Todo Amor é Tanto em Terra de Pandemia
de Laís Vilela Pinese
Intercalava
entre olhar a borra do café e analisar a vista da sacada. Muitos prédios. O
meio urbano era seu lar apesar dos pesares. Refletiu que talvez apenas metade
de uma caneca não seja o suficiente para de fato despertá-lo. Ele tentava focar
em alguma coisa, mas seus pensamentos passavam direto pela paisagem pouco
nítida. Alcançava voos altos sem sair do lugar.
Era de
fato, uma pena não poder tocar alguém mentalmente. O quão revolucionário seria
se fosse possível permanecer as distâncias e encurtar o caminho para o toque
então?
Ele
habitava as pesquisas, as buscas. A informação. Como um recém parido, se viu em
um novo mundo. Muito confuso para processar assim tão sem mais nem menos. Já
tinha uma idade mais fermentada. No topo dos seus quarenta e três anos,
observava os detalhes rotineiramente como de costume.
Não
deixava se levar pelas emoções, porém dava para ver mais uma lágrima discreta
que descia lentamente pela sua bochecha. É isso que acontece quando você se dá
verdadeiramente conta de onde você está.
Já
diziam os poetas: Independente das
características, o amor no final de tudo e de todas as contas, continuará sendo
puramente isso, amor. Claro que se estivermos falando de sentimentos reais.
As
pessoas são reais, de carne e osso. O que se tem dentro que é o invicto raio x
inalcançável. Muitas vezes é possível que nos enganemos pelas aparências, pelo
calor do momento. Mas no caso agora, dolorosamente, a situação era o que
era.
Aquilo
o deixava de fato sem ar, nada parecido com o incômodo de precisar sair de casa
de máscara. Evandro senti falta de ar, mas não era causada pelo vírus e sim
pela caótica separação física. Os apaixonados são como Romeu e Julieta em terra
de pandemia.
A
lista era longa. Começou com os mesmos, a dupla que forma um casal, incertos.
Precisaram refletir bem sobre quem eram e quem queriam ser ao se somarem. Os
olhos marcantes e cor de Mel de Ruth, nos últimos anos, o olharam com a
segurança de um amor maduro.
Em pé
na cozinha, tinha certeza de que precisava comer mesmo não estando com fome.
Decidiu
relembrar do dia em viu Ruth pela primeira vez.
Ela
aparentado uma credibilidade respeitosa em suas roupas de linho. Um conjunto
lilás. Os cabelos formosamente emolduravam o rosto. E aqueles olhos que de
longe, eram um mistério. Evandro precisava ver mais de perto para saber de que
cor eles eram. O que diziam.
Ela
falava com um timbre melódico que eram como uma espécie de colchão macio, em
que seus ouvidos podiam repousar de olhos fechados. Sentiu-se mesmo nas nuvens,
de cor lilás igual sua roupa, deitado no céu envolvente.
A
faculdade em um piscar de olhos ficou mais interessante do que nunca. Já estava
no segundo ano, entretanto nunca havia visto Ruth. Só ouvido falar. A próxima
aula seria na sexta-feira. Ele a veria com certeza duas vezes por semana, uma
na terça e outra na sexta.
Não
conseguia parar de pensar nisso e em como ser o melhor aluno da classe porque
consequentemente, assim, ela o notaria de modo mais despretensioso. Ele era uma
pessoa tímida e sabia que seria muito difícil que sua professora o visse com
outros olhos. Precisaria ir construindo aos poucos esse terreno.
Puff,
percebeu que não sabia ao menos se ela era casada! Ficou angustiado. Ela
poderia ser casada, ter filhos, ser divorciada. Precisa pesquisar. E quem
procura, geralmente acha, como já dizia esse velho ditado. Bom, já colocaria em
prática o faro jornalístico.
Só
tinha visto ela uma vez e já estava assim. Talvez fosse mais prudente
perambular perto da sala dos professores e ver quem sabe, ela indo e vindo pela
faculdade. Não tinha a pretensão de trombar com ela como nos filmes
adolescentes.
Viu
que ela era fã de conjuntos de linho coloridos, usava o cabelo solto e um
relógio de prata. Observou Ruth por uma semana inicialmente. Ela se locomovia
bem elegante, com sandálias de salto em cortiça.
Um dia
ficou atrás dela no bebedouro. Ela tinha um perfume cítrico. E quando ela olhou
para trás e o olhar deles se encontrou, ele sentiu o famoso choque elétrico.
Lembrou
das abelhas, das colméias e das panquecas que fazia de manhã. Ela não cheirava
a xarope de caramelo importado mas lembrava café da manhã. E expressivamente,
com aquele olhar cor de mel, ela se fazia presente, qual fosse a hora do dia.
Ele
ficou realmente impactado com a cor dos olhos dela. Nunca tinha visto um olho
tão grande e com essa cor de mel tão viva assim. Parecia que aqueles olhos
neutralizavam tudo a sua volta e se evidenciavam ainda mais de modo passivo e
intrigante.
Era
bem magnético. E ela o cumprimentou de modo amigável e seguiu seu caminho,
parecendo tão, mas tão familiarizada com tudo, até mesmo com ele. Isso o incomodou demasiadamente. Ela como o
centro das atenções e ele como mais alguém no mundo.
Será
que ela não tinha o notado mesmo com aqueles olhos que pareciam não deixar
escapar nada?
As
armadilhas do amor, sempre se encontram na espreita mais próxima. Se vocês
soubessem tudo que aconteceu para no fim serem o que são hoje. Toda história de
amor tem um começo mágico, de alguma forma. Os empecilhos existem para
valorizarmos ainda mais o broto que regamos para que se tornem folhas e flores
tão vistosas.
Ruth
era noiva e Evandro, louco por ela. Mas até mesmo os mais apaixonados precisam
se fazer a famosa pergunta: Vale mesmo a pena todo esforço?
Ele
sabia que valia a pena correr todos os riscos para ter uma chance com ela. O
que ele não sabia é se um dia seria de fato correspondido. E os amigos também
lhe disseram que não teria problema caso ele passasse por uma desilusão
amorosa, todo mundo precisa vivenciar uma para criar anticorpos
Falar
é uma coisa bem diferente de saber por comprovações reais que talvez você não é
exatamente a tampa da panela que você quer. E tudo bem também porque as grandes
histórias de amor, existem para todos. E
quando isso acontece, você percebe que a sua tampa só poderia ser para aquela
determinada panela mesmo. Nunca faria sentido se não fosse essa combinação.
Talvez
no começo Evandro tenha ido muito rápido, ávido demais. O calor mais típico da
juventude. Ruth como sua professora e
com um futuro marido na bagagem não poderia se dar a caprichos universitários,
conforme ela primeiramente pensou.
Evandro
sempre aparecia em lugares inusitados. Começaram conversando aos poucos,
trocando ideias. Evandro a elogiou. Ela aceitou com ressalvas. Ela via nos
olhos dele o que ele não via nos olhos dela. Ela não podia transparecer o que
quer que fosse, era inadequado.
Eles
podiam focar na matéria, no clima, nos assuntos do mundo, mas ela não o deixava
ficar fitando-a por mais de um minuto. Era embaraçoso. Ela via as veias do seu
braço salientes enquanto ele segurava sua pasta.
A
pasta era levada por ele por pura insistência. Ela conseguiria carregar sua
pasta de couro com folhas sem linhas. Ele queria escrever um novo romance ali
mesmo no estacionamento. O braço de ambos encostando um no outro. Ruth fechou
os olhos, confusa. Ela não queria ter dúvidas.
A
verdade é que ela não daria liberdades a Evandro. Ela era muito leal aos seus
compromissos. Ela nem sequer tinha
cogitado que aquilo pudesse vir a ser sério. Ela não podia trocar um
relacionamento de anos por uma aventura. Por mais que em algum lugar do seu
cérebro, algo a incentivasse a jogar tudo para o alto.
De
qualquer forma, Ruth não era uma mulher de jogar tudo para o alto. Evandro
sabia que não estava em posição de exigir absolutamente nada. Sabia bem, mas
ele não conseguia esquecer aqueles olhos. A imagem dos olhos de Ruth estava
cravada no seu globo ocular, no seu córtex pré-frontal?
Era difícil,
mas não impossível. Amantes literários
respirando a graduação de jornalismo. Cada um vendo através de sua ótica. E
quando tem que ser, não adianta nem sequer se rebelar em vão. No começo Ruth achou mesmo que ele não era
sua cara metade, mas o destino iria provar que ela estava errada e ela iria
gostar de não estar certa.
Isso
custou um casamento infeliz onde ambos entenderam que era melhor serem amigos.
Sim, ela se casou e Evandro chorou em silêncio. Continuava vendo ela sempre que
dava pelo Campus da universidade, porém se distanciou. Ela ter dito sim para
outro homem no altar era um golpe.
O tempo como sempre sendo o melhor band aid
para feridas abertas, cumpriu seu necessário papel. Para o contentamento
discreto de Evandro, Ruth e Miguel se divorciaram um ano depois que ele
terminou a faculdade.
Às
vezes paixões são romances que viram amor. Uns dos termômetros são o tempo e a
intensidade. E hoje, no sofá da sala, Evandro sabia que sempre tinha sido amor
e que ele não seria capaz de negar o clichê de ter se derretido todo ao
primeiro olhar naquela sala de aula.
Não
importava mesmo o passar do tempo. As rugas de Ruth de hoje em dia, eram como
braile para sua palma da mão. Queria tanto ver aqueles pés de galinha felizes
ao ver o por do sol. Sua idade nunca o barraria. Nada o barraria porque não
tinha razão para não serem marido e mulher. A sua musa era ela, a dona daqueles
olhos cor de Mel inesquecíveis. Insubstituíveis.
Evandro
não conseguia falar seu nome sem ser golpeado pelo inconformismo. Ela tinha
sessenta anos e já haviam vencido muitos desencontros vida afora. Sua
professora na faculdade. Ele nutria por ela esse amor há décadas. E quando
resolveram meter o pé na porta rumo ao que queriam tanto, viram que
simplesmente não dava mais para negar o que estava estampado no peito de ambos.
Eles
haviam se casado. Era oficialmente um par construindo um lar. Os próprios donos
da felicidade conjugal. Fazendo as famosas panquecas, compartilhando os
trabalhos, os sorrisos emocionados e as responsabilidades de crescerem juntos.
Evandro
sabia que não sabia de nada e que o futuro não lhe pertencia. Essa constatação
ou te leva para baixo e te estira no chão ou vem como um chacoalhão eminente de
que ter fé é medicinal e acalma a alma. Ele ficou com a segunda opção. Quando
se ama você precisa se apegar a cada faísca, a cada fagulha e em cada migalha.
Ruth
estava internada fazia quinze dias. Quinze dias. Quantos minutos isso daria? Pensou
em calcular, porém ciente de que essa informação não era uma das mais
necessárias para o momento. Ela tinha saído da UTI. Era de se admirar que ele
ainda soltasse lágrimas tímidas por agora visto o tanto que já havia chorado.
A
almofada preferida de Ruth, com o desenho de uma lhama de óculos colorido, era
o que tinha sido o que estancou a água corrente que vinha como pequenas
cascatas centralizadas em sua face dolorida. O semblante era sofrido.
A
almofada o lembrava da lua de mel para o Peru. Um sorriso tão largo que morava
nessa memória. Por favor, ele pediu baixinho, Por favor, repetia. Ele não
precisava completar qualquer esboço de frase pois já era completamente visível
o que ele pedia assim, entre lamúrias carregadas de desespero.
Quando
estamos sós, quando estamos ajoelhados e cansados, descobrimos que nossa força
existe. Sempre existiu. Evandro acendeu uma vela e começou a orar como sempre
fazia. Tinha escrito de caneta o nome de Ruth, várias vezes na mão e no braço.
Tatuagem de tinta lavável que só dizia ao contrário. Aquilo estava na carne
como um convite para que ela voltasse para a casa deles.
Por
onde a mente de Ruth estaria vagando?
Ele se
fazia muitas perguntas. Muitas e muitas perguntas. Até porque não estava mais
habituado a morar sozinho. Ele podia fazer perguntas, Ruth respondia. E agora,
ela sequer ouvia o que ele dizia seja onde fosse?
O casal
era fã de literatura e costumava discutir sobre romances de época. Discussões
saudáveis e acaloradas que acabavam muitas vezes em uma garrafa de vinho
vazia.Era natural que eles como se fossem atores, recitassem frases famosas de
algumas típicas histórias em momentos do cotidiano, causando assim, um
divertimento peculiar aos dois.
Todos os casais possuem suas marcas pessoais.
A combinação única como uma digital. E isso é construído diariamente, nos
detalhes. Um tijolo por vez, caso a base queira vir a ser sólida.
E nesse momento, tudo que Evandro podia fazer era acreditar que o COVID-19 não levaria Ruth embora. Ela não era um número, uma estatística. Ela era a Ruth.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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