Hécate e Lilith
de Heron Teixeira
– Você é como Hécate, meu amor – Disse
minha amada Amanda olhando no fundo de meus olhos, deixando seus cabelos
recaírem sobre meu rosto.
Acampávamos
em uma zona de barracas para aventureiros próxima à praia, em mais uma noite
escura a desfrutar o fim de semana só para nós. Desgastávamos nossas vistas
lendo, com o suporte de uma ínfima lanterna, alguns livros dos nossos temas
favoritos. Cultos impopulares, entidades desvalorizadas pela história e
mulheres cuja sabedoria foi vandalizada pela forma tola como a sociedade
construiu suas crenças. Essas problemáticas normalmente nos tirariam a
tranquilidade se as pensássemos sozinhas, mas em momentos como aqueles, onde
nos reconfortávamos na presença uma da outra, tudo era mais confortável e doce.
– E o que eu tenho em semelhança com uma
Deusa de três faces? Quer dizer que me acha bipolar? – ri,
provocando-a.
Você é tripolar! – rebateu-me, também
rindo e beijando suavemente minha testa. – Mas
não foi o que quis dizer. Assim como Hécate você tem essa ligação com a vontade
de ser mãe, não é? E esse lado seu protetor de quem quer salvar alguém que
passa por um território selvagem. – Beijou-me agora com um pouco mais de
força a pressionar nossos lábios por longos segundos.
– Se você pensa assim, então sou como
Hécate. Agora você... deixe-me ver... Está mais para Lilith! – Quis
surpreendê-la – Quando lemos sobre ela, vimos que representava a impetuosidade.
Você é bem impetuosa, sabia? Mas a principal característica que eu vejo em comum
é a certeza de que ninguém pode te inferiorizar. – toda sua convicção me
fascinava – Ah! Você tem mais uma coisa
em comum com a Lilith – Já falei com uma expressão de deboche.
– E o que seria? – perguntou
– Somos duas gostosas? Diabinhas? – Completou provocantemente.
– Isso também –
respondi atendendo à provocação com segundas intenções – Mas a outra coisa em comum é que vocês têm um péssimo gosto para homem
– Gargalhei, ciente de que a havia irritado.
Antes
mesmo de que ela tentasse devolver-me com uma resposta à altura da afronta,
larguei a lanterna ainda ligada ao chão e tirei o livro de mitologia que estava
em suas mãos. Virei-me e me pus sentado ao seu lado. Começamos a nos beijar tão
fortemente quanto no nosso primeiro encontro em fevereiro de 2018. Mesmo mais
de um ano depois, naquela noite de sexta-feira, estávamos com a paixão ainda à
flor da pele.
– Amanhã é 31 de agosto, meu amor –
disse eu, em uma pausa – o que você quer
fazer no seu aniversário?
– Não sei, mas acho que quero passar o dia
com você – e novamente partimos
para nossa troca de afetos.
Neste
último ato nos distraímos intensamente. Tão profundo o transe que não notávamos
o mundo ao nosso redor. Nem o frio noturno que ficava ainda mais agudo, nem o
passar das horas. Quando nos demos por si, uma gélida garoa lançava seus
chuviscos sobre nós e fomos forçadas a juntar as coisas às pressas e nos
jogarmos para dentro da pequena barraca que levamos parra passar o fim de
semana juntas.
Na
zona de camping, estranhamente não havia mais ninguém. Ainda que fosse um
agosto corriqueiro, sem férias de verão ou feriados prolongados, esperávamos
que a sexta-feira atraísse mais alguns campistas. O lado bom era que teríamos
ainda mais liberdade. Já cogitávamos correr nuas para o banho de mar durante o
amanhecer, caso ninguém mais surgisse.
Cientes, não havia quem nos inibisse. Estávamos
prontas para aquecer nossas intimidades. Ansiávamos, com aquela avidez da
juventude, por mais uma noite de amor e liberdade. Dentro da pequena barraca
estávamos à salvo da chuva e do frio devido à lona acima de nós e livres da
invasão da água abaixo que porventura viesse devido ao tablado de madeira que
trouxemos justamente para elevar a barraca do chão em caso de torrente.
Estávamos
prestes a intensificar aquela noite quando um clarão varou a noite acompanhado
do forte estrondo do trovão. Amanda gritou e apertou apertou-me com força
tamanho o susto. Eu mesma segurei forte o travesseiro, amedrontada. Fora muito próximo, pensei. Olhamo-nos
rapidamente e rimos das nossas expressões assustadas, prontas para retornarmos
de onde havíamos parado. Infelizmente, não tivemos a chance.
Tão
repentino quando o primeiro, uma segunda descarga estrondou, despertando em nós
a mesma reação de antes. Para nosso pavor, um terceiro deu-se em sequência com
um intervalo ainda menor. E, então, incontáveis descargas caíram sobre a terra desencadeando
uma ensurdecedora sinfonia de trovões. Mais do que pânico sentíamos pelo
iminente risco de sermos atingidas pelo pandemônio de raio que devia estar a se
passar fora de nossa barraca. Os estrondos podiam ser sentidos em ondas de
impacto em nossos corpos. Estávamos abraçadas completamente entregues ao medo
primitivo e intraduzível.
Durante
pouco mais de um minuto estivemos no centro de um caos de descargas elétricas
sem precedentes. Tudo cessou, no entanto, deixando um ruído altíssimo em minha
audição. Amanda parecia estar de modo igual. Não ouvíamos as vozes uma da
outra. Aparentemente, estávamos temporariamente surdas. Assustadas, choramos
por alguns minutos agarradas a buscar força em nossa própria ligação. E, assim,
conseguimos nos acalmar o suficiente.
E se aquilo voltar a acontecer, pensei.
Tínhamos que sair dali o quanto antes. Gesticulando e movendo os lábios, tentei
convidá-la para irmos para longe, buscar um abrigo mais seguro para o caso de
uma segunda rodada de pesadelo. Botei o braço para fora e a chuva parecia pouco
intensa. Conseguiríamos chegar à vila próxima rapidamente se corrêssemos, mas
Amanda estava em choque. Queria protegê-la, então puxei-a para fora, apesar de
seus protestos. Com as duas mãos em seu braço, fiz força para tirá-la de dentro
da barraca. Ela resistiu com a força de um louco.
Com
meu corpo quase todo sob a chuva, tive as mãos encharcadas. Seu braço deslizou
de minha pegada e, pela força que fazia, caí desatinada dando alguns passos
para trás. Por um segundo, senti profunda raiva e indignação, mas não tive
tempo de processar estes sentimentos. Quase a me cegar e estourar meus
tímpanos, um raio caiu bem sobre a barraca à minha gente. Lancei um grito
sobrenatural em desespero. Amanda fora pega pela descarga. Ninguém sobreviveria
àquilo.
Corri
para socorrê-la. Estava estirada, enrijecida sobre o colchonete que se queimara
e grudara em sua pele. Mesmo a lona da barraca havia caído e derretido sobre
seu belo rosto. Chamava por seu nome, mas não havia resposta. Não pude testar
seu pulso em meio a tanto pavor. Corri com ela em meus braços. Minha força era
pouca e sequer suportei erguê-la. Nossos celulares estavam na barraca, não
havia forma de contato remoto. Decidi que correria à vila para clamar por
socorro, mas então percebi que numa longa extensão, de o que me parecia
quilômetros ao redor, a terra estava arrasada e com aspecto de incendiada,
mesmo sob a chuva.
Compreendi
que o pandemônio de raios havia feito aquilo. Perdi completamente a esperança e
cai aos prantos. Queria fazer como minha avó e pedir pela ajuda e proteção de
Deus, mas nunca acreditei neles. Em minha mente veio apenas Amanda e nossa
recente conversa sobre Hécate e Lilith. Então fiz aquela que seria a minha
única oração sincera de toda a vida:
–- Lilith, por favor. Se você existe e teve a força para confrontar os
primeiros e mais impiedosos homens, eu te peço, por tudo que há de mais
precioso no universo. Salva a minha amada! Uma mulher tão admirável quanto você
neste mudo cruel e selvagem. –
disse ainda mais alto – Eu te dou
qualquer coisa, socorro! – desejei que houvesse algo de sobrenatural
naquele mundo sem cores que tanto me fizera sofrer. Que este algo fosse capaz
de salvar Amanda e trouxesse novamente cor à minha vida. Estava prostrada, quando ouvi, vindo da
direção da barraca a voz de minha amada e de outra mulher, sobrepostas.
– Não me ofereça nada, minha criança. Os homens desse mundo já nos
privaram de muito, não é mesmo? – As vozes vinham de Amanda - eu já ouvia o chamado de todas as minhas filhas
há muito tempo. E por todas vocês eu começo agora o verdadeiro apocalipse da
renovação. Despertarei as novas avatares do divino.
– Por
favor, apenas devolva minha Amanda para mim, eu a amo!
– Ela será meu receptáculo para a
purificação deste mundo sujo. Você se juntará a ela, recipiente. Suas mãos
proféticas ergueram uma pura utopia. – veio
em minha direção e tocou meus lábios – pode me ouvir, Hécate?
Perdi
minha consciência.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
Copyright © 2021 - WebTV
www.redewtv.com
Comentários:
0 comentários: