Sob a Luz da Lua
de Daniele Pereira
— O que a
noite representa para você? — perguntou-me
de forma pontual. Naquele momento, as palavras fugiram de mim. Eu tentei
encontrá-las, porém o famoso branco se instaurou no meu cérebro impedindo-me de
dizer qualquer coisa que fosse.
Era noite,
mas não era uma noite comum. E essa pergunta arrepiou-me, não entendi o que
aquilo significava, não a princípio, depois tudo fez sentido. Por que motivos ela
me arrastou para o fim do mundo? Confesso que o local durante o dia me pareceu
aconchegante, de fato, era. Estava frio, então ficamos juntos tomando um café e
admirando a vastidão do lugar.
O Sol não esteve
presente. Havia uma modesta luz natural oriunda dele, as carregadas nuvens
ofuscaram seu brilho. Não choveu, o que foi incrível, pois assim pudemos ficar abraçados
lá fora. Que bela natureza! O lago, à nossa frente, era imenso. A casa tinha
cheiro de lar, de um feliz lar, mas há muito tempo ninguém da família esteve
lá, apenas os cuidadores da casa ficavam pela manhã.
— Por que sua família não vem para cá? — perguntei curioso, e Selene respondeu:
— Nem todo mundo gosta do silêncio que se faz
na casa do lago. — Realmente, respondi.
Aqui parece que tudo para. O tempo não corre. Ela sorriu modestamente.
Curtimos a
presença um do outro, conversamos sobre tudo e apaixonadamente fizemos amor,
não sexo, amor. A Selene durante o dia era meiga, doce, amável e romântica. A
noite ela se transformava. Era como se em seu corpo coexistissem duas pessoas
totalmente diferentes. Durante o dia, vestia tons pasteis, vestidos longos e
bem românticos, era uma menina apaixonada. Entretanto, ao pôr do sol, ela
mudava. Seu perfume, não tinha mais cheiro de inocência, trazia mistérios. Era
como se o seu próprio corpo fosse um incenso amadeirado, implacável e
envolvente. Suas roupas exalavam sensualidade e ela alternava o preto, vermelho
e dourado.
Isso nunca me
incomodou, confesso. Eu me sentia incrível, pois era como se namorasse duas
mulheres, a transa era diferente, fenomenal, e pairava entre o delicado e o voraz.
Eu era feliz, nós éramos felizes e isso era o mais importante. Acostumei-me à
vida dupla dela. De dia previsível, de noite, uma caixinha de surpresas. Contentava-me
em saber que as duas personalidades dela me amavam.
Ah! O amor
nos deixa leve e bobos. Cogitamos vir mais vezes e quem sabe até morar
definitivamente na casa do lago. Visualizamos nossa vida juntos, crianças,
trabalho, um casamento com amor e envelhecimento juntos. Por um instante,
imaginei se era isso que Selene realmente queria, não a do dia e sim a da
noite. Fiquei nervoso, pois já era hora do sol se pôr. Ela me abraçou
fortemente, beijou-me com devoção e se despediu. Como uma criança obediente,
entrou na casa para tomar banho. Enquanto eu admirava o crepúsculo, a penumbra
do sol se esvaindo, desejei realmente que tudo aquilo se tornasse real. Nossa
vida junto seria feliz. Eu a faria feliz.
Fez-se noite
e tudo mudou. Fui tomado por um medo colossal. A casa, antes alegre, apresentou
uma aura lúgubre e eu me vi preso naquele ambiente. Como se a noite tivesse
poder sobre o dia. Imaginei ser esse o motivo de ninguém querer ficar lá, por
isso, meu corpo tremeu sem controle.
Entrei na primorosa casa e fui direto para o quarto. Durante o dia não percebi
que as paredes eram revestidas por tapeçarias antigas e nelas haviam desenhos
de luares, como se ali tivesse a contação de uma história. Selene não me falou
nada sobre isso. O pânico me preencheu. A ansiedade que nunca tive tornou-se latente
e meu sexto sentido gritou veementemente que algo não estava certo.
Ao lado do
meu quarto, meus medrosos olhos captaram uma tela, uma vivida e expressiva
pintura gigantesca totalmente adornada com estilo Barroco. Supus ser ouro, tamanha
magnificência contornava com esplendor o adorno na parede. Notadamente, uma
mulher compunha a espantosa tela como personagem principal. De forma pontual,
fechei meus olhos. Essa ação causou-me mais medo, então, desesperadamente, os
abri e virei-me de costas. Para meu espanto, meus olhos foram ao encontro da
pintura. Algo mecânico e sem controle forçou-me a olhar novamente. Não consegui
interpretar a expressão do olhar daquela mulher, era algo enigmático, sombrio e
eu tive uma reação repulsiva.
Os cabelos
longos dela voavam como se o vento vindo do oriente os arrebatasse. Ao centro,
uma sombra densa e irreconhecível ocupava a tela. Contudo, o que de forma
intensa e totalmente inesperada me abalou foi a lua. Meus olhos fixos de medo
pausaram na tela, não me movi. Meus músculos estavam anestesiados de medo,
repulsa e pavor. A lua me deixou atordoado, meu coração entrou em completa
agitação e meu sangue ferveu como um caldeirão em fogo ardente.
Um violento
frenesi tomou conta de mim, em meio ao terrível momento de pavor, pensei
rapidamente na minha fisionomia naquele momento. Meu semblante deveria estar
mais medonho do que o da mulher. Antes tida por mim como personagem principal
da tela, agora estava em segundo plano, pois a lua era sem dúvida o ponto alto
do quadro. As cores se dissiparam de minha torpe visão, não consegui
reconhecê-las, não naquele terrível momento. Meus pensamentos lógicos não fluíam,
era como se nunca existissem e eu agi como louco. Eu era um louco, tentando
raciocinar.
Em meio ao
momento de devaneio e pavor colossal que enclausurou meu olhar na tela, senti o
perfume amadeirado me envolver e me vi ludibriado e envolvido pelo cheiro
daquela que me amava. Não me virei, não
a encarei. Se fosse durante o dia, certamente a abraçaria e choraria, mas
durante a noite, não. Embriagado pelo cheiro, quase cai. Tonto, segurei-me na
parede e meu olhar forçou-me a olhar novamente para tela. Então, ouvi sua
sensual voz falar:
— O que a
noite representa para você? — Não pude
dizer nada. Em meio ao pavor sentido, imaginei que a minha resposta definiria
nosso futuro. Calei-me. Não porque eu não quisesse falar, simplesmente as
palavras não me vinham a mente. Quando em um momento de força, virei-me para
contemplá-la, cai. Minhas pernas não conseguiram me manter de pé.
Ela usava o
mesmo vestido da mulher da tela e por um momento imaginei ser a mesma pessoa. O
vestido cumprido, desenhava seu corpo, o corpo que eu tanto amava. Ela olhou
para baixo e refez a pergunta. Tentei balbuciar alguma coisa, mas a minha voz
estava embargada. Calmamente, ela deu um passo e mais outro, quando chegou
próximo a janela, o vento bateu com força e visualizei a pintura em tempo real.
O que dizer de tudo isso? Eu estava petrificado de medo. A cada sinistra, a
tela, minha amada, tudo isso caminhava para a minha loucura final.
Caído no chão
e quase em posição fetal eu me encontrava. Meus olhos estavam eufóricos e
acompanhavam o desfilar de Selene que se curvou sensualmente e me beijou
vorazmente como de costume. Não retribui o beijo. Senti nojo e horror. Sua
língua forçou a entrada da minha e, quando percebi, estava fraco e gélido como
se minha virilidade tivesse sido sugada pelo o beijo.
A irreverente
mulher, insistiu na pergunta, porém sem obter resposta saiu e me deixou caído
no chão. Seu cheiro ficou em mim, seu gosto em minha boca e em meu coração o
medo de perdê-la se misturou ao medo de eu me perder de mim mesmo.
Tive um momento de Epifania e
minha voz voltou quando pronunciei S-E-L-E-N-E.
Lembrei-me de
perguntar de onde veio esse nome. Esse foi o único momento que Selene tratou-me
com grosseira, seu olhar meigo olhou-me diferente deixando claro que não havia
gostado. Estávamos fazendo trilha quando me escapou a pergunta.
— Meu nome significa personificação da lua. — Disse com rispidez.
Naquele
instante de insight... a tela, a casa no lago, as personalidades, tudo
estava se formando no tabuleiro. Criei forças, levantei e caminhei até a porta
da frente. A única peça que não havia se encaixado no tabuleiro, até então, era
a lua negra. Meus sentidos voltaram e pude raciocinar, estávamos na segunda lua
cheia do mês, uma pesarosa presença me fez tremer, era ela a LUA NEGRA. Sai cambaleando até a porta e para o meu
pavor, a própria lua negra cintilava escuridão no céu. O tabuleiro estava
pronto, suas peças se encaixaram de maneira surreal.
Desejei estar
sonhando, porém para o meu infortúnio não estava. Minha angústia foi por fim
insuportável quando a avistei de longe. Seminua de braços abertos em direção à
lua negra, ela balbuciou palavras em uma língua por mim desconhecida. Despiu-se
por completo e banhou-se no lago. Acompanhei tudo de forma atônita e quando ela
emergiu do mergulho no gélido lago, levantou-se como se estivesse sobre uma
base, mas não estava.
Pela última
vez perguntou-me o que a noite representava para mim. Respondi tristemente que
representava medo. Senti que minha resposta era um adeus. Nada ela falou, não
me dirigiu o olhar e quando corri em sua direção, uma espécie de carro da lua a
pegou e a levou até os céus.
Transtornado,
fui envolto por um sufocante odor em minhas narinas, corri e para o meu temor
incalculável, a casa já estava repleta em chamas, reuni, então, toda a força
que ainda me restava, enchi de ar meus pulmões e entrei por entre as chamas.
Meus esforços foram em vão. A tela que me deixou anestesiado de medo era o
motivo do meu choro, pois estava ardendo em chamas, assim como a casa. Aos
poucos, o ar ficou pesado e eu senti o fim, desmaiei.
Acordei próximo ao lago e sem queimadura alguma. Desde então, meus dias não têm mais brilho, minhas noites são solitárias e sob a luz da lua espero ansiosamente que ela retorne para mim.
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
Copyright © 2021 - WebTV
www.redewtv.com
Comentários:
0 comentários: