La Petite Mort
de André Mellagi
Aqui era onde o endereço indicava: uma estreita porta de
madeira sob uma lâmpada vermelha, dependurada em fios soltos de uma gambiarra
qualquer. Ele passou pela soleira um cartão com o desenho de um crânio com um
lótus brotando de uma das órbitas oculares. Uma mulher com uma máscara de
tatuagens no rosto, usando um tule transparente e a bandoleira de um fuzil
atravessada entre os seios, abriu a porta. Ele subiu uma escada com cuidado de
não pisar em um homem desacordado e esparramado sobre os degraus. Abriu outra
porta no final da escada e encontrou um grande salão infestado de notívagos.
Duas mulheres sentadas num sofá compartilhavam beijos e o fumo contido na extremidade
de uma esguia piteira. Um andrógino trapezista balançava do teto suspenso por
correntes cravejadas na pele das costas. Divãs ao fundo do salão acomodavam os
corpos de mentes que temporariamente não estavam mais lá. Uma larga e comprida
mesa dispunha de diversas iguarias que nutrem e envenenam o corpo e a alma.
Garrafas prismáticas absorviam e refratavam as luzes de um grande lustre de
cristais, única fonte de iluminação no centro do salão que deixava sua
periferia na penumbra, riscada somente pelos vaga-lumes de brasas de cigarros.
Uma música contínua mesmerizava os que dançavam: dervixes rodopiando, orixás
montando seus cavalos em transe, mênades em êxtase. Em outro canto do salão, um
amontoado de pessoas estendia a pele uma nas outras numa mistura de braços,
torsos e pernas. Vagueavam a esmo aqueles que empunham castiçais enquanto liam
alfarrábios de antigas revelações apócrifas.
Ele procurou uma mesa distante e sentou na cadeira
solitária. Uma atendente se aproximou.
– Boa noite, o que o senhor
deseja?
– Boa noite. Eu desejo esquecer.
– Temos tudo o que você precisa.
O torpor do vinho oriundo das melhores regiões temperadas das mais raras
videiras. Absinto e outras beberagens que te transpõe para andares mais
elevados da consciência ou o ópio que te submerge ao mais profundo sono. Caso
aprecie o delírio do paladar, temos todos tipos de carnes exóticas, frutas das
regiões mais remotas, temperos secretos. Mas se sua sede for de conhecimento,
temos manuscritos de línguas arcaicas jamais publicados antes, sobreviventes de
todas as fogueiras que arderam durante milênios, pois ameaçavam derrubar
religiões e impérios. Se procura o esquecimento no gozo ou na dor, oferecemos
os serviços de especialistas nestas artes, da preferência do senhor, das mais
variadas combinações de sexos e raças.
– Não é a embriaguez que me
satisfaz. Nem a busca da verdade. Eu quero me esquecer. Entende?
– O senhor pode ficar à vontade
no salão. Talvez possa encontrar o que procura.
Ele se levantou, apanhou uma fruta de cor lilás-enrugado
sobre a mesa. Deu uma mordida. Alcançou uma taça e apoiou uma colher vazada na
borda. Colocou sobre a colher um cubo de açúcar e verteu sobre ele uma bebida
verde-turva, que preenchia a taça e desmanchava o açúcar. Deixou de lado a
colher, mas antes de apanhar a bebida, uma mão de unhas negras nos dedos
preenchidos por anéis de prata foi mais rápida.
– Você pode dividir essa taça
comigo, querido –, sorriu uma mulher de
cabelos negros, duas arcadas de sobrancelhas riscadas no rosto que emoldurava
olhos faiscantes e o sorriso vermelho do qual não conseguia se apartar.
– Claro... posso saber seu nome?
– Por quê? Quer me conhecer?
– Sim... já que dividimos a
mesma bebida e teremos este tempo para nós. Podemos conversar e saber mais um
do outro. Ao menos já sei que aprecia o absinto.
– Não são as palavras que me
farão conhecida, querido. Não é um nome que te dará um pouco de mim. Nem o que
eu faço ou que prato eu aprecio. Você ainda não está em mim.
– E preciso estar dentro de você
para te conhecer?
– O que você vê de mim e tudo
que está aqui em sua volta são apenas aparências, fantasmas fugazes que nada
mais são do que camadas superficiais que escondem algo mais profundo. O que
todos vêm buscar aqui, é justamente atingir o essencial escondido de alguma
maneira.
Ele tomou a taça das mãos dela e bebeu um gole mantendo um
olhar fixo no dela. Devolveu a taça.
– Eu já experimentei quase tudo
o que me oferecem aqui. Já fiquei desacordado dois dias seguidos, já me
entorpeci com plantas não catalogadas, já me misturei em orgias com os
proscritos de muitos países, já beijei a morte ao ser atropelado bêbado que me
rendeu esta cicatriz –, apontou um rasgo
atravessando o abdômen. Mas sempre volto a mim, aprisionado no tédio dos dias
onde essas experiências só me deixaram o resquício de uma lembrança. Por isso
espero esquecer de mim, deixar para trás o que fui e me entregar a algo
totalmente inédito e permanente.
– Seu beijo foi apenas um sopro,
meu caro. Você não sabe o que é a morte.
– É que não contei que já
apartei briga de faca, já tive salto de paraquedas que precisei abrir o velame
reserva.
– E por quanto tempo você esteve
morto? Quantos segundos até voltar a recordar de si mesmo?
Ela engoliu todo o líquido e o desafiou com outro sorriso
vermelho.
– Eu quero uma transformação.
Não o desaparecimento –, ele respondeu
inquieto.
– Você não sabe o que quer. Não
sabe o que é a morte. Não digo quando ela chega dolorida e devagar pela doença,
quando você percebe que não há mais para onde fugir e sente somente o desespero
até você apagar. Nem quando ela vem abrupta num acidente ou num tiro fatal em
que você se precipita a um nada súbito e absoluto. Você nunca viveu a morte.
Que chega destruindo todas suas certezas e te expõe a uma verdade que jamais
esquecerá. Caso sobreviva a ela.
– E como seria isso?
– Você seria incapaz de ouvir o
canto de uma sereia e continuar vivo. Assim como mariposas que se suicidam numa
lâmpada incandescente, antes elas eram lagartas que precisavam morrer enquanto
lagartas, para poderem voar até o que mais as fascinavam. As serpentes que
descascam as velhas peles por mais novas e brilhantes, deixando para trás o que
foram. A beleza que nasce da dor de despojar totalmente de si.
– Parece arriscado.
– Com certeza, como tudo que é
intenso nessa vida.
– E o que precisaria fazer para
viver a morte?
Ela chegou ao pé do ouvido dele e na voz mais arrepiante
cujo timbre eriçou todos os pelos de seu corpo disse: “você teria que me
conhecer”. Ela manteve o rosto próximo ao dele com um redemoinho nos olhos
tragando sua respiração. Atônito, buscou o ar no sopro de sua boca e suas
línguas digladiavam num longo beijo. As mãos cegas procuraram ancorar
freneticamente nos ombros, braços, costas, nádegas. Ele então descortinou os
cabelos dela revelando o olhar náufrago sob o batom borrado.
– Aqui não. Vamos a outro lugar
– ela sugeriu.
Antes de descerem as escadas, um dos que liam sob a vela de
um castiçal o deteve segurando seu braço. Uma expressão negativa e medrosa saiu
de um jovem de óculos que se protegia com um velho livro como um escudo
carcomido. Ela interveio e o encarou num tom ameaçador, fazendo com que o jovem
largasse o braço dele como se tivesse sido eletrificado. Ele a acompanhou
trôpego pela bebida e pela excitação.
Saíram do recinto e tomaram um táxi até o quarto de motel
mais próximo que encontraram, com letras de neon intermitente e uma inicial L
queimada. Arrastavam-se pelo estreito corredor numa correnteza de lascívia que
lhes despojava peças de roupas. Entraram no quarto como uma dupla siamesa unida
por bocas e ventres. Caíram sobre a cama e despiram-se com fúria.
– Venha... saiba meu nome.
Ele percorreu com a boca o périplo do corpo dela
atravessando vales, escalando montes, desbravando fendas. Num abraço,
procuravam anular qualquer divisória que separava suas peles num atrito que buscava
fundir a carne. Sedento, lambeu desesperado sua saliva, seu suor, seu néctar
como a ambrosia que garante a imortalidade dos deuses. Abriu suas pernas e
encontrou a entrada por onde deveria mergulhar. Penetrou ela com a língua,
atracando suas mãos nas coxas e em seguida nos seios, enquanto ela marulhava
uma respiração ofegante e progressiva. Ela o trouxe pelos cabelos até sua boca
e ele a preencheu, enfiando o pau até ser engolido por inteiro. Socou
repetidamente a buceta que acolheu suas investidas afoitas.
Então ela o jogou de costas e montou sobre ele. Os cabelos
encobriam a metade de seu rosto com uma boca de sangue. De cócoras, ordenhou
seu pau até extrair o gozo. Ela apoiou as mãos sobre os joelhos e levantou o
rosto num grito estridente. Ao jorrar, ele se esvaiu até perder de si mesmo.
Antes de apagar, vislumbrou uma mulher com asas, montada e copulando sobre ele;
semelhante a uma das ilustrações de um catálogo de súcubos que o jovem de
óculos do recinto estava lendo.
No dia seguinte, a perícia isolou e fotografou o quarto. As roupas dele foram recolhidas em sacos plásticos como evidências de um crime e procuraram por pistas na janela aberta. Nenhum sinal de outra pessoa no quarto ou de algum corpo estirado na calçada. As testemunhas somente viram os dois entrarem e ninguém mais sair. Antes de ensacar o cadáver, o que mais intrigava os peritos era como o corpo dele estava seco. E com o pau ainda ereto.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
Copyright © 2021 - WebTV
www.redewtv.com
Comentários:
0 comentários: