Mórbido Matrimônio
de Rafilsky Ferreira
Seu
olhar penetrava fundo em minha alma. Era como se, de alguma forma, sua visão
pudesse contemplar todos os pecados e flagelos de minha trágica existência.
Ainda assim ali estava ele, parado, imóvel como uma estátua de cera. Um rígido
busto escorado sobre o balcão que, se não fosse pela sua pesada respiração
exalada ritmadamente, o tomaria por um cadáver ainda fresco. Fiz um esforço
para me fazer ouvido novamente.
—
Cavalheiro, perguntei-lhe se há um quarto vago em sua estalagem. Tenha a
bondade de responder, sim? Meu cavalo está lá fora, a noite avança constante, a
chuva torrencial inunda a região e o frio do inverno na serra me impossibilita
de continuar meu caminho.
Vinha
de viagem da recém emancipada Província do Paraná e caminhava ao sul pela
Província de São Paulo em direção à casa. Ainda que a malha ferroviária venha
sido desenvolvida à exaustão neste final de século XIX, o caminho entre São
Paulo e o sul do Império ainda se fazia pela tortuosa cavalgada através do Vale
do Ribeira, que era onde essa modesta estalagem se encontrava. Tive tempo de
fazer toda essa reflexão sobre minha trajetória até que o desconhecido atrás do
balcão pudesse finalmente esboçar uma reação.
—
Perdoe, cavalheiro. Mas de minha parte parece que já o havia conhecido antes,
algo não muito comum nesta vazia estrada do sul. O senhor por acaso já teria
passado pela região?
Esse
tipo de pergunta evasiva e seu completo desprezo ao meu questionamento de suma
importância já seriam motivos suficientes para abandonar a estalagem e procurar
um lugar mais digno de minha presença. Mas a forte ventania que acompanhava uma
intensa tempestade do lado de fora, bem como o cansaço de meu cavalo, me
obrigavam a entrar no doentio jogo de meu interlocutor.
— O
caminho para o sul é de certa forma familiar a mim, sim. Mas esta é a primeira
vez que passo por esta estrada adjacente e, porventura, acabo em sua porta. Não
há muitas pousadas no caminho e meu cavalo está cansado e necessita de
alimentos, por isso insisto em perguntar se há uma vaga para um cavaleiro com
bom dinheiro a contribuir.
Sua
expressão finalmente retornava a algo que podia ser chamado de humano. Pareceu
despertar de um profundo sono e agora movia seu corpo enrijecido de uma forma
mais natural.
—
Queira me perdoar. Estava perdido em meus pensamentos. Temos um quarto perfeito
à disposição, além de bom feno e abrigo à sua montaria. Tenha a bondade de
levar suas bagagens ao quarto na última porta no final do corredor à sua
esquerda. Aqui está a chave para seus aposentos. Eu irei acompanhar sua
montaria até o estábulo e alimentá-la devidamente.
Antes
de que eu pudesse fazer qualquer observação, o misterioso estaleiro já havia se
apressado pela porta onde uma gélida ventania se pronunciava. Visto que era
inútil persegui-lo através do rígido clima, e meu gelado e úmido casaco exigia
que fosse estirado com alguma urgência, decidi seguir seu conselho e marchar em
direção ao quarto.
Percebi
não sem alguma inquietação que a estalagem se encontrava vazia, algo bastante
perturbador considerando o tempo lá fora e o já tardio horário. Poucos
aventureiros se arriscariam pela noite com a chance de ser atacado por alguma
onça ou diversa fera que espreita entre os bosques desta serra.
Também
me preocupava a ideia de ter me fornecido o quarto mais distante disponível.
Esperava que ele tivesse alguma bela vista de fora, ou até mesmo uma lareira
exclusiva. Ao usar da minha pederneira para acender a única vela de cera presa
ao candelabro próximo à porta, vejo em minha frente um cômodo pequeno e rústico,
com paredes de taipa de pilão, onde nem sequer uma janela era avistada.
Após
pendurar meu casaco, descansar minhas malas perto da cama e retirar a lama
molhada de minha bota, decidi voltar a recepção e inquirir sobre a janta e
outras miudezas populares. Queria retirar aquela primeira impressão inquietante
do lugar e buscar um pouco de tranquilidade emocional. Porém, justamente quando
estava a sair de meu quarto, encarei o estranho insólito espreitando minha
porta.
— É de
muito mal gosto um estaleiro que não respeita a privacidade de seus hóspedes.
Lembro de te ouvir dizer que levaria meu cavalo para o estábulo, gostaria de
saber qual motivo o fez quebrar sua palavra.
Seu
olhar havia retornado a sua forma original de quando entrei neste
estabelecimento. Mas algo me perturbava além do normal, teria o formato de seu
rosto mudado de alguma forma? Parecia de certa maneira desfigurado.
Lembrava
com algum grau de familiaridade, e sempre me considerei bom em gravar
fisionomias, que seu queixo era menos pontudo, um tanto arredondado para ser
sincero. Os olhos um pouco menores e com maior espaço entre eles e o nariz, que
este pelo menos mantinha seu caráter afinado e duro.
Mudanças
muito sutis que passariam despercebidas por qualquer observador mais desatento,
mas como sua expressão havia me perturbado desde o momento que entrei pela
porta da hospedagem, havia desnecessariamente me familiarizado com sua insólita
fisionomia perturbadora.
— Peço
desculpas pela minha intromissão, vim aqui garantir que o senhor estivesse bem
instalado e satisfeito com seu quarto. Porém só posso pedir desculpas pelo que
sou responsável. Pois te garanto que essa é a primeira vez que trocamos
palavras. Assim que o senhor estiver disposto, desça para o refeitório onde sua
janta será servida.
— Ora
senhor, não estou no humor para brincadeiras, ainda mais quando a tão pouco
tempo vim a conhecê-lo e não te demonstrei nenhuma intimidade. Como diz que é a
primeira vez que trocamos informações se não fora mesmo o senhor que me atendeu
quando entrei pela portaria. Tenho te tratado com todo o respeito que demanda o
código de cavalheirismo e exijo que o mesmo seja feito de sua parte.
— Não
queira se enervar, cavalheiro. Logo tudo estará claro quando descer para sua refeição.
Me retiro agora, não sem antes perguntar se deseja mais algum serviço.
— Não,
obrigado. Irei descer em pouco tempo. — disse de certa forma desistindo desta
discussão infrutífera.
Ainda
gostaria de o inquirir por tão anômala situação que havia presenciado, mas a
estranheza da situação me perturbou de maneira que precisei voltar ao meu
quarto e retomar um pouco de fôlego enquanto colocava minhas ideias no lugar.
Mesmo
através das espessas paredes de taipa de pilão, era possível ouvir o vento
uivar e a tempestade torrencial castigar as paredes pelo lado de fora. Fugir
daquele lugar seria impossível se não fosse para morrer de tuberculose poucos
quilômetros depois.
A
única coisa que poderia me dar alguma esperança e segurança era o revólver de
chumbo que trazia escondido na cintura. Apenas temia que o frio e a umidade que
tomei na estrada não tenha arruinado seu disparo. Foi após uma pequena reflexão
sobre a situação que pude finalmente descer ao refeitório.
Demorei-me
a soleira na porta tentando racionalizar e entender com firmeza o que estava
enxergando, quando inicialmente adentrei no recinto. Novamente estava duvidando
dos meus sentidos quando avistei pela primeira vez. Enxuguei os olhos para ter
certeza que não via dobrado, ou que havia um enorme espelho que dividia a sala.
Foi a
muito custo que pude entender o que observava através da grande mesa, posta no
sentido vertical a partir da entrada da porta. Na sua ponta mais distante,
sentado em frente um ao outro com o reflexo perfeito daquela expressão
fantasmagórica do estaleiro, ambas faces me devoravam com o olhar. Na ponta da
mesa, descansava o único espaço vago para me sentar.
—
Imagino que já tenha conhecido meu irmão. — disse um dos reflexos no lado
esquerdo.
—
Vocês… são gêmeos?
—
Estamos acostumados a esse tipo de confusão, eu e meu irmão administramos esta
estalagem desde a morte de nosso pai. Perdoe-me por não ter esclarecido essa
ambiguidade antes.
Estava
de certa forma aliviado pela sensata explicação. Sentei-me no único lugar
disponível na ponta da mesa, cercado pelos dois irmãos em ambos os lados. O
olhar de ambos era ainda mais perturbador quando encarados simultaneamente.
Para
tentar me distrair da situação embaraçosa, passei meus olhos pelos aposentos e
reparei numa melancólica pintura, onde os irmãos dividiam espaço com uma bela
moça. A moça tinha uma semelhança a eles de uma desconfortante.
— É
nossa irmã mais nova. — respondeu abruptamente um dos gêmeos. — Nossa mãe
morreu para dar a ela a chance de viver neste mundo.
— Meus
pêsames, eu...
— Uma
tragédia sem tamanho. Nosso pai nos abandonou pouco tempo depois. Os médicos
dizem ter sido tuberculose, pelo flagelo do frio desta região. Sabemos que foi
de solidão.
— Mas
conseguimos cuidar de nossa pequena irmã, criamos ela como se fosse nossa
própria filha.
Senti
que a conversa trazia profunda tristeza e soturnidade para a mesa, então não
insisti mais no assunto. Recolhi minha cumbuca e busquei com a concha uma boa
porção do denso caldo de farelo de milho com toucinho que estava no caldeirão
sobre a mesa.
Percebi
que os rapazes já estavam com seus pratos vazios quando desci, apenas um
pequeno resquício de que lá havia passado alguma comida. Estranhei a velocidade
com que haviam comido, sendo que pouco tempo passei em meu quarto.
— Pelo
apetite dos senhores, devo imaginar que o caldo está saborosíssimo.
— Não
há outro melhor no mundo todo. A receita é de nossa pequena irmã.
De
fato, o toucinho estava suculento e seu caldo me dava as energias necessárias
para me recuperar do frio que enfrentei na estrada. Porém, não pude deixar de
notar como o tempero estava acentuado. Uma pronunciada picância, que não
parecia ser de qualquer pimenta que me fosse conhecida, me saltava o paladar e,
por mais que salivasse essa protuberância gastronômica, não pude distinguir
qual ingrediente se tratava.
—
Sinto uma mordaz alternância de sabor que não identifico em nenhum outro caldo
que tomei em minha vida. Quem sabe os senhores teriam a bondade de dividir a
receita comigo?
— Não
nos é permitido. É uma receita familiar que exige um certo segredo em sua
preparação.
—
Espero que a irmã de vocês seja menos relutante em dividir essa informação
comigo. — disse em forma de gracejo para tentar novamente, elevar o clima tenso
da ceia noturna.
—
Creio que não será possível. Nossa irmã faleceu no início desta estação.
A
lugubridade deste lugar pareceu persistir como uma praga diabólica em uma
plantação flagelada pela peste. Não havia assunto que eu trouxesse a mesa que
não fosse distorcido de forma a tratar de temas sombrios como a morte e a
decadência. Teria decidido me manter calado pelo resto da noite se não fosse o
esforço dos irmãos para dar sequência a tão lôbrego assunto.
— Os
médicos disseram que fora também uma morte causada pelo rústico clima das
montanhas, mas sabemos melhor que isso. Nossa amada irmã morreu também pela
solidão. A solidão de um amor não consumido.
— Era
enamorada de um bravo soldado que lutou pelo império na guerra contra o
Paraguai?
— De
forma alguma, fora apenas vítima de um falso amor, provido por um enganador.
Mas não falaremos mais disto. Vejo que tem aprovado o caldo secreto de nossa
família.
— De
fato, é uma refeição tão saborosa quanto nutritiva. — disse, enquanto enchia
novamente minha cumbuca. Estava exausto da viagem e a comida realmente havia
preenchido minha necessidade de alimentação.
—
Estamos felizes que saiba apreciar uma boa culinária local. Coma o quanto
desejar, você é o nosso convidado de honra.
Após
proferir esta palavra, ambos os irmãos voltaram a se manter calados e me
encararem de forma nefasta como antes. Durante o resto da noite ambas as
criaturas ficaram a me observar silenciosamente enquanto terminava minha
refeição. Diria que essa situação me traria desconforto, mas de certo modo já
havia me acostumado à morbidez de sua família.
Porém,
pude sentir de alguma forma que minha tranquilidade com a situação poderia vir
de outra maneira. Sentia meu corpo formigar e amolecer lentamente, uma turbidez
se alojou em minha visão de forma que enublasse também meus pensamentos. Tentei
levantar, mas senti como se todo o meu corpo resistisse aos movimentos e que o
mundo todo passasse a girar sobre meu eixo.
—
Senhores, acho que algo aqui não está certo.
— De
modo algum nobre viajante. Tudo está perfeitamente nos seus conformes.
Foi o
que ouvi antes de colapsar sobre a mesa, derrubando o ensopado no chão e
desmaiando.
Acordei
no que pareceram horas depois. A chuva havia parado e estava do lado de fora ao
relento, a noite ainda se mostrava escura como ébano. No céu, uma lua negra se
esgueirava pelo céu nublado fazendo com que não pudesse ver mais de um braço a
minha frente.
Sentia
um terrível frio percorrer meus ossos e logo percebi que estava desprovido de
qualquer forma de vestimenta. À minha frente, sentado, estava um dos irmãos me
encarando atentamente com a mesma expressão que tinha quando nos conhecemos.
Essa
situação por si só já seria motivo para me contorcer no mais puro horror, porém
foi o que percebi quando minha visão se acostumou à penumbra da noite que pude
sentir uma repulsa que percorreu todo meu corpo em abominação.
Estava
amarrado à uma cadeira no que parecia ser perto do cume de uma montanha. Muito
abaixo pude avistar a estalagem que eu havia entrado pela última vez. Subindo
um pouco à minha frente, era possível ver um túmulo resguardado por uma cruz
celta que havia sido violado não muito antes de eu acordar. Descendo em minha
direção estava o outro irmão gêmeo segurando em seus braços um corpo feminino
nu, já muito corroído pela putrefação.
—
Nossa amada irmã fora deixada no altar por um viajante muito semelhante à sua
figura. Ela sofreu seus últimos dias sozinha esperando para que ele retornasse
para cumprir sua promessa de matrimônio após ter desaparecido misteriosamente.
Por sorte, quando vi você entrar na nossa estalagem, percebi que ainda era
tempo de fazer alguma justiça divina ao seu pobre coração. Você irá fazer
companhia à nossa irmã na outra vida, seremos responsáveis por oficializar esse
matrimônio aos olhos de Deus. Assim, ela terá como companhia, seu prometido marido pela eternidade.
Com o
pouco de força que ainda me restava, comecei a gritar em pleno dos meus pulmões
através da sombria noite, sendo respondido apenas pelas feras da natureza. Os
dois irmãos prosseguiram com uma arranjada cerimônia matrimonial após depositar
o gélido e decadente cadáver sobre o meu colo nu.
Lentamente
eu ia perdendo minhas forças para o frio que me oprimia e o terror que roubava
minha energia vital. Em meus últimos suspiros de vida pude ainda ouvir
cuidadosamente uma voz etérea que pareceu delicadamente responder ao vento:
— Eu
aceito.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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