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Antologia Romance à Vista: 1x16 - A Carta de Amor que se "Desescreveu" (Penúltimo Episódio)

Conto de Giordana Bonifácio
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Sinopse: A história de uma carta de amor escrita e que a dor da rejeição "desescreveu". 


A Carta que se "Desescreveu"
de Giordana Bonifácio

 

“Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas”
(Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa)

 

Estava muito tempo naquela tarefa árdua. Fizera um esforço hercúleo para escrever aquelas linhas apaixonadas. Usou de figuras de linguagem, de recursos estilísticos, enfim, abusou das musas. Queria uma carta que fizesse a mulher por quem há décadas nutria um amor platônico, de pronto, ao fim da leitura, também lhe dedicasse o amor tal qual ele o que ele nutria por ela. Ah, que Vinícius e seus versos não se comparariam àquela epístola tão aprimorada! Escreveu, reescreveu, apagou, riscou, mas depois de toda uma tarde escrevendo a carta de amor mais bela de todos os tempos, perfumou o papel, colocou no envelope e lacrou a carta com cera. Estava pronto. Colocou a carta no bolso, subiu no camelo (bicicleta para quem não é brasiliense) e foi ao encontro de sua amada imortalizada naquelas frases adocicadas.

O caminho foi de uma ansiosa viagem, corria na bicicleta, as ruas, que estavam tão repletas de pessoas, pareciam-lhe vazias e sua mente viajava nas palavras que escrevera. Tinha tudo gravado de cor. Se a mulher a quem dedicasse seu coração pedisse-lhe que recitasse o conteúdo daquela carta, ele saberia declamá-la sem erros. E ele revisava em mente o que escrevera. E repetia uma ou outra frase enquanto se dirigia ao castelo de sua princesa. Na verdade, apartamento no bloco a duas superquadras do edifício em que morava. E ele, por fim, aprovara seu texto. Que cavaleiro nunca escreveu uma carta de amor para a donzela com quem sonhava?

Lá ia nosso Lancelot, orgulhoso de amar sua Guinevere. Dedicar-lhe-ia todas as suas batalhas. Trazia na mente suas feições, seus sorrisos e olhos. Queria tanto saber desvendar as feições de sua amada, saber se o amor que por ela tinha era recíproco. Mas sentia-se um tanto perdido quando lhe fitava os olhos. Ele perdia-se naqueles olhos de mar. Ficava à deriva. E nem sabia o que lhe dizer tamanho o seu desconserto. Por isso, escrevera tudo o que sentia. Não poderia deixar de fora nenhum dos sentimentos bobos e frágeis que fazem do amor essa sensação boa e quente que toma o coração dos homens.

Ele criava as mais altas expectativas. Sonhava com os beijos, com os carinhos e com o afeto que receberia. Ela, enfim, saberia o que ele sentia! E o final seria como nos contos de fada: felizes para sempre. Sem dúvida ao ter contato com a carta, ela se emocionaria, apaixonar-se-ia pelos versos tolos de um enamorado cavaleiro. Em seu possante alazão ele seguia ao encontro de sua amada. Um homem que enfrentou toda uma longa curta jornada para dedicar-lhe o seu coração.

O sol estava se pondo, as luzes dos postes acendiam-se em sequência e a tarde tomava a cor dos rostos dos amantes. Os sons das ruas não o atingiam. Ele seguia incólume na sua armadura de sonho. Esperando que o amar não fosse tão imprevisível quanto o mar. Como os olhos de maresia que esperava logo ver. E não havia gigantes ou moinhos que o impedissem de chegar ao coração de sai amada. Dulcinéia de Toboso, a quem um cavaleiro andante devotava o mais puro amor, não resistiria à magia de suas palavras.

Chegou ao bloco de sua donzela e deixou o seu corcel preso ao bicicletário. Foi tirando a carta do bolso. Estava com o coração acelerado. O rosto já enrubescia. Sentia um frio no estômago e suas mãos suavam. Ele já considerava voltar sem ter cumprido o seu intento. E se ela dissesse o que ele não queria ouvir? Seria melhor que lhe respondesse um não direto, pois o silêncio seria mais penalizante para ele do que qualquer coisa. Seria como se tivesse pena do que ele sentia. O cavaleiro tremia frente a sua mais difícil batalha. Uma eternidade de poucos minutos se passou até que ele resolvesse seguir em frente e dizer tudo que sentia para o anjo que não o guardava, mas o feria.   

Ocorre que a mulher da vida daquele jovem soldado, não o tinha como homem de sua vida. O pobre rapaz foi de cavaleiro a bobo da corte em poucos segundos. O que mulher rainha de seus sonhos fazia, era o que ocupava os mais terríveis pesadelos daquele jovem. Estava sob o bloco de mãos dadas com um outro homem a quem ele desconhecia. Ele ainda quis se enganar: “deve ser um amigo, um parente talvez...” Mas os sonhos na realidade, são apenas sonhos, o irreal desejo que fica guardado nos travesseiros dos enamorados. Flores todos os dias regadas com o sal de suas lágrimas.

Com o coração em pedaços, o rapaz, viu confirmar-se seu mais profundo temor: o casal que o cavaleiro, agora, da triste figura, assistia, trocou um ardente beijo. O mais improvável também ocorreu. A carta escrita com tanto esmero, foi se “desescrevendo”. Do fim para o começo as palavras se apagavam. Talvez efeito das lágrimas que o jovem não conseguia reter. O amor tem o sabor das lágrimas dos amores imperfeitos. A desilusão é uma borracha poderosa, mas é incapaz de apagar o que sente o coração.

A carta que terminava com um “eu amo você”. Na primeira lágrima tornou-se um eu amo. E, logo após, apenas eu. O choro mudo, a dor dilacerante, foi apagando as palavras mais belas de um amor que não seria, mas deveria ser. Mas o “mundo do ser” é diferente do “dever-se”. Ele ciente que perdera a guerra foi atrás de seu camelo para retornar derrotado ao seu condado. Não percebia que a dor que escorria por sua face apagava cada palavra que tanto tempo escolheu para restar naquele documento de um tolo. Dulcinéia nunca saberia do amor de Dom Quixote.

As palavras seguiam a “desescreverem-se”, silenciando o sonho e desmanchando as mais belas ilusões. Pobre e atrapalhado cavaleiro, voltava em seu Rocinante, esforçando-se a cada pedalada que lhe doía como uma lança transpassando-lhe o coração. Ah, mais que terrível destino a um cavaleiro andante: descobrir que cavalgava em uma vassoura! Os sorrisos com que sonhava, converteram-se em uma dor lancinante. O amor agora apagava-se do papel. Como se nunca houvesse sido escrito, pois as palavras salgavam os lábios do homem desiludido e calavam o seu coração.

As carícias que escrevera, se convertiam no branco do papel inundado de lágrimas. A dor tem gosto de maresia. Ah, mar traiçoeiro! Olhos que afogam em dor! Não sabia como traduzir o que eles lhe diziam. O sonho sumia de tudo que o jovem escrevera. A realidade tem uma forma terrível de apresentar-se: ela desfaz os desejos, não os concretiza jamais... A voz da carta silenciava-se: o devir virou presente, o presente, passado, mas o tempo não mais importava.  De que importava ser antes ou depois? Se antes era apenas sonho e depois somente dor?

Ao chegar no apartamento que dividia com a solidão, o rapaz nem percebera que a carta que escrevera tornara-se um papel em branco. Nem sequer abriu o envelope, rasgou-o e lançou-o no lixo. O sol já não se via. Apagou-se da partitura de um coração solitário. A noite cobriu tudo de silêncio. E não havia lua aquela noite, era nova em uma sensação tão conhecida. O leito em que se deitava era, também, onde ele adormecia as paixões.

Seu coração se recuperaria? Talvez sim, talvez não. As mágoas às vezes ficam abertas por décadas. Feridas que não cicatrizam e que doem no futuro como se não houvessem nascido no passado. Certas canções não se apagam. Ainda que muitas lágrimas banhem o papel em que foram escritas, pelo simples fato de terem existido. Por permanecerem na memória como uma tatuagem que marca a pele pela eternidade. Muitos amores seguem com os homens por toda vida. Assim também é a dor que aloja no peito para todo o sempre. Talvez transcenda ao coração que a sofreu. A vida é uma comédia dos erros cheia de desencontros e mal-entendidos. O problema é que, quando se começa a compreendê-la, a luz dos olhos se apaga e a esperança morre como se nunca houvesse existido. O que se escreveu? Não mais importa, o sonho já se perdeu, a carta apagou-se. Acabou-se. E o amor? Não, este não morreu, como dor, no coração, ele permaneceu.


Conto escrito por
Giordana Bonifácio

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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