Princesa da Lua Sangrenta
de Fernanda Gabriela
Do alto do viaduto da Borges, eu contemplava o
esplendor da noite porto-alegrense, com meu casaco comprido abanando ao vento.
Exagerado? Não... uma extravagância que só aqueles que viveram mais que as
formigas podem se dar ao luxo. O cabelo roxo e os olhos vermelhos também.
Todas as luzes, todas as pessoas andando de um
lado para o outro como formigas, indo e vindo de suas vidinhas miseráveis...ao
meu lado estava um rapaz de expressões tristes, que eu conhecia apenas de
vista, mas que parecia fazer parte de minha “não vida” há muito tempo. Eu
estava surpresa de vê-lo ali e naquele horário, completamente fora do seu
habitual. Sentado no viaduto, ele também contemplava as luzes e as pessoas
abaixo, mas com um olhar muito menos interessado e muito mais perdido em seus
pensamentos. No fim, ele contemplava o vazio, um horizonte sombrio. Era visível
que ele estava completamente abalado, prestes a pular e terminar sua vida
mortal sem graça. Que burrinho.
Ele provavelmente não morreria, apenas se
machucaria gravemente. Talvez quebrasse o pescoço e ficasse de cama no hospital
pelo resto da vida, sendo um fardo para outros. Ainda assim, as cores marcantes
que vejo como uma aura ao redor das pessoas, neste caso a de alguém prestes a
morrer o iluminavam como se ele fosse uma árvore de Natal de 1,80 m. Pode
parecer bizarro da minha parte, mas aquela parecia uma chance de ter uma
conversa interessante com um mortal, algo que eu não tinha há muito, muito
tempo...
Me aproximei do rapaz, ainda de pé. Ele não
pareceu se importar, ou mesmo me notar. Ainda perdido em seus pensamentos
nebulosos.
-O que está fazendo aqui? - lhe perguntei.
-Eu não tenho outro lugar para estar... não um
que faça sentido... ou que precisem de mim...- respondeu ele.
-Bom, se tu vais mesmo pular, então poderia
conversar comigo por alguns minutos...? Não vai fazer diferença, não é mesmo?
Ele olhou para baixo e pareceu hesitar. Olhou
pra mim e disse:
-Tudo bem. Alguns minutos a mais ou menos, no
fim o resultado vai ser o mesmo. Mas se está tentando ganhar tempo pra chamar
ajuda ou coisa assim, esqueça. Eu não vou mudar de ideia. - Tremendo, ele engoliu em seco.
Não te preocupa! Só quero te contar uma
história. Uma muito interessante... Mas antes, me diz... o que tu achas da
noite?
-Ele pareceu confuso a princípio, sem entender
minha pergunta, até que, por fim, respondeu: - ...normal, eu acho...não tem
muita diferença entre a noite e o dia... Ambas parecem iguais... todos os dias
são iguais... apenas um amontoado de eventos aleatórios e sem sentido...
-E se você pudesse viver apenas durante a noite?
Seria diferente?
Ele mais uma vez refletiu em silêncio, antes de
se virar para mim e responder: -...Eu nunca pensei muito nisso... talvez fosse.
-//-
Sabes, talvez olhando pra mim tu não consigas
notar há quanto tempo eu caminho pela terra...há quanto tempo eu vago, tentando
saciar minha sede inominável...quanto eu vi e testemunhei, da humanidade, do
seu pior ao seu melhor...
Há algumas centenas de anos, quando as doenças
eram geralmente fatais e os humanos eram mais conscientes que nunca de suas
misérias e fraquezas, eu caçava sem dó e nem piedade. Despedaçava minhas
refeições com gosto e tranquilidade, sem medo das consequências. Por que não
havia nenhuma. Ninguém para me punir ou julgar. As pessoas eram ignorantes
perante a minha existência, e as lendas que eram contadas não ajudavam as
vítimas que eu encontrava a se livrarem de mim. Eu era uma força da natureza.
Eu passava as noites reinando absoluta, uma
verdadeira princesa das trevas. Quando eu punha os olhos em alguém, essa pessoa
não tinha escapatória. Eu simplesmente drenava o sangue da pobre criatura com
meus dentes afiados e fortes, sorvendo cada gota de vida até restar somente um cadáver
ressecado e inerte. Admito que eu sentia um enorme prazer em ver as minhas
presas se debatendo, lutando para se salvarem. Alguns tentavam resistir, se
proteger. Uns usavam armas, outros apelavam para a fé. No final o resultado
acabava sendo sempre o mesmo. Era uma delícia ver o sofrimento delas ao mesmo
tempo que a luz deixava seus olhos, quando a alma se separava do corpo. Tinha
um senso artístico nisso. Sádico, eu sei. Cruel, também...eu não vou mentir pra
ti. Era divertido brincar com a comida, assim como um gato brinca com o rato
antes de devorá-lo. Eu gostava disso...
Mas, enfim, os tempos mudaram...a ciência tomou
conta da vida dos homens, a civilização progrediu, e as luzes tomaram conta do
meu outrora escuro reino e parque de diversões. O homem passou a viver na noite
como as criaturas que reinavam antes deles, sem mais temer a escuridão, sem
mais temer as sobras... deprimente.
E eu então tive que... me adaptar. Me camuflar.
Não gostaria que a minha existência fosse revelada nos jornais, na televisão, e
posteriormente, na internet. Comecei a ficar cada vez mais discreta, pra poder
sobreviver aos tais tempos modernos. Nada que não leve uns vinte ou trinta anos
para aprender.
E então, depois de percorrer boa parte do mundo,
eu decidi assentar-me nessa curiosa cidade, em que o inverno gela como
Jotunheim e o verão queima como Muspelheim...
-//-
Ele
permaneceu em silêncio enquanto eu observava a reação dele ao que tinha acabado
de contar. Não tinha sido tão divertido quanto pensei que seria. Já tinha
contado a outras pessoas, mas ele não esboçou o menor espanto ou curiosidade.
Decidi continuar contando a ele.
-Todas essas coisas que estou falando, tu
deves pensar que sou uma vampira né? Sem reflexo, visual gótico, charme, não
posso andar sob a luz do sol... ou tu pensas que sou uma louca ou uma chapada.
Claro. Tudo isso é possível. Agora... qual destas possibilidades é a
verdadeira?
O menino só me olhou, meio perdido, e abaixou a
cabeça. Por que os humanos são tão difíceis? Aaaaaaaagh. Sério, humanos,
não custa nada dizer o que se está pensando. Eu sou vampira, cheia de poderes e
truques, mas eu não leio mentes. Eu continuei: - Bom, já que pelo menos a
minha conversa está adiando a sua morte, deixa eu te contar a história da noite
de hoje até tu aparecer...
-//-
Sexta-feira à noite. A escuridão toma conta de
cada esquina. Estamos na segunda lua nova do mês, e obviamente, no fim do mês.
Os jovens acabaram de receber seus salários miseráveis e estão à procura de
muita diversão e ainda mais bebidas baratas. Coitados... eles pensam que eles
que vão se divertir, mas quem vai levar o troféu pra casa sou eu.
A Cidade Baixa é o point de Porto Alegre. Todo
mundo adora ir pra lá ouvir música, beber e dançar. Eu adoro ir pra lá também,
pra me divertir, e jogar meu jogo favorito: presa e predador. Dica: eu sou
sempre a predadora. E sempre janto minha presa no fim da noite. Às vezes antes.
Depende da minha fome...
A luz do Sol me machuca, então eu sempre saio
depois do entardecer... eu sou meio que famosa na noite, todos conhecem o meu
nome e todos querem um pouquinho da minha presença...ser popular tem suas
vantagens...eu posso fazer o que quiser que ninguém vai desconfiar de mim,
mesmo que todas as provas estejam contra mim. Tudo bem, não é só popularidade, uns
poderes de hipnose e sugestão psíquica fazem sua parte também. Mas isso só dá
certo por causa do meu charme irresistível.
Mais uma
noite, mais um jogo. Minhas entranhas vibravam e se me sacudia por dentro, pela
fome. Não estava sendo exigente hoje à noite. E na minha frente havia um jovem
estudante com cara de bobo e babando por estar falando com uma moça tão bonita
e popular em um barzinho mequetrefe. Eu sorri, enquanto brincava com o drinque
que ele havia pago pra mim.
-Tu não vais beber o drinque que te comprei? -
perguntou ele.
Joguei os cabelos pra trás e disse: - Desculpa
querido, mas eu jamais bebo... não drinques e bebidas baratas, pelo menos... -
e dei uma boa risada.
Bom, a noite estava apenas começando, mas eu
estava sem paciência para com o pobre bobalhão que não conseguia ver meu claro
desinteresse nele, exceto pelo sangue que corria nas veias daquela pobre
criatura. Era melhor que ele me desse logo o que eu queria, pra eu mudar de bar
e de alvo. Uma vampira não sobrevive em uma cidade grande, e contraditoriamente
pequena, como Porto Alegre sem ser discreta. Eu jamais mato nenhum alvo, e
jamais transformo ninguém em vampiro. Eram essas as minhas regras de
sobrevivência. Não estavam em nenhum livro, nem fora meu mentor que as ensinou.
Eu as estabeleci, para minha própria segurança.
O coitadinho me convidou pra dançar... Pfff...
Dançar é legal, mas tem hora e lugar. E companhia. E certamente música, por
favor! Eu tenho classe! Eu disse a ele:
-Não... vamos pra outro lugar...-peguei-o pela
mão e o levei até o beco atrás do boteco. Ele estava todo empolgado. Achava que
ia ganhar um doce, eu acho... A sua mão suava frio, mas tudo bem...era só o
sangue dele que eu queria mesmo...
Mordi o coitadinho e deixei que o sangue dele
afluísse para a minha boca... Já havia provado melhores... Bom, há noites e
noites, não é? Lambi a ferida para que cicatrizasse logo e o botei de volta pra
dentro do boteco, enquanto saía sem nem dar tchau.
Eu posso até parecer baladeira, mas esse é meu
sustento, entende? Tu compras um bicho morto e o cozinha pra comer e saciar a fome. Eu preciso
de sangue pra viver, e eu só bebo aos finais de semana... não precisa me
julgar. Bom, saí do boteco meio contrariada, o menino tinha um gosto muito
fraco... sejamos sinceros, era ruim mesmo. Azedo. Nem um pouco doce. Assim não
dava. Decidi procurar mais uma pessoa pra saciar a sede.
Dessa vez foi uma menina. Ela estava distraída
sentada sozinha...eu me aproximei e puxei papo. Pra uma humana, ela tinha um
papo muito bom! Até conversamos por algumas horas antes que eu a mordesse e
saísse correndo do barzinho, enquanto distribuía beijinhos e abanos para os
“conhecidos” da noite. Afinal, eu era uma estudante bem conhecida nas festinhas
e baladas. E depois dessa desventura eu te encontrei aqui, sentando com cara de
bunda e olhando para o vazio da morte.
-//-
Depois de mais uns dois odiosos minutos de
silêncio, ele finalmente abriu a boca: -...eu não acredito em ti...- foi
tudo o que o rapaz cabisbaixo me disse enquanto contemplávamos a cidade do alto
do viaduto deserto, pouco antes de amanhecer. - Por que está me contando
tudo isso? Acha que eu sou bobo? Que acredito em história da carochinha?
- Não, não, eu não te acho bobo... um pouco
teimoso demais, mas não bobo. E não estou te enganando. -corei um pouco.
Era desagradável sentir aquele rubor subindo pelo meu pescoço e bochechas. E
raro. Eu era uma vampira poxa! Tava morta! Só por manter aquele rubor, fingindo
que eu estava viva, já me custava parte do sangue que eu tinha tomado.
Terrivelmente desagradável.
- É que... eu sempre te vejo descer na parada
do Mercado Público pra pegar o trem, voltando da faculdade... sempre sozinho e
cheio de livros que eu adoro... Eu li todos esses volumes que já te vi
carregando... e muitos mais. Eu nunca tive ninguém com quem conversar
sobre essas coisas, e achei que tu entenderias... só isso. A imortalidade é uma
benção, mas tem suas partes chatas... uma delas é não ter com quem conversar
sobre os livros que se gosta ou outros hobbies... por que todo mundo, no fundo,
é comida!
Ele ainda me olhava com ar de quem não
acreditava muito. Pelo jeito, era mais solitário que eu.
- Enfim, foi uma surpresa te achar aqui
durante a madrugada, já que só te vejo voltando da faculdade...acho que não
existem coincidências, apenas o inevitável. Então, decidi falar contigo. Ao
menos antes que tu pulasse para o descanso eterno. A eternidade é um fardo
grande demais... seria bom ter um amigo com quem dividir essa vida sem fim.
Ele disse que pensaria no assunto, e eu não
insisti mais. Deixei-o ali, na ponte e segui caçando durante as noites, sempre
discreta e eficiente. Não voltei à ponte por um bom tempo...
Era
período de férias da faculdade e eu não via mais o rapaz descendo do ônibus na
parada do Mercado Público..., mas um dia eu estava distraída no bar, procurando
pela próxima presa, e vejo o rapaz, outrora cabisbaixo, entrando no bar com um
enorme sorriso no rosto. Ele senta ao meu lado, e pergunta o que eu gostaria de
beber. Com um sorriso maroto, eu respondo:
- Querido, você sabe que eu jamais bebo esses
drinques comuns...
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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