O Altar de Lilith
de Diego Ribeiro
1. Prólogo
Rígel iniciou as suas preces matinais em conjunto com o habitual autossuplício. Ele se chicoteou com prazer em honra à Deusa, apesar de seu corpo já estar bastante ferido e repleto de cicatrizes abertas, tudo por conta de sua doentia devoção. Depois desse ritual, ele se reuniu com outros membros do culto e todos começaram a entoar cânticos religiosos em consagração ao nome da divindade.
Os
dias haviam sido proveitosos depois que Rígel foi iluminado pela luz da
verdade. Graças ao Evangelho, ele finalmente se libertou da vida comum e se
refugiou no culto, conseguindo com isso a satisfação que nunca antes havia
sentido em sua miserável vida de estudante. Os fóruns virtuais foram o locus fundamental
para a expansão da seita, e
graças a isso Rígel se viu em volta de diversas pessoas que, assim como ele,
antes viviam uma existência vazia, mas agora estavam realizadas por conta dos
ensinamentos do Evangelho.
A
devoção do jovem foi intensa desde o começo, tendo conseguido a virtude de
bispo em pouco tempo. Agora, ele se encontrava em um dia especial. Após declamar os cânticos junto com os outros
membros, Rígel ergueu o Evangelho e disse:
—
É chegada a hora, irmãos, o anúncio se fará presente hoje. Ah! O Evangelho
confirma tudo! Finalmente estaremos juntos com nossa Deusa. Sim! — depois de
falar isso, Rígel coloca o Evangelho no chão,
prostra-se e bate sua cabeça cinco vezes na superfície. Depois disso, ele
ergueu o rosto, agora ensanguentado, lentamente — Eu consigo sentir a glória, o
poder, a dignidade que logo iluminará o mundo… Precisamos fazer algo digno para
este dia…
Os membros do culto ajoelharam-se
perante o bispo, enquanto ele se levantava e abria os braços com um rosto
repleto de satisfação.
— Chagas da carne, abram-se! Hoje os
porcos imundos irão ter finalmente uma serventia. Irmãos, agora poderemos sair
e realizar a festa de boas-vindas. Faremos
um altar de sangue para o retorno de Lilith!
O
dia havia sido monótono para Anderson, assim como em praticamente toda a sua
vida. Ele acordou, preparou o café da manhã e levou sua mãe, já bastante idosa,
para a mesa com o cuidado e carinho que sempre dedicava a ela. Depois de comer,
ele a levou para a sala para que a mesma pudesse escutar a rádio, enquanto ele
assistia televisão. E assim sua rotina prosseguia com os cuidados domésticos e
com o acompanhamento de sua mãe.
Ele até queria ter alguma alteração
na rotina, com algum relacionamento amoroso, qualquer que fosse, mas era muito
tímido para conseguir qualquer contato com o sexo oposto. Além disso, seu
próprio perfil gordo, com rosto oleoso e dentes excessivamente amarelados, não
era agradável para as mulheres. Nem sequer tinha amigos reais para conversar,
era retraído demais para iniciar qualquer diálogo. Sua vida se resumia a ele,
sua mãe e sua rotina monótona.
Naquele dia, pela rádio, Anderson escutou
que iria ocorrer à noite a Lua negra, ou seja, a segunda lua nova do mês. Ele
ouviu isso com curiosidade, já que o evento em si é bastante bonito para se
apreciar, especialmente sob o vento frio da noite. Era realmente algo
interessante, por isso ele resolveu contar essa notícia para o seu melhor
amigo. Depois de colocar sua mãe para dormir, o rapaz voltou para a sala e
ligou o notebook.
Após isso, ele procurou na área de
trabalho o ícone do programa “Best Friend”, clicando no mesmo ao encontrá-lo. A
tela do notebook ficou escura por um momento até aparecer a imagem de um jovem
bem apessoado, com cabelos negros, olhos azuis e rosto simpático, sorrindo.
— Olá meu amigo! Como vai? Já faz um
tempo, o que você tem de novo para me contar.
— Olá André, os dias estão como sempre:
bastante chatos. — Disse Anderson.
— É uma pena, mas tenho certeza que as
coisas irão melhorar. Mas você tem alguma novidade?
— Sim, sim. Ouvi dizer que hoje é dia de
Lua negra, a segunda lua nova do mês. As pessoas da cidade devem estar bem
eufóricas com isso...
— Que interessante! Além disso, você tem
outra coisa para me contar?
— Ah, falei demais de novo. — Disse Anderson, em
tom de lamento.
Anderson já usava esse programa a
bastante tempo, mas sempre se empolgava quando iniciava uma conversa. Ele sabia
que André, a pessoa que está na frente dele agora, era um ator que foi
convidado para gravar algumas falas e, assim, simular uma conversa real de
amigos entre o usuário e ele, por intermédio do programa. Mas havia um limite
de tempo entre as falas de André, então após ele dizer uma coisa, Anderson
precisava responder de forma sucinta para simular essa “conversa” da melhor
maneira.
— Muito legal, amigo! — Falou André — Mas
me diga, como vai sua vida amorosa?
— Ah, não muito bem… — depois de falar isso, Anderson fechou o notebook — Acho que já basta por hoje...
3. Anoitecer
Anderson passou a tarde restante lendo as mensagens de
variados tópicos dos fóruns virtuais. Era
um passatempo monótono que o ajudava a encarar a passagem do tempo até o
próximo dia. Enquanto olhava focado para a tela do notebook,
ele escutou dois sons: um parecia uma pisada
forte no andar de cima, devendo ser do seu vizinho, mas o outro era de uma
notificação de um programa.
O rapaz mudou a aba de pesquisa e abriu o programa de
relacionamento que, para a sua alegria, havia anunciado o “match”
com uma mulher. A informação em si, já o
alegrou imensamente. Ao ver a foto da moça, ele notou que ela era bastante
bela, trabalhava como cuidadora de idosos, estava acima do peso, como ele, mas
tinha olhos negros profundos, em nada camuflados pelos seus óculos.
Já era quase 16:00
quando Anderson recebeu essa grande notícia e, mesmo receoso, mandou uma mensagem para ela, um simples “oi”, no
alegre intuito de iniciar uma conversa. Não demorou muito para a moça responder
com outro “oi”, e assim o diálogo começou. O nome
dela era Letícia e era bastante simpática. Anderson colocava suas fotos reais,
sem nenhuma alteração, então o fato da moça ser espontânea e comunicativa o
alegrou e o surpreendeu muito.
A conversa ocorreria ao passo em que o tempo seguia. Sem
que Anderson percebesse, já era de noite. O rapaz notou no céu a lua nova a
iluminar o mesmo de forma fulgurante, era uma imagem bonita e o envolveu por
muito tempo em um grande fascínio, misturado com a felicidade que ele tinha
adquirido agora. Ele até chegou a derramar algumas lágrimas, tamanha a emoção.
Depois de tanto tempo, tudo finalmente daria certo para ele. Apressado, já se
imaginava em um relacionamento pleno e duradouro com Letícia.
A conversa entrou em um convite de visita por parte do
rapaz à moça, o qual a mesma prontamente aceitou. Ela chegaria em meia hora e
despediu-se com um atencioso “até logo”. Depois de se despedir, Anderson clicou
imediatamente no ícone do “Best Friend”
e esperou o aparecimento do seu melhor amigo. Enquanto a imagem carregava, ele
escutou uma batida na porta e, curioso,
foi descobrir de quem se tratava. Quando saiu do quarto e chegou na sala, o
rapaz percebeu que a porta estava aberta e aproximou-se apressado para
fechá-la. Antes de chegar lá, ele desmaiou tonto, sentindo o sangue escorrer da
sua cabeça depois de um abrupto golpe.
Anderson
acordou com uma imensa dor de cabeça, podendo notar ainda o sangue escorrer
pelo seu corpo. A dor latejante o deixava atordoado, mas o que mais o incomodou
depois de despertar foi a pressão das algemas no seu pulso e pescoço. O
interior da sua casa estava escuro, mas ele ainda notava uma risada demoníaca
aumentando na medida que ele se contorcia de dor.
— Quem está aí? Ah, meu Deus, que dor…
Mamãe? Você me escuta? Alguém de fora me escuta?! Socorro!
— Ora, ora — disse uma voz zombeteira do
meio das sombras — acalme-se, acalme-se. Eu receio que fui mal educado não me
apresentando.
— O quê?
O quê? Quem está aí? Desgraçado,
me solta!
Anderson conseguiu distinguir a
imagem cadavérica de um homem magro, com um cabelo em corte de tigela, olhos esbugalhados
e pele pálida, envolto em um manto negro e cercado por outras pessoas com a
mesma roupa e com máscaras brancas cobrindo o seu rosto. A figura se aproximou
do rapaz e curvou-se:
— Minhas sinceras desculpas. Me chamo
Rígel Santi Germano, honorável servo de Lilith e bispo de sua graça. Perdão
pelo incômodo…
— Ah? O quê?
Meu Deus, onde está minha mãe?! O que… O que diabos é isso?
— Hmm, está com saudade da mamãe? Não se
preocupe! Acalme-se, acalme-se. Espere só um instante — falou Rígel, voltando
ao interior da casa e buscando algo. Ele
voltou em poucos minutos escondendo algo na mão direita — Olha só rapaz, olhe quem chegou… É a mamãe!
— Disse em um grito, enquanto mostrava o que havia escondido.
Anderson não conseguiu expressar de
início uma palavra, somente vomitou quando viu na mão do sociopata a carcaça de
um rosto humano. Rígel riu descontroladamente depois de ver essa cena.
— Que engraçado! Como você é engraçado!
Hahahaha. Sim, gostei muito de ver isso. Muito bom, você tem futuro para
comédia, hein? Hahaha.
— Meu Deus…— Falou Anderson chorando em
desespero.
— Mas que bebezinho, chorando logo agora?
Não, não, pode parar. Agora é hora de ser alegre, hoje é um dia muito especial.
Você escutou? Hein! — Disse Rígel,
segurando a cabeça de Anderson que ainda estava em prantos — Oi? Por que você
está chorando? Eu disse que não era chorar. Por que você não para? Não me
escuta? É surdo? É idiota por acaso? Oi? Ei, pare de chorar. Hoje é um dia
especial…. Pare com isso! Desgraçado, você está estragando tudo!
—
Mamãe… Mãe.. Mã.. não, não… Mãe, por quê?
Meu Deus, por quê?
—
Mamãe aqui, mamãe ali, você é uma criança mesmo, né. Caramba! Pare de chorar!
Rígel bateu a cabeça de Anderson no
chão várias vezes, enquanto gritava de forma histérica “você está estragando
tudo”. Quando parou, ele se levantou e pediu que seus servos tirassem as
algemas de Anderson.
— Você não percebe a grandiosidade dessa
noite. Ah, a Lua ainda brilha, ainda anuncia a chegada da Rainha deste mundo.
Olhe, ei! Levante a cabeça. Ei, levante a
cabeça — disse Rígel, enquanto se
aproximava do rapaz que mal conseguia se manter consciente — Alô?
Ainda está aí?
Nesse momento, Anderson levanta a
cabeça e cospe sangue em Rígel que somente riu de maneira mais descontrolada
depois dessa ação. O bispo colocou as duas mãos no rosto, enquanto gargalhava
de maneira sinistra.
— Ai, ai, ai, quem diria? Eu não esperava
encontrá-lo aqui. O opositor! O Evangelho previu que você surgiria, O
zombeteiro da honra de Lilith, aquele que se recusa a comemorar seu retorno e
blasfema contra os sacerdotes da Deusa. Ah, sim, sim, — Disse, enquanto tirava
um livro velho da cintura e folheava ele, arregalando os olhos em êxtase — , o
opositor está aqui! Vamos amigos, precisamos dar a ele o que o mesmo merece…
Peguem-na.
A visão turva de Anderson conseguiu
distinguir uma figura feminina extremamente ferida, sendo trazida pelos servos
de Rígel.
— Não pode ser… Leticia? Parem com isso!
Ela não!
— Ah, ora, ora, então agora você vai
falar? Opositor! Escute-me, por mais que tente, nada que faça poderá evitar o
retorno de Lilith. Ela reinará neste mundo e porá fim a você e a todos os que
pecam contra seu nome. Entendido?! Você não irá atrapalhar o retorno da Deusa!
— Do
que você está falando, seu louco, maníaco!
Letícia? Por que a boca dela está sangrando tanto? Letícia?!
— Ela falava demais, assim como você fala
demais, opositor. Agora, peguem as cordas.
— Desgraçado!
Anderson parte em fúria para cima de
Rígel, mas os servos deste o derrubam e o espancam no chão. O maníaco ri
descontroladamente, até novamente falar.
— E então, o opositor se ergue e parte
contra o sagrado sacerdote da Deusa. Mas! Mas, mas, mas…. ele é parado pelos
fiéis servos de Lilith. Nada do que ela possa fazer irá frear o retorno da
Imperatriz deste mundo!
— Ah… droga! O que você veio fazer aqui?
— Hahaha, como se não soubesse, opositor?
Como um nobre e humilde bispo de Lilith, somente estou realizando as boas-vindas
para o seu retorno. Sim! O Evangelho diz, tudo,
tudo, tudo! Na primeira Lua Negra de 2021,a Deusa voltará e reinará sobre a
Terra. Nada mais justo que construir um altar de sangue em sua honra!
— Não.. Não… Não… Por favor, pare com
isso.
— Lágrimas de crocodilo. Não conseguirá
nos enganar com isso. Vamos! Estique ela.
— O quê???
Letícia! Não! Parem com isso!
— Apertem a corda e estiquem
ela! Ah, veja como ela quer gritar, mas não tem mais a língua demoníaca para
dar voz a suas heresias! Que tal imaginar o que ela diz, hein,
opositor? Talvez seja algo como “Oh, salve-me. Evite a chegada da luz do mundo,
não podemos permitir que ela retorne e encha de alegria toda a vida desta
terra. Me ajude, salve-me opositor. Ah, não! Meu braço está saindo! Meu sangue
não para de jorrar! Opositor, não! Não iremos impedir a redenção do mundo!” –
Diz a donzela em agonia pelo fracasso do intuito
demoníaco, enquanto o vilão lamenta a sua impotência no chão frio. Que
espetáculo! Sensacional! Que show! Hahahahaha! — Riu ainda mais.
Anderson já estava sem forças no
chão, não conseguia nem chorar, nem gritar. O sangue que sentia sair de si, já
estava frio e ele mesmo se notava gelado naquele instante. Destruído no chão,
ele viu seus sonhos naquela noite sumirem sob esplendor da Lua negra. Antes de
partir, ele ainda escutava as gargalhadas sinistras de Rígel e os seus gritos
histéricos proclamando “Ela voltou! Ela finalmente retornou!”.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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