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Antologia Lua Negra: 2x10 - Mórbido Matrimônio (Season Finale)

Conto de Rafilsky Ferreira
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Sinopse: Um viajante do século XIX faz uma parada numa misteriosa pousada em meio ao vale do ribeira, no caminho entre Paraná e São Paulo, após atitudes estranhas do dono da estalagem, o viajante se vê preso a uma situação aterrorizante.  


Mórbido Matrimônio
de Rafilsky Ferreira


Seu olhar penetrava fundo em minha alma. Era como se, de alguma forma, sua visão pudesse contemplar todos os pecados e flagelos de minha trágica existência. Ainda assim ali estava ele, parado, imóvel como uma estátua de cera. Um rígido busto escorado sobre o balcão que, se não fosse pela sua pesada respiração exalada ritmadamente, o tomaria por um cadáver ainda fresco. Fiz um esforço para me fazer ouvido novamente.

— Cavalheiro, perguntei-lhe se há um quarto vago em sua estalagem. Tenha a bondade de responder, sim? Meu cavalo está lá fora, a noite avança constante, a chuva torrencial inunda a região e o frio do inverno na serra me impossibilita de continuar meu caminho.

Vinha de viagem da recém emancipada Província do Paraná e caminhava ao sul pela Província de São Paulo em direção à casa. Ainda que a malha ferroviária venha sido desenvolvida à exaustão neste final de século XIX, o caminho entre São Paulo e o sul do Império ainda se fazia pela tortuosa cavalgada através do Vale do Ribeira, que era onde essa modesta estalagem se encontrava. Tive tempo de fazer toda essa reflexão sobre minha trajetória até que o desconhecido atrás do balcão pudesse finalmente esboçar uma reação.

— Perdoe, cavalheiro. Mas de minha parte parece que já o havia conhecido antes, algo não muito comum nesta vazia estrada do sul. O senhor por acaso já teria passado pela região?

Esse tipo de pergunta evasiva e seu completo desprezo ao meu questionamento de suma importância já seriam motivos suficientes para abandonar a estalagem e procurar um lugar mais digno de minha presença. Mas a forte ventania que acompanhava uma intensa tempestade do lado de fora, bem como o cansaço de meu cavalo, me obrigavam a entrar no doentio jogo de meu interlocutor.

— O caminho para o sul é de certa forma familiar a mim, sim. Mas esta é a primeira vez que passo por esta estrada adjacente e, porventura, acabo em sua porta. Não há muitas pousadas no caminho e meu cavalo está cansado e necessita de alimentos, por isso insisto em perguntar se há uma vaga para um cavaleiro com bom dinheiro a contribuir.

Sua expressão finalmente retornava a algo que podia ser chamado de humano. Pareceu despertar de um profundo sono e agora movia seu corpo enrijecido de uma forma mais natural.

— Queira me perdoar. Estava perdido em meus pensamentos. Temos um quarto perfeito à disposição, além de bom feno e abrigo à sua montaria. Tenha a bondade de levar suas bagagens ao quarto na última porta no final do corredor à sua esquerda. Aqui está a chave para seus aposentos. Eu irei acompanhar sua montaria até o estábulo e alimentá-la devidamente.

Antes de que eu pudesse fazer qualquer observação, o misterioso estaleiro já havia se apressado pela porta onde uma gélida ventania se pronunciava. Visto que era inútil persegui-lo através do rígido clima, e meu gelado e úmido casaco exigia que fosse estirado com alguma urgência, decidi seguir seu conselho e marchar em direção ao quarto.

Percebi não sem alguma inquietação que a estalagem se encontrava vazia, algo bastante perturbador considerando o tempo lá fora e o já tardio horário. Poucos aventureiros se arriscariam pela noite com a chance de ser atacado por alguma onça ou diversa fera que espreita entre os bosques desta serra.

Também me preocupava a ideia de ter me fornecido o quarto mais distante disponível. Esperava que ele tivesse alguma bela vista de fora, ou até mesmo uma lareira exclusiva. Ao usar da minha pederneira para acender a única vela de cera presa ao candelabro próximo à porta, vejo em minha frente um cômodo pequeno e rústico, com paredes de taipa de pilão, onde nem sequer uma janela era avistada.

Após pendurar meu casaco, descansar minhas malas perto da cama e retirar a lama molhada de minha bota, decidi voltar a recepção e inquirir sobre a janta e outras miudezas populares. Queria retirar aquela primeira impressão inquietante do lugar e buscar um pouco de tranquilidade emocional. Porém, justamente quando estava a sair de meu quarto, encarei o estranho insólito espreitando minha porta.

— É de muito mal gosto um estaleiro que não respeita a privacidade de seus hóspedes. Lembro de te ouvir dizer que levaria meu cavalo para o estábulo, gostaria de saber qual motivo o fez quebrar sua palavra.

Seu olhar havia retornado a sua forma original de quando entrei neste estabelecimento. Mas algo me perturbava além do normal, teria o formato de seu rosto mudado de alguma forma? Parecia de certa maneira desfigurado. 

Lembrava com algum grau de familiaridade, e sempre me considerei bom em gravar fisionomias, que seu queixo era menos pontudo, um tanto arredondado para ser sincero. Os olhos um pouco menores e com maior espaço entre eles e o nariz, que este pelo menos mantinha seu caráter afinado e duro.

Mudanças muito sutis que passariam despercebidas por qualquer observador mais desatento, mas como sua expressão havia me perturbado desde o momento que entrei pela porta da hospedagem, havia desnecessariamente me familiarizado com sua insólita fisionomia perturbadora.

— Peço desculpas pela minha intromissão, vim aqui garantir que o senhor estivesse bem instalado e satisfeito com seu quarto. Porém só posso pedir desculpas pelo que sou responsável. Pois te garanto que essa é a primeira vez que trocamos palavras. Assim que o senhor estiver disposto, desça para o refeitório onde sua janta será servida.

— Ora senhor, não estou no humor para brincadeiras, ainda mais quando a tão pouco tempo vim a conhecê-lo e não te demonstrei nenhuma intimidade. Como diz que é a primeira vez que trocamos informações se não fora mesmo o senhor que me atendeu quando entrei pela portaria. Tenho te tratado com todo o respeito que demanda o código de cavalheirismo e exijo que o mesmo seja feito de sua parte.

— Não queira se enervar, cavalheiro. Logo tudo estará claro quando descer para sua refeição. Me retiro agora, não sem antes perguntar se deseja mais algum serviço.

— Não, obrigado. Irei descer em pouco tempo. — disse de certa forma desistindo desta discussão infrutífera.

Ainda gostaria de o inquirir por tão anômala situação que havia presenciado, mas a estranheza da situação me perturbou de maneira que precisei voltar ao meu quarto e retomar um pouco de fôlego enquanto colocava minhas ideias no lugar.

Mesmo através das espessas paredes de taipa de pilão, era possível ouvir o vento uivar e a tempestade torrencial castigar as paredes pelo lado de fora. Fugir daquele lugar seria impossível se não fosse para morrer de tuberculose poucos quilômetros depois.

A única coisa que poderia me dar alguma esperança e segurança era o revólver de chumbo que trazia escondido na cintura. Apenas temia que o frio e a umidade que tomei na estrada não tenha arruinado seu disparo. Foi após uma pequena reflexão sobre a situação que pude finalmente descer ao refeitório.

Demorei-me a soleira na porta tentando racionalizar e entender com firmeza o que estava enxergando, quando inicialmente adentrei no recinto. Novamente estava duvidando dos meus sentidos quando avistei pela primeira vez. Enxuguei os olhos para ter certeza que não via dobrado, ou que havia um enorme espelho que dividia a sala.

Foi a muito custo que pude entender o que observava através da grande mesa, posta no sentido vertical a partir da entrada da porta. Na sua ponta mais distante, sentado em frente um ao outro com o reflexo perfeito daquela expressão fantasmagórica do estaleiro, ambas faces me devoravam com o olhar. Na ponta da mesa, descansava o único espaço vago para me sentar.

— Imagino que já tenha conhecido meu irmão. — disse um dos reflexos no lado esquerdo.

— Vocês… são gêmeos?

— Estamos acostumados a esse tipo de confusão, eu e meu irmão administramos esta estalagem desde a morte de nosso pai. Perdoe-me por não ter esclarecido essa ambiguidade antes.

Estava de certa forma aliviado pela sensata explicação. Sentei-me no único lugar disponível na ponta da mesa, cercado pelos dois irmãos em ambos os lados. O olhar de ambos era ainda mais perturbador quando encarados simultaneamente.

Para tentar me distrair da situação embaraçosa, passei meus olhos pelos aposentos e reparei numa melancólica pintura, onde os irmãos dividiam espaço com uma bela moça. A moça tinha uma semelhança a eles de uma desconfortante.

— É nossa irmã mais nova. — respondeu abruptamente um dos gêmeos. — Nossa mãe morreu para dar a ela a chance de viver neste mundo.

— Meus pêsames, eu...

— Uma tragédia sem tamanho. Nosso pai nos abandonou pouco tempo depois. Os médicos dizem ter sido tuberculose, pelo flagelo do frio desta região. Sabemos que foi de solidão.

— Mas conseguimos cuidar de nossa pequena irmã, criamos ela como se fosse nossa própria filha.

Senti que a conversa trazia profunda tristeza e soturnidade para a mesa, então não insisti mais no assunto. Recolhi minha cumbuca e busquei com a concha uma boa porção do denso caldo de farelo de milho com toucinho que estava no caldeirão sobre a mesa.

Percebi que os rapazes já estavam com seus pratos vazios quando desci, apenas um pequeno resquício de que lá havia passado alguma comida. Estranhei a velocidade com que haviam comido, sendo que pouco tempo passei em meu quarto.

— Pelo apetite dos senhores, devo imaginar que o caldo está saborosíssimo.

— Não há outro melhor no mundo todo. A receita é de nossa pequena irmã.

De fato, o toucinho estava suculento e seu caldo me dava as energias necessárias para me recuperar do frio que enfrentei na estrada. Porém, não pude deixar de notar como o tempero estava acentuado. Uma pronunciada picância, que não parecia ser de qualquer pimenta que me fosse conhecida, me saltava o paladar e, por mais que salivasse essa protuberância gastronômica, não pude distinguir qual ingrediente se tratava.

— Sinto uma mordaz alternância de sabor que não identifico em nenhum outro caldo que tomei em minha vida. Quem sabe os senhores teriam a bondade de dividir a receita comigo?

— Não nos é permitido. É uma receita familiar que exige um certo segredo em sua preparação.

— Espero que a irmã de vocês seja menos relutante em dividir essa informação comigo. — disse em forma de gracejo para tentar novamente, elevar o clima tenso da ceia noturna.

— Creio que não será possível. Nossa irmã faleceu no início desta estação.

A lugubridade deste lugar pareceu persistir como uma praga diabólica em uma plantação flagelada pela peste. Não havia assunto que eu trouxesse a mesa que não fosse distorcido de forma a tratar de temas sombrios como a morte e a decadência. Teria decidido me manter calado pelo resto da noite se não fosse o esforço dos irmãos para dar sequência a tão lôbrego assunto.

— Os médicos disseram que fora também uma morte causada pelo rústico clima das montanhas, mas sabemos melhor que isso. Nossa amada irmã morreu também pela solidão. A solidão de um amor não consumido.

— Era enamorada de um bravo soldado que lutou pelo império na guerra contra o Paraguai?

— De forma alguma, fora apenas vítima de um falso amor, provido por um enganador. Mas não falaremos mais disto. Vejo que tem aprovado o caldo secreto de nossa família.

— De fato, é uma refeição tão saborosa quanto nutritiva. — disse, enquanto enchia novamente minha cumbuca. Estava exausto da viagem e a comida realmente havia preenchido minha necessidade de alimentação.

— Estamos felizes que saiba apreciar uma boa culinária local. Coma o quanto desejar, você é o nosso convidado de honra.

Após proferir esta palavra, ambos os irmãos voltaram a se manter calados e me encararem de forma nefasta como antes. Durante o resto da noite ambas as criaturas ficaram a me observar silenciosamente enquanto terminava minha refeição. Diria que essa situação me traria desconforto, mas de certo modo já havia me acostumado à morbidez de sua família.

Porém, pude sentir de alguma forma que minha tranquilidade com a situação poderia vir de outra maneira. Sentia meu corpo formigar e amolecer lentamente, uma turbidez se alojou em minha visão de forma que enublasse também meus pensamentos. Tentei levantar, mas senti como se todo o meu corpo resistisse aos movimentos e que o mundo todo passasse a girar sobre meu eixo.

— Senhores, acho que algo aqui não está certo.

— De modo algum nobre viajante. Tudo está perfeitamente nos seus conformes.

Foi o que ouvi antes de colapsar sobre a mesa, derrubando o ensopado no chão e desmaiando.

Acordei no que pareceram horas depois. A chuva havia parado e estava do lado de fora ao relento, a noite ainda se mostrava escura como ébano. No céu, uma lua negra se esgueirava pelo céu nublado fazendo com que não pudesse ver mais de um braço a minha frente.

Sentia um terrível frio percorrer meus ossos e logo percebi que estava desprovido de qualquer forma de vestimenta. À minha frente, sentado, estava um dos irmãos me encarando atentamente com a mesma expressão que tinha quando nos conhecemos.

Essa situação por si só já seria motivo para me contorcer no mais puro horror, porém foi o que percebi quando minha visão se acostumou à penumbra da noite que pude sentir uma repulsa que percorreu todo meu corpo em abominação.

Estava amarrado à uma cadeira no que parecia ser perto do cume de uma montanha. Muito abaixo pude avistar a estalagem que eu havia entrado pela última vez. Subindo um pouco à minha frente, era possível ver um túmulo resguardado por uma cruz celta que havia sido violado não muito antes de eu acordar. Descendo em minha direção estava o outro irmão gêmeo segurando em seus braços um corpo feminino nu, já muito corroído pela putrefação.

— Nossa amada irmã fora deixada no altar por um viajante muito semelhante à sua figura. Ela sofreu seus últimos dias sozinha esperando para que ele retornasse para cumprir sua promessa de matrimônio após ter desaparecido misteriosamente. Por sorte, quando vi você entrar na nossa estalagem, percebi que ainda era tempo de fazer alguma justiça divina ao seu pobre coração. Você irá fazer companhia à nossa irmã na outra vida, seremos responsáveis por oficializar esse matrimônio aos olhos de Deus. Assim, ela terá como companhia, seu prometido marido pela eternidade.

Com o pouco de força que ainda me restava, comecei a gritar em pleno dos meus pulmões através da sombria noite, sendo respondido apenas pelas feras da natureza. Os dois irmãos prosseguiram com uma arranjada cerimônia matrimonial após depositar o gélido e decadente cadáver sobre o meu colo nu.

Lentamente eu ia perdendo minhas forças para o frio que me oprimia e o terror que roubava minha energia vital. Em meus últimos suspiros de vida pude ainda ouvir cuidadosamente uma voz etérea que pareceu delicadamente responder ao vento:

— Eu aceito.



Conto escrito por
Rafilsky Ferreira

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Alex Xela Lima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rosside Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO

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