão de urze que ainda recuperava da terra queimada. Talvez umas
árvores, como era seu hábito. Mas até este costume vulgar lhe estranhavam
agora, para o velho fantasma em que o vadio se transformava. Muitos temiam-no.
Estendidos os toldos, lagos
negros pelos campos fora, as varas sacudiam a cabeleira das árvores e para as
olivas mais teimosas havia necessidade de subir. Essa era a tarefa dos mais
novos que arriscavam a queda para sacudir uma que outra.
– Cuidado, Tonito!
Rente ao chão gelado, grossos
dedos gretados e tolhidos pelo frio catavam as que caíam fora dos toldos para
cestos de vime. A tarefa era árdua. De modo que, de tempos a tempos, o Sr.
Alípio servia o copo de três⁴. Reavivados no fervor da bebida, alguns entoavam
uma cantiga, logo glosada. As raparigas solteiras permitiam proximidades e
arriscavam um olhar mais travesso, quem sabe não estaria por ali o seu príncipe
encantado. À primeira cantiga seguiam-se outras e outras – Ó rama, ó que linda rama…, O meu pai é Manuel Cuco..., Ó Oliveira da
serra..., Ó malmequer mentiroso..., O meu coração é terra… – até que o dia
amainasse. A Manuela gostava especialmente da última:
O
meu coração é terra
hei-de o mandar lavrar
semeá-lo de desejos
de quem por mim perguntar
Toma
lá dá cá
dá cá toma lá
o meu coração
arrecada-o lá
Dei
um ai tu não ouviste
dei outro não deste fé
o meu coração é teu
o teu não sei de quem é
Ai,
ai, meu amor ai, ai
quem der um ai alivia
em certas ocasiões
se não desse um ai morria
A Maria e as outras meninas
entretinham-se a escolher a rama. O Pedro e o Tiago, enquanto ajudavam, olhavam
as terras do Jacinto onde costumavam subir aos grandes carvalhos e sobreiros
antes dos incêndios. No lugar deles agora só uns magros troncos se erguiam, e
os mochos já não piavam nem faziam aí os ninhos. Lá estavam também os restos
metálicos do picanço, do velho picanço que tanta água puxara para dar de beber
aos campos.
Ainda antes do final do dia,
comia-se a farta merenda – batatas albardas, pão, azeitonas, queijo, chouriça –
e bebia-se o vinho do nosso⁵. Seguia-se o erguer da azeitona. Atirava-se ao ar
o fruto vezes sem conta, até que o vento lhe separasse a folha andarilha.
Depois de ensacada, a azeitona, já limpa, ia finalmente na albarda dos burros
que subiam a custo as íngremes encostas à fria luz do anoitecer.
A noite de Natal
aproximava-se.
Nas casas de pedra,
acendiam-se já as lareiras há muito. Depois da escola ou do trabalho dos campos
sabia bem o conforto deste fogo caseiro. As chaminés fumavam constantemente e
exalavam no ar o cheiro resinoso da madeira ardida. Então as crianças da aldeia
lembravam-se de que, na noite de Natal, à meia-noite, tinham de colocar o
sapato ou a bota na chaminé – o menino jesus chegaria para deixar aquelas
meias, ou a camisola de lã que as mães mandavam fazer às manas Valente; mais os
deliciosos chocolates em forma de pai-natal ou de rena ou de carrinho.
A família do Pedro, do Tiago e
da Maria vivia, numa quelha quase ao dobrar da igreja, num casebre sem luz e
por cujas frestas do granito o vento uivava. Sobreviviam à custa de algumas
dádivas e da jorna puxada nas terras pelos pais Afonso e Manuela, que não
conseguiam amealhar nenhum, nem para um par de meias para os filhos. O pai,
desalentado, procurava no álcool o conforto diário. Mas os meninos, muito
humildes e tolhidos, mantinham a esperança. O Pedro olhava as velhas botas, a
pedirem pão, mostrando já o negrume da bocarra. As dos irmãos seguiam-lhe o
exemplo. Porém, para os animar, ia colocar uma delas na chaminé. Era nessa bota
tão vivida que ele ansiava a surpresa do menino jesus. Talvez este ano o Natal
seja diferente, quem sabe.
3
Pela aldeia fora, há nas
janelas um que outro pisca-pisca dos cordões de luzes comprados na grande
cidade; as lareiras das casas projetam clarões nas ruas, e a povoação parece
ganhar novas personagens feitas de sombras. Um vulto, não, dois vultos avançam
pelo meio delas. Um cambaleia lugubremente, é o Afonso. Pelo estado, vem de
certeza da taberna do Viegas onde, como é hábito, bebe incontáveis copos de
três que remata com dois cálices de aguardente. O outro, mais hirto, mais
feroz, mais sombrio, percebe-se que é o Jacinto. Traz um cabo na mão, parece de
um machado, e segue o Afonso até casa.
Em casa, a Manuela
desmultiplica-se na preparação da consoada. Fora acender a pinha a casa da
vizinha Lurdes, sua única confidente, e agora põe a estalar na lareira duas
magras cavacas para aquecer a panela de ferro. Por vezes lá vêm as corcódoas
disparadas contra a roupa. Outras vezes são os restos de carvões que saltam
para a panela da sopa onde ficam a boiar e que, mais tarde, se haverão
involuntariamente de trincar. Os miúdos tossicam com o fumo que se esbate na
fuligem da cozinha. Das prateleiras decoradas com recortes artísticos de
jornais, a Manuela recolhe as batatas e as couves que o Pedro e a Maria ajudam
a descascar e a lavar. São para fazer a sopa de Natal juntando-as às
badanas do bacalhau oferecidas pela sra.
Rosa. Acautela também a candeia com petróleo para terem luz à ceia.
De repente, como quem acorda
de um sonho, lembra-se que ficara de mandar os petizes a casa da Sra. Fátima:
– Ai esta minha cabeça! Pedro,
vai a casa da sra. Fátima buscar as
filhós! No regresso, traz um cântaro de água!
A sra. Fátima nunca se esquecia.
Religiosamente, todos os anos, oferecia-lhes em abundância o doce típico da
época. Para ela, a solidariedade não era uma palavra oca. Estava sempre pronta
a dar alguma coisa. À vizinha Emília, por exemplo, a quem faltara este ano o
azeite, levara-lhe uma farta almotolia para a ceia de Natal.
– Tiago, vens comigo?
– Sss… sss… siiim, sss… siiim! –
gagueja esforçado o irmão mais novo.
Ao saírem, assustam-se ao
darem de caras com a figura transtornada do pai.
– Andais sempre no laró!
Quando o patrão não está em casa… é uma festa!… – ralha.
No caminho, junto ao Grande
Cruzeiro, passam pelo sr. Rodrigues, o pastor que, de cajado na mão e manta ao
ombro, recolhe as ovelhas para a loja da casa – elas ajudarão a aquecer, sob a
sala, a grande noite de Natal. Ao Pedro, embalado pelos chocalhos, parece-lhe a
imagem auspiciosa, lembrando-lhe o presépio. Mas rapidamente se desvanece: a um
canto de uma quelha cresce o vulto do Jacinto a espiar a casa do Alípio,
sabe-se lá porquê. E segue, assustado, toca o sino da igreja a primeira para a
missa do galo.
O Jacinto espia, de facto. E
vê chegar o abade a casa do Alípio.
– Venha com Deus, sr. abade!
Faça favor de entrar!
Este ano vem consoar a casa do
presidente da junta. Ali nada falta. O anfitrião alargou os cordões à bolsa
para agradar ao pároco. Presunto, queijo da serra, chouriça caseira, pão de
centeio e outros tantos petiscos de chorar por mais. Lá está também o
pão-de-ló, bolo de ricos, em terra onde pobres, quase todos, vivem com o pão
negro de cada dia. O abade não liga muito a essas mordomias. É gente simples e
estima todos. Tanto come na casa dos ricos como na dos pobres. Por onde passa,
há palavra de esperança. É, por isso, respeitado. Pelas ruas da paróquia há
sempre um Bom dia! ao sr. Horácio,
ateu inveterado, ou um Até logo! à
sra. Lucinda, que não falha uma missa e até mesmo às vezes um Viva o benfica! ao sr. Romão, para quem
a instituição é mais que uma religião. Na taberna do Viegas não é raro vê-lo a
acompanhar os paroquianos numa sagres, e assim cumprir a mensagem evangélica –
fazer-se um com os outros.
– Ora viva! Aqui, parece que o frio está
proibido de entrar!
Duas lareiras ambientam a
casa, a da cozinha e a da sala de jantar. O Acácio, irmão do Alípio, entrega ao
abade um copo cheio do bom vinho da casa. Aristides, o seu cunhado, também o
saúda emborcando um farto gole.
– Então como vai o governo da nação… ou
melhor, da freguesia? – interpela o abade.
– Muito trabalho, sr. abade!
Para se contentar o povo, é necessário fazer mais malabarismos que o circo do
Zé Castrim.
– Não são já no início de
março as eleições para as autarquias?
– São, mas nem era necessário.
Está tudo controlado! Não estou a ver ninguém a meter-se em alhadas,
candidatando-se contra mim! – ironiza o presidente.
– Não diga isso! Olhe que o
seguro morreu de velho!
– Não há ninguém que tenha a
coragem de me enfrentar. Há doze anos que tenho tudo controlado. Não é assim,
Aristides? – E pisca o olho ao seu tesoureiro, que abana a cabeça para cima e
para baixo como boneco desengonçado.
– Ouvi dizer que este ano ia
haver novidades – atalha de novo o pároco. – Talvez seja necessário fazer mais
alguma coisa. Olhe, por exemplo, ali por aqueles tristes da quelha real…
– Quem, o Afonso? A esses eu
já lhes dou trabalho! Eles é que não sabem poupá-lo. – E olhava o irmão como
que solicitando aprovação.
– Talvez, sr. presidente,
talvez. Mas era necessário mais qualquer coisa, para os filhos…
– Se ele não o derretesse na
taberna…! O que ele precisa é de trabalhar mais. Outros nem sequer lhe davam
trabalho, se o vissem no estado em que eu às vezes o vejo. E se é quem eu penso
que vai às eleições, é só fumo para tapar os olhos à gente. Isso são vozes de
pardal que andam no ar. Na hora agá desistem!
– Olhe que não! Este ano
parece que vai ser diferente. Na verdade, não lhe parece, sr. presidente, que a
freguesia ficaria a ganhar se houvesse mais candidaturas?
A insistência do abade
incomoda o Alípio, já de rosto afogueado, não se sabe se da conversa, se do
vinho, se da lareira. É quando a mulher cordialmente chama:
– O bacalhau, as couves e as
batatas esperam por nós!
E todos seguem em procissão
para a grande sala de jantar.
Em casa da sra. Fátima
prepara-se a sopa de Natal que os miúdos não apreciam. Batem à porta. Quem abre
é o Carlos, companheiro do Pedro no colégio da vila.
– Olá, Carlitos. A tua mãe
está? Venho buscar as filhós – pede o Pedro, num tom envergonhado.
– Não, foi à mercearia da sra.
Carlota. Entrai, está muito frio. Ela vem já.
Na mercearia, a sra. Fátima
escuta a novidade da terra. O Ruas, assim alcunhado pelos hábitos andarilhos,
alcovita a última:
– É verdade, sim senhora! O
filho do sr. Luís fugiu ontem à noite com a filha da sra. professora para a
cidade.
– Uma rapariga tão prendada!
Vejam lá, a filha da senhora professora D. Rute, fugir com aquele pelintra! –
exclama indignada a sra. Carlota.
– É uma vergonha! – concorda o
Ruas.
– Mas a culpa não é da menina!
– intervém a sra. Gertrudes. – O culpado é aquele desgraçado, ele e as suas
falinhas mansas! Ele pensa que, lá por ter ido estudar para a grande cidade,
com uma mão à frente e outra atrás, diga-se!, pode fazer o que lhe apetece!
Como se atreve, o pobretana, a envolver-se com a filha da sra. professora?!
– Para tomarem esta atitude, é
porque lá tinham as suas razões! – contraria a sra. Fátima, que não resiste em
defender os jovens sonhadores.
– Não me diga que ainda está a
defendê-los! – replica quase ofendida a sra. Gertrudes.
– Quando percebermos que só com o coração
preenchido encontraremos a verdadeira felicidade, talvez os entendamos. –
conclui, sorrindo, a sra. Fátima.
