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Cine Virtual: Quando a Lua Cair

Conto de Renato Massari
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Sinopse: O conto focaliza o triângulo amoroso entre um homem, sua noiva e sua amante transexual. Trabalha pensamentos e emoções do primeiro e da terceira, que vivem uma relação de paixão e conflito.


Quando a Lua Cair
de Renato Massari


O tempo escorre mais devagar do que a chuva fina nos vidros das janelas. A cama redonda está revirada e uma rádio digital online distrai ouvidos que não a ouvem enquanto a solidão traz dúvidas. Djanira saiu há uma hora? Ou há um século? Difícil dizer. A prostração do homem é total, seu corpo não move um músculo sequer, por mais que a alma tenha ímpeto de se bater contra os móveis, subir pelas paredes, soltar o sufoco num grito capaz de ecoar no mundo inteiro. Talvez não grite porque os decibéis enlouquecidos poderiam partir os cristais que trouxe de Murano no ano passado. Olha então para a estante em frente à cama. A garça azul destemida e imponente não merece ser alvejada por um berro intempestivo.

Deitado, o homem pensa por alguns instantes na garça. Ao lado dela, alça voos quando se sente acuado. Mas é preciso que ela o chame, como já fez outras vezes. Se não a partisse, o grito certamente iria assustá-la por quebrar a paz em que vive seus dias. Vive-os em boas companhias na estante: à direita, tem os livros sobre Budismo; à esquerda, a literatura kardecista. Como a garça, esses fiéis companheiros também apreciam a música do silêncio. E também reprovariam o grito, que além do mais não traria Djanira de volta.

  Para onde ela foi? Para a cama de outro alguém? Ou simplesmente perdeu-se no mundo? Tudo é possível, diz o homem à própria mudez. Há muitas coisas que a nossa inteligência é incapaz de compreender. Já disse isso um sem número de vezes a Djanira, mas no fim de tarde ela e o gênio de menina mimada deixaram apenas o desconsolo solto no ar.

            Solta nas ruas do Rio de Janeiro, a ruiva tem os cabelos molhados pela chuva. Largou o casaco e a sombrinha no quarto do homem junto às sobras de mais um bate-boca sem proveito ou sentido. Queria pensar no futuro, mas ficou presa nas teias do aqui e agora. À sua frente, vê apenas o botequim, onde entra e pede os cigarros de sempre. A blusa fina, encharcada, é uma pequena vitrine para os seios artesanais, alheios aos risos dos que bebem cerveja e contam piadas de sexo. Um rapazola de 18 anos ou menos lhe dá o maço da marca pedida, só que o troco demora. De uma das mesas amontoadas no espaço pequeno, alguém propõe: “senta com a gente, boneca”. Imersa em pensamentos confusos, tão densos quanto os círculos de fumaça que os lábios escarlates cospem no ar, Djanira não escuta ou finge não escutar. Por que mantém o romance com o homem? Isso não pode dar em coisa boa, responde sem falar. Precisa cortar o nó, cada dia mais apertado. Se bobear, enforca... No começo, foi simples: ele pagava bem e não passava de mais um cliente rico à caça de emoções diferentes. Ela, há muito no ofício, sabia como lidar com o tipo. Depois, porém, alguma coisa estranha tomou conta da sua alma. Ao cair em si, devia ter caído fora porque nem cobrar, cobrava mais. À cabeça lhe vêm, então, as palavras tantas vezes repetidas por ele como um mantra: “pode ser seu carma, paixão”.

            Não sabia e não quer saber o que é isso e pouco lhe importa que o Hinduísmo, o Budismo, o Kardecismo ou outro ismo qualquer expliquem o que é. O homem quis lhe dar livros para ler; recusou-os. Dez meses atrás, quando fez 20 anos, Dejair assumiu-se como Djanira, passando a ser para o mundo quem sempre fora. Ao vir de uma cidadezinha escondida nas entranhas de Minas Gerais, encontrou na dureza da metrópole a escola que lhe deu as lições necessárias. Sem família ou amigos, quase matou e quase foi morta. Lei natural das coisas. Entre sofrimentos cruéis e atos torpes, um dia conheceu o homem, dando início a uma saga de paixão e loucura.

Muita podridão foi varrida da Terra após a queda da terceira lua. O homem leu que a atual é a quarta e que no último mês deste ano também vai cair. Cada queda lunar marca o fim de uma era e o começo de outra. Não acredita muito nisso, mas também não duvida. A bem dizer, achou a previsão do profeta de internet interessante, especialmente porque encontrou nela uma apologia ao recomeço de tudo. Para o pai dele, recomeçar a vida foi imperioso depois que a lua de um sonho revolucionário caiu no início dos anos 1970. Na flor da juventude, arma na mão e esperanças na alma, o pai se envolveu na tentativa de sequestro do cônsul britânico. Não temia o risco, mas quando viu a polícia chegar, as balas zunindo e a ex-namorada sendo presa, tremeu. Na fuga, discutiu com um dos seus:

            “Ela vai falar?”.

            “A companheira Zaia tem fibra! Não fala porra nenhuma!”.

            “Mas quem é que aguenta a tortura?”.

             A mulher era a mãe que não conheceu. E ele, o homem, cresceu ouvindo que ninguém aguentava a tortura. Como não entendia bem a perversidade alheia, o pai lhe dava exemplos práticos: aprisionava baratas em potes de maionese e, pelos furos feitos na tampa, gotejava ácido muriático lentamente. Ao ver o desespero dos insetos, o homem compreendia à sua moda o quanto certos seres humanos eram capazes de fazer barbaridades. 

            Por tudo isso, o “Combatente” – o homem se acostumou a chamá-lo assim desde tenra idade – precisou sair do país às pressas. Sendo filho dele, o homem foi enrolado num manto rasgado e fedido e assim os dois cruzaram a fronteira do Paraguai. De lá seguiram para a Europa, onde o Combatente o criou.

            No gelo do exílio poucas notícias chegavam, mas o “milagre brasileiro” estava sempre em algum canto de jornal. O Combatente lia com desgosto que iam fazer a maior ponte do mundo, a maior estrada do mundo, e se perguntava se fariam também o maior cemitério do mundo. Por muitas dificuldades ele passou: lavou privadas, vendeu incensos, trabalhou como garçom. O homem não se esquece que várias vezes os dois tiveram por teto as estrelas ou então dormiram sob o mofo de algum albergue pulguento. E quando o Combatente esbarrava com antigos militantes da luta armada, o assunto não era outro:

             “Lembra de fulano?”.

             “Não. Mas sicrano morreu”.

             “E a gente, o que faz?”.

             “A gente vive, só isso”.

              Para viver, o pai precisava achar novos rumos, novos objetivos, livrar-se das lembranças que o atormentavam. Assim, nas idas e vindas pelo Velho Mundo, topou com toda a sorte de criaturas e de ideias diferentes. Uma vez discutiu a noite toda com um hinduísta sobre o sentido da vida. Disse que o materialismo dialético podia explicá-lo; ouviu que só o carma explicava o sofrimento dos homens. Defendeu a superioridade da ciência sobre as religiões; recebeu como indicação de leitura o livro dos Vedas.

            Quando voltou ao Brasil, dez anos depois, procurou Zaia, que na verdade se chamava Gertrudes, mas nunca a encontrou. Como tivesse juntado algum dinheiro, resolveu montar uma pequena gráfica, que com o passar do tempo cresceu e hoje é uma das líderes do mercado.

            Às cinco da tarde, deitado na cama, o homem repassa o carma do pai no vídeo de si mesmo. Nostálgico, prefere não se lembrar da própria expectativa frustrada de um dia conhecer a mãe e também não se detém na morte inesperada do Combatente. Na cabeça lateja uma pergunta, apenas uma: por que ficar assim? Não sabe responder, tal como não soube por que resolveu parar o carro quando passava por aquela região da cidade onde transexuais e travestis ganham a vida com o meretrício. Quando se deu conta, Djanira já o abordava:

            “Que tipo de emoção o gostoso quer hoje?”.

            “Diferente”.

            Saíra do aniversário da futura sogra entediado e não tivera palavras plausíveis para se justificar. Teria sido esse o motivo da resposta que deu à Djanira meia hora depois? Talvez. Dali em diante, contudo, seu mundo mudou e hoje se equilibra na interface entre dois universos distintos. Com a ruiva, tem o sabor explosivo da paixão; com a noiva, o tempero sereno de casa e família, servido aos domingos nas deliciosas postas de bacalhau de forno.

            As sombras nas pálpebras de Djanira não conseguem esconder o peso da angústia. A tarde se foi como um pesadelo que esmagou seus sonhos de amor. Com passos sem rumo, ela vê o mundo se resumir a um punhado de esquinas e becos anônimos, como anônimos são os clientes de todos os dias. Junto ao meio-fio, um carro buzina. Já conhece o toque cifrado, as pernas param, a alma negaceia. O que está acontecendo? Não consegue responder. Quantas vezes já jurou largar o homem? Infinitas. Por que ainda não o largou? Seu carma não deixa? Ou será culpa da cama? O homem fala de coisas estranhas, estranho é seu modo de ser. Mas fascina. Ao lado dele, o mundo parece um balão de festas que o encontro das carnes enche de gozos e o desencontro dos planos fura sem pena. Como há pouco, quando saiu como um tufão da cobertura na Lagoa. Colérica, recolheu as peças de roupa espalhadas, enfiou-as num piscar de olhos, calçou as sandálias, bateu a porta da rua e quase rolou escadas abaixo, possessa que estava. Em algum momento, porém, sabe que seu celular vai tocar e será difícil não selar a volta com juras de amor e perdão.

            Novembro não demora a chegar. O homem pensa nisso enquanto resolve trocar a cama pelo banho. A água morna, os sais, o incenso perfumado vão lhe fazer bem. Escolhe então o aroma de lavanda, que sempre o acalma. Espeta o fino bastão negro no centro do incensário e acende o fósforo. Em poucos segundos já pode sentir a fragrância, que sorve loucamente até a alma se afogar nela. Novembro se aproxima. No dia 3, vai subir ao altar com órgão tocando e sogra chorando... É o gosto da noiva, não convém discutir. O Combatente, por certo, riria. Mas ele, que não desencarnou nas garras dos gorilas fardados, um dia escorregou no banheiro, bateu com a cabeça e se foi. Ainda vai precisar renascer muitas vezes para depurar seu carma. O mesmo prevê para si e gostaria muito de reencarnar em mundos mais evoluídos espiritualmente. O universo os tem, assim como é pródigo em planetas de expiação. Mas não pode saber a que tipo de mundo voltará. Ignora, aliás, muitas coisas. Entre elas, se Djanira sofre por amá-lo e querê-lo só para si ou se apenas faz tipo. Se o ama, então ele a tortura com o ácido das palavras evasivas. Por instantes, se lembra das baratas que o Combatente fustigava nos vidros de maionese e se sente como o pior dos espíritos penitentes. Afasta a ideia quando um redemoinho ruidoso se forma, o ralo engolindo os restos do banho. Precisa dizer à Djanira que a data do casamento está próxima. Mas como vai fazer isso? Ligando para ela agora, porque de algum modo o celular veio parar em suas mãos. Talvez a garça azul o tenha trazido no bico. Olha para a garça e depois para o aparelho. A tela, cheia de ícones coloridos, o estimula. Com o dedo indicador muito leve, toca o nome de Djanira.

            A noite entrou exausta no bar de costume. Sobre a mesa, esparramados, os marcadores de chope se misturam aos palitos quebrados que em algum momento formaram triângulos. Bem perto, duas mulheres se beijam há horas como se tivessem feito as pazes ou se reencontrado depois de longo tempo. Ao olhar pela janela, Djanira percebe que a lua ainda não saiu de trás das nuvens e tudo na sua cabeça continua confuso, opaco, sem luz. Quando desceu as escadas, fazendo barulho com os saltos de cristal, pensou em deixar para sempre o homem. Um lampejo de lucidez? Nas profundezas escuras do desalento, busca encontrar alguma clareza. O chope não a ajuda, apenas molha a secura absurda da garganta que mais cedo gritou, xingou e deixou no ar uma ameaça impossível de cumprir. De súbito, nota a vibração do celular ao lado da tulipa de chope vazia. Atende à chamada. Ouve tudo em silêncio. Desliga. Primeiro, fala algumas vezes baixinho: “eu caso no dia 3 de novembro”. Depois, sobe um pouco o tom de voz. Ao repetir pela enésima vez a frase, já aos gritos, quebra o beijo das mulheres da mesa vizinha, que lhe dão os parabéns. Nada, porém, lhes responde. Lá fora, as luzes da cidade berram e ela deixa em silêncio o bar. Na rua inumana, o colorido insensível dos letreiros de néon escreve em sua alma somente uma data: três de novembro. São brilhos ocos, inúteis, e fazem doer ainda mais as dores de amor. Não, não pode mesmo conter a mágoa. Quando a lua que agora rasga as nuvens cair sobre a Terra, apenas dirá que seu mundo já tinha acabado antes, muito antes do dia marcado para o fim do planeta.

Conto escrito por
Renato Massari

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima Alex Xela Lima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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