Uma Conversa nos Bancos Gelados de um Hospital
de Daniel Calmon
I
São
três horas da manhã. Ainda não consegui dormir, Marina sente dificuldades de
respirar e cólicas fortes. Suor frio escorre por seu corpo eu não sei mais o
que fazer para ajudar. Já tínhamos ido ao hospital duas vezes e ela já havia
recebido duas altas. Tomava os antibióticos receitados corretamente, mas nada
aliviava seus delírios de febre e a dificuldade em respirar. Sua pele fervia como
uma panela de pressão não confiável prestes a explodir. Lili se mexia na
barriga de Marina, no auge de seus oito meses de gestação, minha preocupação
era dupla. Tomei-as nos braços e decidi que voltaríamos ao hospital, melhor lá
do que aqui. Entramos no elevador do prédio, moramos no nono andar. Os gritos
de dor de Marina aumentam proporcionalmente à lenta descida para o subsolo onde
estava a garagem.
Observo
o grande e brilhante espelho do elevador, a visão é triste. Um jovem casal de
29 anos com expressões desesperadas em seus rostos. Os cabelos negros e longos
de Marina estavam oleosos e despenteados, seu rosto exprimia um misto de dor,
medo e vazio. Sua pele branca estava mais clara do que nunca, numa palidez
suada daquelas que revelam que nada está bem. Eu fingia uma não preocupação
preocupada repetindo algo como "Calma, vai dar tudo certo". Dizia
isso mais para mim do que para elas. Eu estava de shorts curtos esportivos e
uma camiseta preta que estampava "Don't Panic", dizeres clássicos da
obra de Douglas Adams, nada mais irônico.
Meu
estômago dói como nunca.
Chegamos
à garagem. Coloco Marina no banco do carona e afasto ele para traz, dando mais
espaço para suas pernas. Moramos a oito minutos do hospital, seis se pegarmos
os semáforos abertos.
Não
posso correr demais, mas não posso ir devagar. Mantenho um ritmo
semi-imprudente, daqueles que são relevados quando há uma emergência. Enquanto
dirijo, me lembro de uma triste história que ouvi há uns anos no jornal. Um
casal, depois de alguns anos tentando incansavelmente ter filhos, finalmente
engravidou. Os meses foram passando e a expectativa também aumentava, o
quarto do bebê já estava pronto, só aguardando o grande momento. Até que
complicações no oitavo mês mudaram tudo. A mãe precisou ser internada e aí
começou o inferno na vida deles. O grande sonho em poucos dias se tornou a
maior de todas as desilusões na vida daquele casal. O rapaz viu sua mulher
amada, e mãe de seu filho, deixar de existir e deixar com ele uma pequena e
indefesa criança que nunca viria conhecer sua mãe.
Isso
não pode acontecer comigo.
Chegamos
rápido ao hospital. Saio do carro correndo, tentando de alguma forma segurar
uma mulher grávida nos braços enquanto traziam a maca. Marina estava
desfalecendo, já mal pronunciava as palavras e sua respiração falhava. Segui a
maca junto com os paramédicos até certo momento em que não me deixaram continuar.
"Somente pacientes a partir daqui", disseram.
Fico
perdido por entre os corredores do hospital, acompanhado somente do desespero e
do medo de perder quem mais amo.
Procuro
uma lanchonete. Odeio hospitais, mas creio que o pior local do hospital é a lanchonete.
Elas funcionam como pequenos espaços onde a doença de quem se ama pode ser
esquecida. Um salgado e um refrigerante que devem revigorar a alma
semi-enlutada. "Obrigada, volte sempre". Porra, que indelicadeza.
Comi rápido, já há algum tempo ando sem apetite. Depois fui até à sala de
espera aguardar por alguma nova notícia vinda de dentro do recinto no qual fui
impedido de entrar.
Sentei-me
em um dos bancos ali da sala. São quase quatro horas da manhã, a sala está
praticamente vazia. Além de mim, um homem negro de cabelos brancos, que devia
ter por volta de uns sessenta anos. Lê um livro que aparentemente é uma Bíblia
cristã. Acho engraçado como nessas horas todos se lembram de Deus.
Enquanto
eu me sento ele me olha e sorri em sinal de comprimento. Devolvo o sorriso e me
acomodo nos bancos duros e gelados do hospital, meu celular está sem acesso à
internet e na sala não tem nada que me sirva de distração. Balanço as pernas
num nítido sinal de preocupação, que aparentemente foi percebido pelo senhor de
cabelos brancos. Ele fecha seu livro sagrado olhando-me nos olhos.
II
—
Noite difícil? — Perguntou o velho cristão.
—
Nem me fale — respondi com um suspiro de cansaço. No fundo, eu estava feliz com
a possibilidade de uma conversa.
—
Imagino que você não está aqui a passeio — disse o velho com um sorriso manso
no rosto. — Então, quem te espera lá dentro? — perguntou enquanto apontava com
a cabeça para a porta que nos separava da área dos pacientes.
—
Minha esposa e minha filha estão lá dentro — dizer isso em voz alta me fez
começar a perceber a gravidade da situação. Tudo o que eu mais amava estava
separado de mim por uma porta de hospital enquanto restava-me a esperança de
tudo ocorrer bem.
—
Quantos anos tem a sua filha? — Perguntou-me como quem realmente se
interessava. Algo naquele senhor transmitia paz.
—
Na verdade minha esposa está grávida, de oito meses. Ela parece estar com uma
pneumonia. Já há uns dois dias ela está muito ruim e nessa noite ela piorou
demais.
—
E você, como está se sentindo?
Silêncio.
—
Não sei — disse enquanto meu coração aumentava suas batidas. — Estou com medo.
Medo delas morrerem.
—
É um medo justo. Um pouco ansioso talvez, mas um medo honesto — disse o velho.
— A propósito, meu nome é Jules, Padre Jules.
—
Padre? Não imaginava. Não sabia que vocês andavam sem a fantasia — Falei num
tom de surpresa. Acho que eu nunca tinha conversado com um padre antes.
—
Por fantasia você quer dizer a batina? — disse o padre enquanto abria um
sorriso branco por debaixo de seu bigode. — Não acho necessário usá-la, me
incomoda, se assim posso dizer — continuou ele num tom descontraído. — Mas
alguns mais puristas não vão gostar dessa minha fala, se apegam demais aos
símbolos e ao passado. Acho uma besteira, Deus tem coisas mais importantes pelo
que se importar.
—
É, fica melhor de calças e camisa — mantive o tom descontraído. — Mas e você,
está acompanhando alguém?
Uma
conversa com um velho-padre-não-conservador. Era exatamente esse tipo de
distração que minha mente estava precisando.
—
Uma senhora da igreja caiu da escada de seu sobrado. Ela é viúva sua filha mora
em outro estado. Não recebe muita atenção da família — a sua fala demonstrava
carinho pela senhorinha. — No fim, o que restou para ela foi a Igreja.
Frequenta a missa todos os dias. Às vezes até duas vezes no mesmo dia. Parece
ter cansado de viver. Reza como que se quisesse que Deus a buscasse logo — ele
mantinha um olhar distante, como que refletindo sobre a vida da fiel. — Uma
vizinha dela me ligou nessa madrugada. Ouviu o barulho da queda e gritos de
dor. Conseguiu entrar na casa e socorrer a coitada da viúva. Aparentemente
quebrou a perna.
—
E me desculpa perguntar — geralmente tudo o que vem depois dessa frase é uma
merda, — mas você é obrigado a acompanhar os fiéis no hospital, mesmo que de
madrugada?
—
Bom, meu filho — sua voz era como a de um avô carinhoso instruindo um neto
infante, — aparentemente você não entende nada sobre o que um padre faz, estou
certo?
—
É, não sou o melhor exemplo de pessoa religiosa. Creio que você é o primeiro
padre com quem converso.
Ele riu
—
Não sou obrigado a trazer ninguém. Mas os fiéis são minha família. Afinal,
ninguém te obrigou a trazer sua esposa e filha, não é mesmo?
Acho
o paralelo do padre um pouco exagerado, mas entendo. Não consigo imaginar a
vida sem nunca poder ter uma família. E olha que nem penso em relação a
todo o prazer sexual reprimido. Falo somente em relação ao suporte familiar
mesmo. Não que eu ignore o prazer sexual, é claro.
—
Tudo bem, já entendi — eu disse sorrindo. — Pelo menos é uma grande família não
é mesmo?.
Silenciamos.
Daquela forma constrangedora que ocorre quando duas pessoas se conhecem e não
tem assunto o suficiente para conversar. A conversa se torna um grande jogo de
quem propõe os melhores assuntos ou de quem vai conseguir a melhor desculpa para
sair do ambiente primeiro. Ambas se olham como que esperando quem vai ter uma
ideia para se safar antes, todos querem o mesmo ali, sair da situação.
Não
era o meu caso no momento, eu apreciava a companhia do padre. Não sou uma boa
companhia para mim mesmo. O pior inimigo que alguém pode ter é si próprio. Eu
vivo tentando fugir de mim. Fujo nos filmes, nas músicas, nas pessoas. Fantasio
também diversas vidas alternativas para viver. Ultimamente eu ando fugindo de mim
pesquisando tudo o que era possível sobre paternidade. Lili está prestes a
nascer e eu estou me dedicando a ganhar o prêmio de melhor pai do mundo.
Eu
não tive um pai presente. Meus pais se divorciaram quando eu tinha nove anos,
talvez por um pouco de culpa minha. Depois meu pai sumiu e nunca mais fez muita
questão de se aproximar. Foi uma das piores épocas da minha vida, e a
responsável pelo meu gasto anual de quatro mil reais com a análise psicológica
semanal. Por muito tempo não consegui acessar as memórias daquele tempo. Ou
quando conseguia, tudo era um borrão fantasioso. Nos últimos dois anos, depois
de me ver forçado a começar a análise, comecei a revisitar esse bosque escuro e
deserto da minha mente. Meu estômago queima.
III
Tudo
começou quando eu tinha sete anos. Sou filho único, meus pais até então tinham
uma ótima vida, o que também me garantiu uma ótima primeira infância, ao menos
economicamente. Minha mãe era uma linda mulher loira de cabelos curtos e
ondulados. Tinha olhos azuis acinzentados.
Essa
mulher conheceu o marido, que depois veio a ser meu pai, enquanto ambos
estudavam na mesma Universidade. Ela cursava Direito e ele Economia. O jovem
rapaz alto, magro, de cabelos escuros e estilo pensadamente desleixado, logo a
chamou atenção. Nos seus trinta e poucos anos, aquele a quem eu aprendi a
chamar de pai ainda mantinha um certo porte atlético. Dava aulas naquela
Universidade em que eles estudaram no passado.
Como
ambos trabalhavam durante todo o dia, uma moça cuidava de mim durante as
manhãs. Não me lembro bem do motivo, mas houve uma semana em que ela não pôde
ir ficar comigo e meus pais se revezaram em quem me levaria para o trabalho. Fpi
na quarta feira daquela semana que tudo começou a mudar.
Eu
me lembro de ficar sentado na mesa do meu pai enquanto ele ensinava suas coisas.
Lia meus livros enquanto ele dava suas aulas. Percebi que ele não parava de
olhar para uma aluna de cabelos pretos e lisos chamada Samanta. Ela parecia ser
a aluna favorita dele. Respondia todas as suas perguntas e ria de todas as suas
piadas que para mim não tinham nenhuma graça. Eu não gostei da Samanta. Me
lembro de ficar com raiva dela. Quando acabou a aula ela veio conversar com meu
pai, e comigo.
—
Você é lindo rapazinho, puxou o pai — disse Samanta enquanto olhava com um
olhar de canto para meu pai.
—
Esse aí parece é com a mãe, olha esses olhos — ele fingiu ignorar o elogio.
—
Obrigado — respondi.
—
Conseguiu a noite de amanhã, prof? Ou vou ter que ficar sozinha de novo? —
Samanta falava com uma voz doce e um sorriso provocante, por mais que na época
eu não soubesse que aquele era um sorriso provocante.
Meu
pai apontou para mim com a cabeça e respondeu a ela que depois conversavam mais
sobre isso, mas que ela não passaria a noite sozinha. Algo assim.
Naquela
hora tudo aconteceu de forma tão corriqueira que eu não achei que essa memória
ficaria guardada comigo durante tanto tempo. Parecia somente um acontecimento
banal como esses que esquecemos todos os dias.
Mas
foi no dia seguinte que essa memória viria a se tornar um ponto crucial na
minha vida. Minha mãe me buscou na escola no final da tarde. E disse que
iríamos juntos ao shopping comer e ir ao cinema. Seria uma noite de mãe e
filho. "Quem sabe até podemos passar na livraria e comprar um livro novo,
o que acha?", ela disse. Filmes e livros eram meus passatempos favoritos.
Nunca fui ensinado sobre céu e inferno, mas se um céu existe, naquela época ele
seria uma mistura de biblioteca e cinema para mim. Fiquei feliz e animado com
aquela noite surpresa.
—
Hoje somos só nós dois, seu pai tem compromisso — disse ela enquanto dirigia em
direção ao shopping.
—
Eu sei, ele vai sair com a Samanta para ela não ficar sozinha durante a noite.
Crianças
são inteligentes. Elas escutam. Elas fingem não escutar para que os adultos
falem. Mas elas escutam. E crianças também têm o hábito de falarem muito,
querem mostrar que sabem de tudo. Porra. Por que eu fui falar isso para ela?
IV
Famílias
são complicadas. Talvez o ponto positivo de ter como família os fiéis de sua
igreja, seja que assim você mantém certa distância de segurança. Enquanto
alimenta a fé daquelas pessoas o padre pode receber carinho e atenção em troca.
No fim, todos lá estão preocupados com a mesma coisa: ir para um céu ou escapar
de um inferno.
O
silêncio entre nós dois, em sua forma constrangedora continua. Alguma coisa
nesse padre me traz um misto de paz e desconforto. Não sei explicar o porquê.
Sinto aquele sentimento que você experimenta quando olha para um lindo pôr do
Sol na praia. Aquela beleza te traz paz, mas uma certa tristeza também. É uma
paz desconfortável, que te faz lembrar que nem tudo na vida é belo como aquela
paisagem. É um sentimento que traz um quê de mistério. É o que eu sinto enquanto
converso com o padre Jules.
—
Padre, me diz, por que tem que existir um céu ou um inferno? Qual o problema
com a vida aqui? — eu disse quebrando o silêncio.
—
Me diz você. Você está feliz agora? Tem o sentimento de que tudo está certo?
—
Mas qual é a garantia de que há um lugar em que tudo vai ser melhor? Ou quem
pode ter certeza de que não fomos nós mesmos que inventamos um escape para
nossas próprias desgraças e tragédias?
—
Filho, você quer certezas. Qual a graça de viver assim? — Disse ele me olhando
com um olhar de pena e compaixão.
—
E quem não quer?! Por qual motivo vou basear minha vida numa esperança utópica
enquanto vivo uma vida toda fodida para só depois ter algum descanso que nem é
garantido? — Não sei nem o porquê eu entrei nesse assunto, mas as memórias do
passado e as perspectivas do futuro me deixaram puto.
—
Calma, vamos uma coisa de cada vez. Primeiro, você fala de uma esperança
utópica como algo ruim, aí você erra. Acreditar na possibilidade de algo que
ainda não existe é uma tarefa de imaginação. E isso não é ruim de modo algum.
Todos nós temos imaginação, basta olhar para as crianças. Elas transformam suas
camas em navios, e o chão do quarto em sete mares. Elas transformam o que
existe em algo que é fruto de uma imagem sonhadora. Quando eu falo de um
Paraíso, é claro que eu falo de algo que criamos com a imaginação. Jesus nunca
descreveu o Paraíso. Mas jogou as sementes para sonharmos. A imaginação é
incubadora de sonhos, e sonhos são fetos de novos futuros, sonho não é
certeza — Ele dizia isso como quem se explica após ter depositado todo o
dinheiro em uma única aposta. Mas fazia sentido.
—
Mas o que me garante que é a minha imaginação que está correta? E não só isso,
mas a linha é muito tênue entre a imaginação e a alienação. Talvez isso que
você chama de imaginação seja somente uma fantasia que criou para anestesiar o
peso da vida aqui. Acho fácil demais você e eu nos sentarmos em nossos sofás
confortáveis e levarmos nossa imaginação até um além distante onde tudo é
perfeito enquanto o mundo aqui pega fogo e a existência real é pesada e sombria
em muitos momentos. Eu juro que eu queria crer e imaginar, mas deixo as
brincadeiras com as crianças e os sete mares para quem pode viajar até eles sem
se incomodar que as ondas têm aparência de um chão gelado do quarto.
—
Veja bem meu filho, você tem uma visão da vida que talvez seja um pouco
pessimista demais. E não adianta se esquivar dizendo que ela "é apenas
realista", não é. Mas consigo te entender. Você está vivendo dias ruins.
Eu concordo com você, a linha que separa a imaginação da fantasia é realmente
tênue. Para que nós possamos imaginar um novo mundo e uma realidade alternativa
para o presente, nós inevitavelmente precisamos nos distanciar da realidade
aqui. Mas essa distância facilmente pode descambar para o divórcio entre a
realidade e a imaginação, e sim, é aí que ela vira fantasia. É por isso que as
imaginações têm de ser criativas, elas têm como dever o criar. Imaginações só
passam a ter valor quando há a busca por torná-las realidade. Então, realmente
não adianta você se sentar num sofá e fantasiar. A imaginação só faz sentido
enquanto ela é elaborada e ações. É por isso que estou aqui, acompanhando uma
velha senhora que caiu de madrugada em casa. Se creio num futuro sem dor,
choro, ou ossos quebrados, então preciso desde agora caminhar em direção a esse
futuro que imagino. Já disseram uma vez: "ter fé é o maior dos atos de
coragem."
—
Acho, então, que devo ser um grande covarde — sorrio enquanto olho para ele com
um olhar carinhoso.
A
porta da sala se abre e vejo uma mulher de cabelos castanhos longos vestida de
um jaleco e uma prancheta em mãos caminhando em nossa direção. Esses segundos
de caminhada demoraram séculos em minha cabeça. Ela era a profeta. Poderia
anunciar a morte, a vida ou a continuação da incerteza melancólica da doença.
Meu estômago em chamas insiste em me lembrar que comer fritura e refrigerante
em jejum não foi uma boa ideia. Acompanhamos a médica com o olhar fixo em seus
passos barulhentos de um salto bege, enquanto ela se prepara para fazer sua aguardada
anunciação.
V
—
Jules? — perguntou a médica se dirigindo ao padre.
—
Sou eu mesmo. Acompanho a Dona Izaura.
A
médica segura sua prancheta e parece se preparar para ler algo. Jules estampa
um semblante ansioso em sua face.
—
A paciente Izaura sofreu uma fratura no fêmur direito. Ela precisará ser
internada e passará por uma cirurgia para a fixação da fratura assim que
possível. Faremos o possível para que não seja necessária a substituição da
articulação por uma prótese de quadril, o que seria um pouco mais delicado. A
grande questão é que ela precisa passar pelo procedimento o quanto antes.
Fraturas no fêmur tendem a ser uma das piores fraturar em idosos. Mas vamos
informando para o senhor as novidades.
Ela
nos olha com um olhar de despedida e ameaça virar as costas.
—
Doutora! — Digo num tom que faz a atenção dela se voltar para mim. — Alguma
notícia sobre Marina Servant? É uma moça grávida de oito meses.
Ela
folheou sua prancheta procurando alguma nota a respeito.
—
Ainda nenhuma atualização sobre o caso. Mas vamos informando para o senhor as
novidades — repetiu ela novamente.
A
cada passo dela em direção à porta que nos separava meu coração batia mais
forte. Eu sentia um misto de raiva, medo e insegurança. Quero entrar ali, quero
ver minha esposa, quero garantir que minha fila e ela sobreviverão e que eu não
vou ser obrigado a viver aqui sozinho e com a culpa de mais um abandono. Só
queria ter uma vida sem surpresas, na qual todos os seus acontecimentos se
encaixassem em perfeita harmonia.
Abaixo
a cabeça e a cubro com minhas mãos. Fodam-se a velha e seu fêmur quebrado.
Jules
se senta ao meu lado e coloca as mãos sobre os meus ombros num gesto fraterno.
—
Fica em paz, garoto — fala ele com sua voz manda enquanto aperta meu ombro com
mãos firmes. —Deixa as coisas acontecerem, vai dar tudo certo.
A
fala do padre me irrita de uma forma que não consigo entender o motivo. Eu não
sei se as coisas vão dar certo. Ele não viu Marina enquanto ela lutava para
conseguir um pequeno fôlego enquanto se debatia de dor e febre. Ele não a viu
com sua barriga enorme enquanto era colocada numa maca e recebia oxigênio. Ela
não a viu segurando minhas mãos na maca e olhando para mim com um olhar vazio
de desespero e medo enquanto éramos separados na porta da emergência. É óbvio
que para ele é simples falar.
— Olha padre, me perdoe a franqueza, mas não
sei se tudo vai dar certo. Não sei nem se confio na sua empatia. Afinal, você
está acompanhando uma velha sozinha que quebrou um osso da perna. Uma senhora
que você nem dividiu nada da vida. Você nunca vai saber o que é poder perder
sua esposa, que está com você por quase metade da sua existência. E muito menos
saber o que é sofrer da possibilidade de perder sua esposa e sua filha juntas,
antes mesmo dela nascer, sem nem mesmo poder segurar aquela pequena criança em
seus braços quentes. Você fala sobre imaginação, sonhos e crianças. Eu só
consigo imaginar no desespero de enterrar um feto nem sem mesmo ter tido a
oportunidade de olhar ela nos olhos — sinto meu coração bater mais forte, meu
sangue subir para o rosto e percebo que escolhi um alvo para toda a minha
amargura. — Vocês e esses seus discursos vazios sobre esperança e paraísos. Se
Deus existe ele me escolheu como inimigo. E quem vai mediar nossa paz, você?! Não
ligo para seu Deus e sua senhorinha. Eu só quero sair daqui com minha esposa e
minha filha.
Estou
ofegante, meu suor corre pelo meu rosto. O sono, a fome e o medo se juntam em
meu tom de voz agressivo. Não sei nem se eu deveria ter falado tudo o que eu
falei, mas não importa. Nunca mais vou ver esse padre.
Jules
se ajeita no banco me olha no fundo dos olhos. Seu olhar é firme, mas amoroso.
Como um pai que segura for os braços de um filho para que ele não atravesse uma
rua movimentada. Sua mão permanece em meu ombro.
—
Filho, eu consigo entender completamente o que você está sentindo — disse o
padre de forma bem pausada. — Eu nem sempre fui padre. Tenho hoje sessenta e
dois anos, fui para o seminário com trinta e um. Antes disso eu era casado e
tinha duas lindas filhas. As três morreram no mesmo dia.
VI
Escolhi
o padre como alvo da minha amargura, lancei sobre ele ódio acumulado e o
golpeei com palavras que eu gostaria de gritar ao mundo. Mas o que acabei de
ouvir foi como se eu tivesse tomado um soco no estômago em revide. Merecido.
Mas como eu poderia imaginar?
—
Na época eu trabalhava numa grande empresa — o padre começou a contar sua
história. — Eu tinha acabado de ser promovido ao cargo de Diretor de Projetos.
Começaria a ganhar realmente bem. Decidimos comemorar isso em família fazendo
uma viagem especial. Minhas filhas sonhavam em acampar olhando um céu
estrelado. Decidi que era exatamente isso que faríamos. Encontrei um local
perfeito para a aventura. Era um camping, mas não desses feitos para
mochileiros. Era um camping feito para a gente rica que quer fingir ter contato
com a natureza e parecer alguém que vive uma vida leve. Lá teríamos todo o
conforto de um banheiro com água quente e marmorizado, um restaurante
maravilhoso e trilhas guiadas. Mas dormiríamos em barracas. Uma verdadeira
aventura, pelo menos para elas.
Aproveitamos um feriado de sexta feira, ficaríamos até o final da tarde de
Domingo. As noites eram frias e ao longo do dia fazia um calor ameno, como um
típico outono. Não chovia e o céu estaria perfeitamente estrelado.
Escuto
cada palavra do padre atento. Consigo ver em sua cara a tristeza, mas também
uma ponta de sorriso por relembrar da sua família.
—
Saímos de casa era cedo, um pouco antes do nascer do Sol. — Ele prosseguiu contando sua história. — Tereza
estava linda aquele dia. Usava um vestido amarelo mostarda de alças finas, o
que deixava seu ombro negro e brilhante cintilando. Ela ainda aparece nos meus
sonhos vestida desse jeito.
A
viagem duraria quatro horas. Seguíamos na estrada por entre as curvas,
desviando de buracos e perdendo tempo atrás de caminhões pesados que subiam a
serra. Pelo retrovisor eu observava minhas duas lindas filhas dormindo
uma encostada nos ombros da outra. Tereza acarinhava minhas coxas. Isso era
tudo que eu tinha sonhado durante a minha vida inteira. Ter uma família, um bom
emprego e viajar.
O
Sol recém-nascido coloria as nuvens do céu com um laranja forte. As montanhas
da Serra faziam jus a seu nome de Mar de Morros. Os pássaros voavam livres
contrastando com a luz que vinha do Sol. No horizonte podíamos ver um espesso
rio que corria por entre as montanhas.
Até
que ouvi o barulho de pneus freando, e um grito agudo.
Só
me lembro de acordar no hospital duas semanas depois, sem saber onde estava e
nem o que tinha acontecido. A imagem das montanhas ainda estava na minha
cabeça.
Ele
suspira e olha para a parede fria da sala em que estávamos. Era como se,
através dela, ele pudesse enxergar a paisagem novamente. Ele sorri, mas um
sorriso triste, desses que fazem tremer os lábios.
—
As enfermeiras, então, me avisaram sobre a morte das três — ele prosseguiu. —
Naquele momento eu desejei ter morrido com elas. Teria sido apenas uma triste
história de uma família que morreu num acidente. Mas a minha sobrevivência
fazia com que a morte delas fosse revivida a cada manhã. Eu perdi a capacidade
de admirar paisagens depois daquilo. Perdi o apetite. Perdi a libido. De certa
forma eu também morri ali com elas, pelo menos uma boa parte de mim. Quem
acordou do coma foi outro. E eu demorei a entender isso. Demorei a conhecer
esse outro-eu que nascia dentro de mim. E foi quando eu resolvi rezar pela
primeira vez. Dali em diante casei-me com a fé.
A
história do padre me acertou em cheio. Senti empatia e medo. A solidão me
perturba. O que vou fazer sozinho? Meu estômago queima dentro de mim, como se
disputasse com a alma quem é capaz fazer sofrer mais.
—
Filho, olhe para mim — ele disse enquanto colocava a mão esquerda sobre meu
joelho trêmulo. — Contei minha história para dizer que nenhum de nós está imune
ao sofrimento. O poeta já disse que viver é padecer. Nesse seu desespero
tudo perde o sentido, o mundo perde a cor, a comida já não tem sabor, simples
tarefas se tornam pesadas demais, sair da cama torna-se tão cansativo quanto
uma maratona. Você precisa estar bem para cuidar da sua esposa. Ele ainda está
aqui, ela ainda está viva. sua filha também. Pior do que o desespero da morte
de alguém é o desespero da possibilidade da morte. Calma, meu filho — seu olhar
era profundo e tranquilizador.
Acho
simbólico que o primeiro fôlego na vida de um ser humano cause dor e choro.
Parece até que somos desde o nascimento levados a nos acostumar com a dor que o
mundo vai nos trazer. Eu quero ficar calmo. Quero acreditar que vai dar tudo
certo e que vou sair daqui com minha esposa e filha bem. Queria pelo menos
poder ter a fé do padre Jules. Se por um
lado ele escolheu se casar com a crença, creio que eu já estou viúvo dela.
Espero que só dela.
VII
A
porta se abriu novamente. Passos pesados de um salto bege se dirigem até nós.
Novamente a profeta se prepara para anunciar a vida ou a morte. Meu estômago
arde como nunca. Pareço estar com um buraco dentro da barriga por onde ácido
escorre e corrói tudo em seu caminho. Me controlo para não demonstrar a dor que
estou sentindo. Sinto-me pálido e nauseado. Engulo o vômito que que sobe à
minha garganta. Não conseguiria ficar de pé se me pedissem.
—
Você é quem está com a Marina Servant, certo? — Ela conferia a prancheta se
preparando para o anúncio.
Confirmei
com um aceno de cabeça, mal conseguia abrir a boca.
—
Então Senhor, a paciente está com uma pneumonia num estado já avançado. A
infecção acabou acarretando um abcesso pulmonar. Esse abcesso é uma cavidade
que contém pus em seu interior, originada por uma necrose ...
O
volume da sua voz diminui em minha cabeça. Já não presto atenção em nada que
ela fala. Não quero vomitar, não agora.
—
O quadro, bentão, não é dos melhores, mas também não é o pior dos mundos.
Principalmente porque a pneumonia parece não ter afetado o feto de nenhuma
forma. Ela continua saudável e a gravidez poderá permanecer normalmente. Elas
só precisarão ficar aqui mais alguns dias para observação e medicação. A
enfermeira vai te passar certinho a lista de pertences que você precisa
trazer...
Sinto
o vômito engolido subindo por meu esôfago e laringe enquanto queima cada tecido
desses órgãos.
blargh!
Uma
poça vermelha e fedida de sangue misturado com um salgado frito se forma,
escorrendo o líquido podre até os saltos beges da médica-profeta. Uma vertigem
me toma e minha visão começa a ficar turva. Caio lentamente em direção à poça.
Ainda estou consciente, mas meu corpo já não me obedece. Permaneço deitado e um
líquido quente encharca minha camiseta. O Padre Jules me olha de longe, suas
palavras ainda ecoam em minha cabeça. "Calma, meu filho". Alguns
pontos vão se ligando em minha cabeça. Meu avô paterno morreu por um câncer no
pulmão. Meu tio materno também. Minha mãe não me amamentou por conta de um
câncer de mama.
Faz
uns dois anos que venho sentindo dores cada vez mais fortes no estômago. Sempre
achei que fosse o estresse do trabalho somado a doses quase diárias de whisky e
uma má alimentação. Marina insistia para que eu procurasse um médico,
procrastinei o máximo que pude. Com a gravidez os nossos gastos aumentaram e
meu estômago deixou de ser prioridade. Três meses atrás eu encontrei sangue na
minha merda. Decidi ignorar e apenas comer mais salada naquela semana. Os
sangramentos foram se tornando mais constantes. E agora eu estou aqui, sendo
carregado em uma maca com a camiseta embebecida de sangue e vômito.
Duas
mulheres de meia idade empurram a maca em uma velocidade que denota uma certa
urgência. Consigo ver a cara de nojo estampada no rosto de cada uma delas.
Enquanto acompanho com os olhos os tetos repletos de infiltração do hospital,
me lembro de uma triste história que ouvi há uns anos no jornal. Um casal,
depois de alguns anos tentando incansavelmente ter filhos, finalmente
engravidou. Os meses foram passando e a expectativa também aumentava, o
quarto do bebê já estava pronto, só aguardando o grande momento. Até que no
oitavo mês tudo mudou. O pai descobriu um câncer já em estágio avançado. O
grande sonho, em poucos dias, se tornou a maior de todas as desilusões na vida
daquele casal. A jovem mãe viu seu amado, e pai de sua filha, deixar de existir
e deixar com ela uma pequena e indefesa criança que nunca viria conhecer seu
pai.
Isso não pode acontecer comigo.
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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