Paga e regressa a casa,
acompanhada por uma enorme estrela cintilante que parece ter pousado
teimosamente em cima da torre da igreja.
Entretanto Pedro e Tiago,
atónitos, assistem, no pequeno televisor a preto e branco, a um episódio da
série Espaço 1999. O Carlos e os
familiares que tinham vindo da capital continuam o cerimonial natalício.
Sentada num velho banco de madeira, a avó amassa as filhós num grande alguidar
de lata. De braços mergulhados no recipiente, todos dão sugestões: “Mais um
ovo! Mais azeite! Tem pouco açúcar!”. As filhós ficam a fintar ao pé do lume
tapadas com um pano de linho branco; os primos mais novos do Carlos acomodam-se
de perna cruzada sobre a manta de farrapos e guardam-nas como um tesouro sem
arredar pé. A avó continua a tarefa. Estende a massa num joelho sobre um pano
que já esteve mais branco e levanta-a no ar. Depois faz com ela pequenos
círculos amarelos rendilhados que deposita na panela com o azeite a chiar. Ali
mesmo, sentados nos mochos, os mais novos maravilham-se.
Enquanto decorre o espetáculo, chega muito
pacífica a sra. Fátima. Vai ao armário e retira um embrulho de papel vegetal
que entrega ao Pedro. A acompanhar as filhós vêm deliciosos chocolates.
– Feliz Natal! – exclama num sorriso
silencioso.
– Obrigado, senhora dona Fátima! – retribuem
os dois meninos de olhos cintilantes.
No regresso a casa, o Pedro
sente que o Jacinto ainda continua na quelha. Hesita primeiro; depois, com o
coração aos pulos, aproxima-se. Abre o embrulho e retira dele três filhós que
oferece ao noctívago.
– Feliz Natal – balbucia o
garoto.
O Jacinto aceita, num obrigado
penumbroso, e os meninos entram em casa. De fora, ouve-se o vozeirão do pai,
que ralha. A Maria refugiara-se numa espécie de quarto e a mãe, resignada no
seu silêncio, derrama uma lágrima. Afinal o petróleo não chegara e a candeia
apagara-se. A
lareira, desmaiada, vai sacudindo as sombras do casebre, mas não é suficiente
para escorraçar o frio que o vento reaviva pelas fendas do granito.
Puxam a mesa e sentam-se mais
perto da lareira. Comem a sopa de couves, as batatas regadas com um fio de
azeite e um pão de trigo duro. As filhós decidem guardá-las para depois da
missa do galo, que nada mais têm para comer.
Até ao pique, a última chamada
para a missa, só as crianças articulam meia dúzia de palavras em jogos de
fantasia e para alinharem cuidadosamente as velhas botas à lareira.
Meia-noite, finalmente,
suspira a mãe. Veste uns andrajos aos meninos e seguem para a igreja, sem o
pai. Ao saírem, sentem um calafrio quando percebem que o Jacinto ainda ronda
por ali. Mas é noite de Natal e por isso a mãe deixa a porta destrancada. E
reza:
Eu
vou-me embora,
Vou para fora,
Rios, vales e montes encontrarei,
Os meus inimigos
Sejam agravados e escondidos,
E a Senhora da Guia
Vá na minha companhia,
O Anjo da Guarda,
Ao meu lado direito,
A companhia que ele fez,
No ventre de sua Mãe,
Me faça a mim também, até Jerusalém.
4
No adro gélido da igreja unem
as mãos e contemplam misticamente o presépio. Lá dentro começa a novena do
menino. As crianças cantam “Vinde já, ó Deus menino, vinde alegrar os
mortais...”. A cerimónia avança e o abade, revestido do manto sagrado, convida
todos à partilha.
Já no final, o odor do incenso
– sinal de que o menino vai ser adorado. Os mais novitos despertam com a
intensidade olfativa e com as vozes do povo genuíno que canta em coro:
Entrai
pastores entrai
por esses portais adentro
vinde adorar o menino
no sagrado nascimento
Ó meu
menino jesus
convosco é que eu estou bem
nada deste mundo quero
nada me parece bem
Nessa
cruz suspensa
jesus nosso bem
levai-nos à glória
para sempre amen
Alguns populares choram, não
se sabe se de tristeza ou alegria. A Senhora Medianeira de Todas as Graças
assiste de mãos abertas à manifestação, talvez querendo retribuir o afeto e a
devoção dos humildes ao seu filho. “Quem meus filhos ama, minha boca adoça!”,
diz o povo.
A Senhora Medianeira de Todas
as Graças, padroeira da aldeia, parece sorrir do cimo do pedestal. Antes da
bênção final, o abade convida todos a orar por aqueles que, naquela noite,
ainda vivem sem amor. Os três irmãos trocam de relance um olhar de
cumplicidade.
Após a bênção, como já é
costume, os três irmãos sobem ao altar da Senhora Medianeira para apagar as
velas. O Pedro e a Maria entram por uma das portas do altar e o Tiago pela
outra. Um oh! de espanto foge-lhes da boca. Mas que é isto, minha Nossa Senhora
Medianeira! Que está a suceder? Escondidos por entre os inúmeros jarros de
flores, estão dois pares de botas novas, cujo sebo ainda brilha, e umas
botinhas de princesa, recheadas até ao ciminho de doçuras! Ao lado, muito bem
dobrados, três pares de meias de lã e três camisolas de malha azul, de um azul
muito celeste. Quem fora, que sabia de tudo? Terá sido um milagre da Nossa
Senhora Medianeira? “Eu estou sempre convosco”, ouve o coração do Pedro. O
entusiasmo maravilha de tal modo que o abade tem de sacudir as gentes para fora
do templo.
Saem em alvoroço para o Largo
da Figueira e vão aquecer-se ao lume comunitário. Sob a fria noite estrelada,
todos mexericam a surpresa. Quem foi, quem não foi, não há entendimento. O sr.
Amílcar?, a sra. Fátima?, o sr. Viegas?, a sra. Lurdes?
– Ó Afonso, já foste ver os
teus filhos? – desafiam alguns.
O Afonso não percebe. Quando
os meninos saem da igreja de mãos cheias, vão dar a novidade ao pai.
– Pai, olha o que recebemos!
O pai sorri num estranho
esgar. A mãe, muito serena, toma-lhe a mão e todos seguem para casa.
Assim que entram, novo espanto
os assalta: a lareira arde energicamente, com um molho de lenha ao lado
acabadinha de cortar; sobre a mesa, aprumadíssima, tanta comida como nunca
tinham visto, presunto, queijo da serra, chouriça caseira, pão de centeio e até
pão-de-ló, meu Deus! Quem foi, quem foi?!..., perguntam-se. Alguma partida,
duvida a mãe. Ao lado, muito iluminado, um menino jesus enorme e sorridente,
parecidíssimo com o do presépio da igreja… Ou é o mesmo?… As mesmas roupas…
Roubado!... Mas afinal?!... E as botas,
inquietam-se os meninos, desapareceram!
– Olha, mãe: são árvores!
No lugar das botas, três
pequenos vasos. Um tem uma oliveira, outro um carvalho, o terceiro um pinheiro
bravo.
Emocionados, ouvem uma voz
vinda de fora:
– Obrigado, meninos! Vocês
foram o melhor presente deste Natal! Sejam felizes e façam feliz o vosso pai! E
as árvores… vocês sabem para que são.
Jacinto! É a voz do Jacinto! O
vagabundo, o vadio, o roto, o fantasma. Foi ele o medianeiro de Maria, a mãe do
Menino Jesus Roubado! Os presentes! A comida! A lenha! As árvores! Por isso ali
estivera, na penumbra e ao frio, à espera de que todos saíssem para tudo
ordenar!
A lareira brilha mais
intensamente. A pequena Maria pega na mão do pai.
– Pai…
E reza: Avé Maria, cheia de graça. E com ela o pai, a mãe e os irmãos.
Do Largo da Figueira,
juntamente com os farrapos de fumo, chega uma música suave:
O
meu menino é d'oiro
É
de oiro fino
Não façam caso que é pequenino…
__________
1. Formigas com asas que serviam de isco.
2. Socalcos.
3. Cultivado por ele próprio.
4. Copo que servia o vinho normalmente no intervalo das refeições sem acompanhamento ou acompanhado por alguns petiscos ou tapas.
5. Cultivado por ele próprio.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
Copyright © 2021 - WebTV
www.redewtv.com
Comentários:
0 comentários: