Maria Goró
de Domênico Darone
Ela
era uma mulher bem velha e preta. Andava sempre pelas ruas com vestidos
alinhados e limpos. Se produzia para sair, passava batom na boca banguela e maquiagem
de forma grosseira no rosto envelhecido – queria se sentir bonita. Ela sempre
estava acompanhada de um saco cheio de coisas nas costas e este era um saco
onde essa mulher carregava seus pertences mais valiosos. Também tinha aquele
pedaço de pau que chamarei de cajado, um instrumento que a ajudava a andar e
também a se proteger dos mal-intencionados desta vida.
Ela
era conhecida como Maria Goró. Maria porque era Maria mesmo e Goró porque seu
maior vício sempre foi a cachaça e ela sempre estava presente nas rodas de
viola que aconteciam nos botecos do bairro.
Ela
tinha muita personalidade e as pessoas do bairro gostavam dela. Ela tinha
aquela volúpia própria dos felizes. Hoje em dia me questiono sobre como aquela
mulher podia ser feliz diante de tantas faltas em sua vida. Maria Goró morava
em uma espécie de barracão improvisado no alto de um morro. Sua casa era a legítima
definição da pobreza.
Ela
tinha quatro filhos, todos maiores de idade e já mal encaminhados na vida. Um
ou outro estava preso ou então foragido. Maria Goró era o fiel retrato do preto
pobre do interior deste país. Provavelmente faltava-lhe até comida, contudo,
todos os seus males eram compensados no boteco do Paulo, um bar que sempre estava
lotado de gente interessada em beber, jogar baralho e conversa fora.
Em meio
aos meus sete anos de idade, havia algo na Maria Goró que me causava medo,
talvez fosse a feiura ou o barulho que ela fazia ao passar. Quando ela passava,
os cachorros latiam, ela resmungava, xingava e cantava. Incentivado pelo meu
primo, comecei a ofender a Maria Goró todas as vezes que ela passava por minha
rua. Ela passava e eu e meu primo começávamos a xingá-la de tudo que é nome.
Ela xingava de volta e nos ameaçava com o cajado. Era algo divertido para crianças
que não viam consequências em suas ações, mas era triste para a Goró ser
humilhada daquela forma. Dizem que ela chorava quando isso acontecia:
— Eu
nunca fiz mal nenhum para eles, então por que eles mexem comigo?
Contudo,
em um fatídico dia eu e meu primo exageramos na brincadeira. A Maria estava
feliz da vida a caminho do bar de costume quando eu e meu primo começamos a
xingá-la. Nós a chamávamos de nega banguela, de fedida, piolhenta... Ela chegou
no bar do Paulo muito nervosa por conta disso. E eu e meu primo a seguimos até
o bar e lá continuamos a falar impropérios para a digna senhora. Até que, sem saber
de onde saiu, recebo um megatapa no pé da orelha de um desconhecido. O tapa foi
tão forte que me levou ao chão e deixou minha orelha vermelha como um pimentão.
Ainda no chão, eu podia ver a Maria Goró rolando de rir do acontecido. Eu me
levantei e fui correndo para casa, chorando. Estava humilhando e, no fim, saí
de lá humilhado.
Em casa,
com a sensibilidade de um elefante, minha mãe foi logo perguntando:
— Por
que você está chorando, desgrama?
Abaixei
o rosto. Não podia responder porque sabia que qualquer resposta iria resultar
em uma boa surra. Foi quando meu primo respondeu por mim com a garra de um
lutador de boxe, ou seria de um galo de briga?
— Um
homem bateu nele lá no bar do Paulo, tia. Olha como está vermelha a orelha
dele!
Minha
mãe veio me avaliar e, como onça vingativa, saiu a caminho do bar do Paulo para
tirar satisfação com o tal homem que me bateu. Contudo, antes de sair, ela
levou uma vassoura. Vai que fosse necessário acertar as contas com aquele
sujeito que agrediu seu filho.
Chegando
no estabelecimento, a voz de minha mãe irrompeu alto:
— Quem
foi o corno que bateu no meu filho?
Um
homem se levantou da cadeira e muito calmamente veio em direção a minha mãe e
lhe disse:
—
Minha senhora, peço desculpas por ter batido em seu filho. Não deveria ter
feito isso. Mas é que isso foi coisa de momento. Quando eu o vi xingando aquela
mulher que está ali sentada, não pude evitar a fazer algo para que ele a
respeitasse. Já não basta ser pobre e viver naquelas condições? Tem também que
tolerar os xingamentos de meninos mal-educados na rua?
Minha
mãe ficou pensativa e foi até mesa onde a Maria Goró estava. Para minha
surpresa, Maria Goró agora chorava, era um choro de socorro, de não aguento mais. A expressão triste em seus olhos negros me chamou muito a
atenção. Percebi o quanto aquela pobre criatura sofria. Minha mãe lhe
perguntou:
— É
verdade o que este senhor falou? Meu filho estava te importunando?
— É
verdade, sim. Sempre que eu passo na rua ele se junta com aquele outro ali
(apontando para meu primo) e ficam me xingando. Até pedra eles já jogaram em
mim. Mas agora me responde uma coisa, minha senhora: que mal eu fiz para esses
meninos me tratarem assim? Eu não mexo com ninguém, você me conhece e sabe
disso.
— Pelo
que vejo, o meu menino mereceu o safanão que levou no pé da orelha.
Mainha
se virou para o homem e disse:
— Meu
filho errou, mas cabe a mim corrigi-lo. Por isso, nunca mais toque em nenhum
fio de cabelo do meu menino. Sou mãe e pai desta cria, sei o que é melhor para
ele.
Depois,
virando-se para a Maria Goró:
— A
senhora pode ficar despreocupada, viu? A partir de hoje esses moleques vão
aprender a respeitar a senhora e a qualquer outra gente deste mundo.
Minha
mãe levou meu primo para a casa de seus pais. Lá ela teve uma boa conversa com
a mãe do meu primo, tia Nilda, irmã de mãinha. Ao sairmos, deu para escutar a
vara de marmelo cantar nas costas do meu primo.
Imaginei
o que me aguardava quando eu chegasse em casa e sabia que a correia iria cantar
nas minhas pernas.
Quando
chegamos em casa, minha mãe me colocou no sofá, olhou bem nos meus olhos e me
disse:
— Por
que você estava xingando aquela mulher, meu filho? Foi esta a educação que lhe
dei?
Eu não
sabia o que responder. Então abaixei a cabeça e ali fiquei ouvindo ela falar.
— Eu
conheço aquela senhora há muitos anos. Ela é uma das moradoras mais antigas do
bairro. Ela cuidou e ainda cuida daqueles quatro filhos dela que só sabem dar
trabalho. Ela é uma mulher muito pobre e luta pela vida como eu luto. Não ache
que, só porque tem uma casa boa para morar, você é melhor do que ela. Não
existe nesta desgrama de vida ninguém melhor que ninguém, todos somos
filhos de Deus. Você precisa aprender isso!
Depois
daquela lição de moral, aprendi a não mexer mais com a Maria Goró e, por algum
milagre que ainda não entendo bem, me livrei de uma merecida surra.
Algumas
semanas depois, toda a vizinhança ficou sabendo da morte da Maria Goró. Ela
havia sido estuprada e torturada por dois rapazes que conheceu no bar do Paulo.
A
Maria Goró foi a primeira defunta que vi e esse fato me marcou muito, sinto
calafrios até hoje quando me lembro do seu corpo sobre aquele caixão. Ali não
era possível ver nenhum rastro de sua volúpia.
Lembro-me
como se fosse ontem de que, ao chegar perto do caixão, começaram a brotar dos
seus olhos lágrimas de sangue. Ela estava chorando e eram lágrimas de sangue.
Como pode um morto chorar sangue?
Depois
disso, a Maria Goró passou um tempo deitada sobre o sofá da minha casa, ao
menos era isso que minha mente queria acreditar. Fiquei várias noites sem
dormir pensando que a defunta estava deitada no sofá da sala.
Hoje, acredito que me assombrar foi a forma que a Goró encontrou de me fazer pagar por ter-lhe importunado tanto.
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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