Uma História cheia de Som e Fúria
de Giordana Bonifácio
“Considero o mundo por aquilo que ele é.
(...)
Um palco em que cada um deve recitar um
papel,
e o
meu é um papel triste”.
(O mercador de Veneza, William
Shakespeare)
Oi, sou
alguém, não lhes interessa o meu nome. Sou uma garota como qualquer outra.
Talvez, um tanto mais esquisita, como diria minha irmã. É que gosto de coisas
que hoje não são comuns aos jovens da minha idade. Todos esperavam que fosse
parte desta sociedade pasteurizada em que as pessoas são programadas a gostarem
das mesmas coisas, a vestirem as mesmas roupas, a assistirem aos mesmos
filmes... Não sei por que razão, eu nasci diferente. Deve ser em função do meu
pai, que amava coisas que as pessoas desprezavam. Ele era um homem muito bom
além de inteligente. Tinha uma sorte do caramba, mas um dia a sorte lhe faltou,
uma única vez, e ele se foi levando consigo parte do meu coração. Nunca mais
fui a mesma. Minha mãe disse que, cada um, lida com o luto de uma forma. Minha
forma de lidar foi tentando recuperar as coisas vividas com meu pai. Eu passei
a ouvir o walkman e as fitas que ele guardava fazia mais de mil anos, exagero,
deveriam ser 30 anos ou menos. Algo que aprendi com ele: exagerar nas coisas,
ele sempre aumentava tudo que dizia e fazia:
três vezes se tornavam fácil um milhão para meu pai. Ele era engraçado e
gentil. Vou sentir a sua falta cada dia de minha vida. E olha que sou apenas
uma adolescente, de modo que passarei ainda muitos anos sofrendo de saudades.
Pois é, tornei-me fácil a esquisitona da
escola. Primeiro todos sentiram pena de mim, semanas depois já estavam
criticando minhas roupas, meu jeito de agir, pois me isolei na minha dor e em meu
silêncio, já que passei guardar tudo que sinto dentro de mim. Minha mãe até
contratou uma psicóloga, para eu “botar para fora o que sentia”, mas a
terapeuta pareceu desistir de mim. Disse que eu era uma conchinha difícil de
abrir. As sessões de terapia não impediram de eu ser execrada na escola. Eu era
a menina que escutava rock, “quem hoje em dia ainda escuta isto?” Era a menina
das roupas esquisitas, blusa de banda tudo bem, mas saber quem são as bandas
que estampam a camisa, isso era imperdoável! “Ela é metida a inteligente...”
Diziam alguns, outros só me ignoravam. Gostaria que todos me ignorassem. Mas eu
sempre fui a vítima predileta de bullying na escola. Começou quando deixaram de
ter pena de mim. Acho que após uma ou duas semanas de luto, eles queriam que eu
já estivesse recuperada. Pensavam que deveria ter, com duas semanas, superado a
morte de meu pai. O problema é que ainda me dói. E acho que vai doer para
sempre. Devo ser um tanto tola. Não sei como dizer: “a vida continua” e deixar
tudo para trás.
Eu até que
gosto de lanchar sozinha na hora do intervalo, coloco uma música do Led e fico
a escutar o Robert Plant oferecendo todo seu amor para uma garota. Eu acho que
nunca vou amar ninguém. Estou falando do amor romântico, sexual como dizem. Nenhum
menino nunca se interessou por mim, talvez por eu ser a “menina esquisitona do
1º Ano”. Eu sempre estou sozinha. Não tenho com quem falar sobre meus sonhos,
desejos e tristezas. Por isso, passei a acreditar que a vida é meio parecida
com a solidão do velho Santiago que tentava pescar o marlim no livro de
Hemingway. “O mar dá e, também, tira”. A vida é do mesmo jeito, da mesma
maneira que ela nos dá, ela também nos tira. Por isso que ela levou meu pai.
Ele era muito bom para ficar aqui na Terra. Levaram-no e deixaram-me sozinha.
Eu sempre choro à noite. Rezo, maldigo Deus, choro e durmo. A vida poderia ser
mais fácil, mas não é. E sempre me sinto como em meio ao oceano bravio,
tentando não me afogar.
Está chovendo
agora, estou escrevendo no quarto em penumbra e as nuvens grossas, negras e
pesadas fazem parecer que já anoiteceu. Na minha vida já anoiteceu há muito
tempo. Não vejo luz no fim do túnel, pois minha existência é um beco sem saída.
Sei que devo aprender a viver com a solidão. Seremos sempre nós duas. Nas
noites escuras em que o som da chuva me faz lembrar que o céu também chora.
Talvez seja um “grande amor chorando”. Eu nem sei o que é amar. Deve ser algo
que nunca me será concedido. Tem certas pessoas que nasceram para ficar
sozinhas. Eu sou uma delas. Um Carlos Drummond que nasceu para ser gauche na
vida. Mas o anjo torto me iludiu. Disse-me para seguir, mas é como se tivesse
ficado presa no mesmo lugar. Nada muda, tudo é só uma cópia mal revisada do dia
anterior. E a dor pesa-me no peito. E à noite, no escuro, não ouço meus gritos.
Gostaria de ser como os outros, mas os acho óbvios demais. Não consigo ser a
cópia xerocada dos ídolos da tevê. Eu sou “autêntica”, como diz minha mãe. Mas
isso me dói muito, pois, na minha individualidade, eu sou massacrada por
aqueles que só sabem ser iguais.
Nunca entendi
a razão de não gostarem de mim. Não os faço nada, não falo, não olho, tento não
os escutar. Mas, ainda assim, parece que eu os irrito profundamente. Deve ser o
fato de eu existir que lhes é tão aviltante que devem fazer algo para
destruir-me a paz. Deve ser um pecado muito grave existir. Para eles minha
imagem é muito ferina, destoo do cenário. E na peça que eles encenam não há
papel para mim. Shakespeare dizia que “A vida é uma história contada por um
idiota, cheia de som e de fúria, sem sentido algum.” E nessa história nem sei
como fui escalada para o elenco. Eu que nem sei muito bem qual é o meu papel,
devo ser uma figurante sem falas ou qualquer importância. Só estou aqui para
fazer número. Um dia Deus enjoa de mim, assim o espero. Afinal, ninguém nunca
gostou de mim mesmo. Só meus pais, mas eles eram meus pais, era obrigação
deles. Minha mãe é a única remanescente do meu fã clube de duas pessoas. Um dia
ela vai embora e pronto: estou definitivamente sozinha. Minha única irmã, mais
velha, é capaz de juntar-se ao coro dos meus “haters” para insurgir-se contra
mim.
A noite cai
em meio a chuva, a luz se vai e sequer me sobram as estrelas com quem sonhar.
Só me resta o breu. E o som inaudível de minhas lamentações. Porque não tenho
coragem de gritar o que me fere, a vida mutila a minha alma. Estou destruída.
Nesta noite sem sonhos ou música. Por que as estrelas não cantam mais para mim?
Às vezes, dou uma de Olavo Bilac e penso que posso ouvir estrelas. Decerto é
porque nós dois perdemos o senso. “Há quem diga que todas as noites são de
sonhos”. Diria Shakespeare. Porém, creio que, há muito tempo, todas as noites
durmo pesadelos. Acordo e é como se estivesse dormindo. Não tenho paz. Gostaria
que me fosse dado a permissão de sonhar. Ocorre que a vida é real demais. O
sonho é uma fantasia que não é acessível a todos. A muitos só lhes é permitido
suportar a vida. A todos demais viver é melhor que sonhar. Eu nem sei se
escolho a vida ou o sonho. Pois não há sonho no sonho ou vida na vida, apenas
sou. E isto é tudo. Um dia talvez apareça um super-herói com o poder de
consertar o que está quebrado. Rapidamente lhe apresentaria o que me restou de
coração. Não sei se ele usaria visão de raio laser ou somente supercola mesmo,
mas creio que ele deixaria inteiro o que a vida me quebrou.
Eu queria ver
o avesso do mundo, pois todo verso tem seu reverso. Mas acho que esse mundo nem
rima tem. Está mais para prosa poética. Talvez uma obra complexa e hermética
como “Água viva” da Clarice. Tem gente que não a entende, outros que fingem
entender e, por fim, aqueles que a vivem cada segundo de suas vidas. Ela diria
que “escreve por profundamente querer falar”. Eu, por ter um medo incomensurável
de falar. Escondo em mim silêncios profundos. Ela se definiria: “Eu sou antes,
eu sou quase, eu sou nunca.” Eu me defino de maneira diversa: eu sou o agora,
eu sou o além, eu sou sempre. E por ser sempre um pouco agora e mais além, eu
derramo-me toda. Nem sei fazer poesia. Tenho problemas com o ritmo. Minha mesma
dificuldade ao tocar minha flauta, minha musicalidade é um poema de uma nota
só. E é eternamente um Dó.
Queria terminar essa confissão com algo fantástico, mas apenas o que tenho para dizer é que me vem o sono. Queria dormir a vida também. Mas a vida só dorme quando se apaga. E a minha se estenderá por toda uma eternidade. Não tenho como escusar-me como a Clarice. Tomo-lhe as palavras: “penso que agora terei que pedir licença para morrer um pouco. Com licença – sim? Não demoro. Obrigada.” Eu durmo longas 6 horas por noite e creio ser muito. Quisera afastar-me do sono tão povoado de pesadelos, mas se não durmo, vivo uma realidade tão pior que se estivesse dormindo. Mas se choro em silêncio, vêm as lágrimas denunciarem-me uma noite de choro. Se aceito a dor, ela cresce em progressão geométrica dentro de mim. Como um vírus a se multiplicar em minhas células. Mas nem é tão ruim assim. Só um pouco. Eu tenho a possibilidade de usar a tevê anestesiadora e não pensar em nada. Porém, sempre escolho a via mais difícil. Penso, porque existo e não penso, logo existo. Pensar não é pressuposto de existir, mas existir é uma primícia para se pensar. Todos os dias repito a tarefa se Sísifo, sem que do meu trabalho consiga qualquer fruto. Castigos são assim. Fui condenada por existir. Meio o que pensam os meus colegas de classe, tão fatigados da minha presença. Eu sou um tanto incômoda. Eu o sei. Não conseguem me ver, apenas me enxergam e isso não é suficiente. Um dia vou dizer ao mundo tudo que tenho arquivado em minha alma. Abrirei a Caixa de Pandora e todos os males que me ocupam vão se desprender de mim. Mas é noite, e o corpo pede sono. Os males ainda me acompanham. Alguém me disse que é muito difícil dar fim a algo que por muito tempo se perdura. Mas eu me atrevo. Fim. Eu disse: fim. Ouviram-me? Eu digo fim para dar fim a este fim que não se acaba e fim. Já era.
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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