Nada é Impossível
de Irene Curcelli
O expediente da fábrica começava às 7:00 horas da manhã em
ponto. O silêncio
só era interrompido pelo som das máquinas a cada 30 minutos. As tarefas eram feitas
mecanicamente, cronometricamente e sistematicamente. Nada podia sair da ordem e do tempo. Todos eram
escravos do relógio e da perfeição. O único humano dessa fábrica era o gerente Alberton. Tinha
passado dos 50 anos, pelo menos a sua aparência mostrava isso. Olheiras muito
profundas e crônicas de quem mal dormira a noite eram marcantes em seu rosto e
seu jeito grosseiro e mal-humorado
de se comportar com tudo.
Causava terror nos
pobres "metal-men", principalmente no seu assistente direto, Adam.
Ele não se importava com sentimentalismos, confortos ou outros supérfluos. A
ele e toda a presidência só interessavam os lucros. Ele era um acumulador de
bens materiais. Possui
tudo que desejava, só não possuía
tempo para desfrutar. E, nem mesmo tinha tido tempo em sua juventude, para
formar uma família. Nunca
se dera conta de que também era apenas mais um no Sistema, apenas mais um
escravo da Robot & Cia do Nordeste.
Hoje era segunda-feira de um dia muito chuvoso, o que piorava os
ânimos de Alberton, pois nesses dias chuvosos lhe doía as articulações e isso o deixavam
especialmente irritado. Sabendo disso, Adam, já lhe preparara o café na bandeja
de prata, com os 4 tipos de lanches de sua preferência, uma vez seria péssimo se optasse por
um errado. Adam
olhou pela janela de vidro estratégica, onde podia se ver que toda a fábrica já
estava a todo vapor, consultou o relógio que marcava 07h01, suspirou aliviado, pensando que o
dia seria sem intercorrências desagradáveis. Mal acabara de pensar isso e já
levou um choque elétrico de muitos volts pelo controle remoto de Alberton. Ele
estava furioso pelo café morno e fraco. Apertava os botões do controle remoto
furiosamente contra Adam, o que ocasionava sérios danos, todos reversíveis, mas
com dores lancinantes em toda a sua engrenagem. Após ter sofrido esse ataque de
fúria, Adam caiu no chão e lá permaneceu por mais de duas horas até um socorrista da
Matriz aparecer para restaurá-lo.
Quando o socorrista chegou, Adam já estava no seu
limite. As válvulas desalinhadas continuavam a lhe dar choques e descarregara
quase toda a sua energia. Tinha medo de apagar para sempre. Em seus devaneios,
imaginava um lugar para
além dos muros daquela fábrica, onde existisse um jardim cheio de flores,
passarinhos e seres humanos realmente humanos, que tratassem os robotes com
carinho e consideração afinal,
ele tinha sido projetado pra isso, para facilitar a vida dos humanos, dividir suas tarefas,
participar de suas alegrias e conquistas. Vendo que Adam delirava, mesmo após o conserto,
o socorrista resolveu deixá-lo desligado por 24 horas por medida preventiva.
Mas estranhamente, Adam não se desligou totalmente. Na sua aparência se
mostrava inerte, mas
os seus pensamentos continuavam iguais. Ele ouvia tudo, e pior, sentia tudo.
Colocado num canto da sala de Alberton podia ouvir os palavrões irritados que ele falava ao telefone.
Como não tinha mais nada pra fazer ficou ouvindo e meditando na sua estranha vida de robot.
Se distraiu tanto nos seus devaneios e observações,
que nem viu o tempo passar e levou até um susto quando a sirene das 18 horas
tocou, encerrando o expediente. Depois viu Alberton fechar a janela e sentar
pesadamente na cadeira, bufando, como se levasse o mundo nas costas; Ainda
acendeu aquele charuto fedorento, e pegou debaixo da mesa uma garrafa de wisky e se serviu uma dose
bem generosa. Abriu a camisa e colocou os pés em cima da mesa, não antes de ligar o som numa música bem
romântica. Olhando assim, ele até parecia outra pessoa...-Sei lá, mais humano,
-pensou Adam. Nunca tinha visto Alberton naquele estado, sempre lhe parecera
impossível: relaxando ou pensando em outra coisa que não fosse a
fábrica...-Ouvir música romântica então? -pensou espantado. Ele não podia nem
sonhar que estava sendo observado. Passado uns 20 minutos, ele trocou de camisa se alinhou, penteou os
cabelos, passou loção e perfume, desligou o som e pegou distraidamente uma pasta, mas apenas
fingia que estava lendo alguma coisa, pela expressão do seu olhar, podia se notar que estava muito
longe dali...-observou Adam.
Alguns minutos depois o interfone toca anunciando a
chegada da Senhorita Anabella. Imediatamente Alberton se colocou em pé, alisou
o cabelo novamente, conferiu mais uma vez se não havia alguma falha grave em
suas roupas, e abriu o maior sorriso de boas-vindas na chegada da moça. Anabella era
realmente bela. Adam nunca vira um nome se ajustar tanto a uma pessoa. Com
modos suaves e olhos muito azuis e aquele vestido esvoaçante também de tom
azul, lhe dava um ar de princesa dessas que parecem de cinema.
Alberton também tinha sido pego desprevenido, estava
estonteado com a beleza da moça. Estava tão encantado que pela primeira vez as
palavras lhe sumiram, mal conseguiu balbuciar seu nome quando a moça se
apresentou. Naquele momento se arrependeu de não ter tomado uma dose dupla de
bebida, isso com
certeza lhe ajudaria a relaxar nesse momento de euforia -pensou arrependido.
Anabella abriu a bolsa e tirou diversos documentos.
Tinha um em especial que estava dentro de um envelope lacrado, enviado pelo
diretor da empresa ao sr. Alberton, onde anunciava que ela
seria também sua assistente,
os negócios estavam crescendo e precisaria de alguém bem treinado caso
ele optasse por tirar alguns dias de férias. Alberton estranhou a palavra
férias, afinal em
todos esses anos, só tirara férias mesmo uma vez, depois disso, mais nenhum
diretor mencionou essa possibilidade. Eram apenas dois ou três dias no final de
ano, data essa que ele nunca se importava de trabalhar, pois achava melancólico passar final de
ano sozinho. Tinha perdido a conta de quantas vezes passara a passagem do ano
novo na companhia de Adam. Era sempre a mesma coisa: Ele pedia para Adam lhe
acompanhar na abertura da champagne, bebia a garrafa toda e depois desmaiava no sofá. Quando acordava a dor de cabeça era tanta, que
tomava um comprimido e voltava a dormir. Só se recuperando no dia 2, quando a
fábrica voltava a funcionar a todo vapor.
Mas agora, diante daquele sorriso encantador achou a ideia ótima. -
Com certeza Anabella seria uma excelente assistente -pensou emocionado,
enquanto seu coração batia atrapalhado, tão atrapalhado que Anabella tomou a decisão de se sentar e
já foi logo se desculpando pelo horário, já que havia saído de uma reunião e ainda pegara
um trânsito muito engarrafado.
Ele mal
conseguia reagir, apenas concordava e retribuía o sorriso. Por fim, conversaram
mais um pouco e logo depois deixaram o escritório juntos.
Quando a luz se apagou, Adam pode enfim relaxar. -Mas
como? -se perguntava. Mesmo estando num canto, como uma geringonça qualquer por dentro ele estava
em alerta, e a imagem de Anabella, não lhe saia da cabeça. Nunca havia experimentado
uma situação dessa, sentia-se leve como se flutuasse. Aqueles olhos azuis eram os mais bonitos
que já vira. Não imaginava que pudesse existir uma pessoa tão bela e formosa...
-O que será que existiria além daqueles muros da fábrica que ele não sabia. -se
perguntou curioso. Após
algumas horas começou a ficar ansioso, queria que o tempo voasse para novamente
desfrutar da companhia de Anabella. Então um calafrio lhe subiu pela espinha, se ela seria a nova
assistente...-estaria despedido ou seria desmontado? -pensou já em pânico. E, a partir daquele
momento, as dúvidas e as emoções do dia não lhe deixavam esfriar, sentiu que
estava aquecendo demais,
muito além do normal,
sem saber o que fazer, de repente desligou-se automaticamente.
Não sabe precisar quanto tempo se passou, mas quando
abriu os olhos, achou que estava sonhando. Aqueles olhos muito azuis lhe
fitavam com ar de preocupação, enquanto arrumava os parafusos e testava toda
engrenagem do seu corpo. Se sentiu um boneco de metal, daqueles sem serventia, pressentia que logo
seria descartado ou ignorado em algum canto qualquer. -Não agora! -pensou aflito -Agora, que a
vida estava começando a lhe sorrir tentava ajudar, mas as forças lhe faltavam e apagou novamente. Alguns minutos depois, Adam se recuperou
plenamente. Abriu
os olhos novamente, e lá estava ela, Anabella toda sorridente e satisfeita com
o trabalho que acabara de executar. Pegou Adam pelo braço e disse que seriam
colegas de profissões, mas que antes, seriam amigos, e deu a piscada mais
incrível que ele já vira.
A partir daquele dia, a vida não era mais a mesma
naquela fábrica. Alberton
se caíra de amores por Anabella. -Só um cego não enxergaria -pensava Adam, admitindo um certo
ciúme. Aquele homem rude e grosseiro deixou de existir, agora era só sorrisos,
elogios e convites velados a srta. Anabella que sempre também muito gentil, fingia que não
entendia. Com a chegada de Anabella, Alberton redecorou todo o escritório, até a cozinha estava
reformada. A geladeira vivia cheia de guloseimas. Como Anabella não comia nada, dizendo estar de
dieta, Alberton, querendo impressionar, continuava todos os dias a lhe trazer um quitute diferente,
ou um queijo importado, chocolates finos, até que desistiu de agradar a moça pelo estomago. E, ele mesmo começou a fazer
uma dieta, também
queria parecer mais jovial e elegante para a sua amada. Para poupar Anabella,
todo o serviço pesado ficou nas mãos de Adam, mas mesmo assim, estava bem
tranquilo, toda a
parte de papéis e encargos de pagamentos ficara com Anabella e isso lhe dava um
bom tempo de descanso.
Adam e Anabella conversavam todos os dias, antes do expediente, a moça chegava as 6:00
horas em pontos, uma
hora antes do expediente começar, e nesses momentos, conversavam como velhos amigos. Adam
sempre lhe perguntava sobre o que havia atrás dos muros da fábrica. Inicialmente Anabella
ficara surpresa, mas agora, se compadecia da vida monótona de Adam e até lhe prometera um
passeio quando tivesse uma folga.
Adam mal podia esperar quando esse dia chegasse. Em seus devaneios
passearia de mãos dadas com Anabella, acariciaria seus cabelos, correriam por jardins iguais aos que ele vira
num filme há muitos anos atrás
quando seu antigo chefe gostava de ver filmes em horário de expediente. Alberton
quando percebeu que Anabella chegava mais cedo, começou a chegar mais cedo
também. Chegou até
lhe perguntar diretamente o horário de chegada de Anabella todos os dias, o que Adam mentiu
dizendo nunca ter verificado o horário, mas agora, seria um encargo e Alberton queria um
relatório completo sobre Anabella nos momentos em que ele não estivesse no
escritório.
Alberton também flertava com Anabella sem se incomodar
com os olhares de Adam.
A sua paixão estava tão fora de controle, que ele não conseguia mais esconder.
Anabella, sem graça, vivia fugindo dos seus assédios... Até que um dia foi
surpreendida com um anel e um pedido de casamento em pleno horário de
expediente. A moça como sempre, muito polida, disse que se sentia lisonjeada
pelo bem querer, mas que no momento era muito jovem e pretendia seguir estudos que casamento não fazia
parte dos seus planos.
Adam nervoso, ouvia tudo aquilo, e o ciúme lhe corroía. -Agora, Alberton
fora longe demais- pensou enraivecido -como poderia ter feito tamanho ridículo
diante de tão boa moça. E, pela primeira vez teve vontade de lhe dar uma
bofetada dessas pra
acordar e colocar a pessoa na real. Mas nem foi preciso. A partir daquele dia, Alberton se fechou novamente. Passava os dias
calados, até emagrecera só
executando as ordens da Matriz, tratava Anabella com polidez e Adam grosseiramente
como antes, mas
todas as vezes que ele tentava disparar os choques pelo controle remoto contra
Adam, Anabella
interferia a seu favor salvando
sua vida muitas vezes.
Numa sexta-feira, Alberton precisou sair mais cedo para uma reunião com a
diretoria e Adam
quase desmaiou de felicidade quando Anabella lhe convidou para um passeio fora
dos muros da fábrica.
Quando ela abriu os pesados portões com suas chaves extras Adam não acreditava no
que via: Largas avenidas com árvores frondosas e floridas cheias de passarinhos e ainda, do outro lado
da avenida podia-se ver o mar. Adam estava extasiado, nunca vira o mar, nunca vira tanta água num mesmo lugar. Atravessou a avenida
como criança. Sorria
e chorava ao mesmo tempo, e quase foi atropelado, o que deixou Anabella muito aflita e agora lhe segurara
forte pelas mãos, como uma mãe.
Ele queria entrar no mar, mas Anabella não achava
prudente, as suas peças poderiam enferrujar, então sentaram-se na areia, de
mãos dadas ainda, e assistiram ao pôr do sol. Adam tinha medo de acordar sabia que era um sonho, que Anabella lhe
era um amor impossível, pois no coração dos homens nunca haveria um sentimento
mais profundo por um robot,
então, sem querer se
pegou perguntando para Anabella: -Como é possível eu ser uma máquina e ter emoções. Eu gostaria de
ser humano. Gostaria
de ter a felicidade do Pinóquio
quando uma Fada lhe transformou num menino.... -Isso existe? O olhar de
Anabella se compadeceu: -Não sei porque alguns Robotes saíram diferentes,
talvez tenha sido um erro dos criadores, mas você não pode deixar ninguém saber, eu sei que estão
exterminando todos que apresentarem qualquer tipo de anormalidade. Depois dessa
conversa, não tiveram mais nenhum tempo juntos. Alberton estava cada vez mais intransigente gritava com Anabella, com
Adam e até com as paredes.
Não podia controlar mais a sua paixão e assediava Anabella todos os dias, e a cada negativa
da moça, ele se tornava mais agressivo muitas vezes Adam teve que interferir quando Alberton tentava
beijar a moça a força.
Num dia, em que Anabella já estava sem nenhuma
paciência, resolveu pedir demissão, ignorando mais uma vez todas as investidas de Alberton para se livrar de mais
um beijo indesejado, ela quebrou um vaso de flor em sua cabeça. Alberton enlouquecido,
sacou a arma e disparou vários tiros em Anabella depois saiu correndo, porta afora da fábrica
como um foguete.
Adam desesperado correu para salvar Anabella que
estava caída no chão, mas
os seus ollhos continuavam muito azuis e não havia sangue apenas peças caídas de uma engrenagem quase perfeita de um
corpo de mulher. Estupetado -Adam constata que Anabella também é um robot -Como
não percebi isso antes -se
pergunta incrédulo!
-De qualquer forma, Anabella corre perigo -pensou
aflito! e começou imediatamente a consertá-la. Passou a noite toda a executar
tudo que sabia... até que em plena madrugada, Anabella acorda. Estava muito
fraca pela perda de energia, mas o seu sistema se restabeleceria em horas, ela tinha um automático
especial.
E quando Adam pensou que era o fim, Anabella lhe propões que fujam juntos. As 06h00 horas partiria um navio. Juntos agora seriam invencíveis. Não para lutar contra o mundo, mas para serem livres e para viverem um amor. Adam pega Anabella no colo e corre feito louco até o porto. O navio está quase partindo. Eles se misturam as pessoas apressadas e passam despercebidos. Nem eles mesmo sabem como viverão esse amor, mas terão todo o tempo do universo para aprender com os humanos, com os bichos, com os pássaros...
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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