Duas Vidas
de David Leite
Um estampido abafado ecoou
pela galeria. Eu retirava o silenciador, ainda fumegando, desroscando
calmamente, como em um ritual. O corpo estirado espalhava seu rubro conteúdo
sobre o chão encerado.
Caiu de frente, pois precisei
atingi-lo pelas costas. Não gostava desse tipo de assassinato. Achava uma forma
covarde. No entanto, aquilo era um serviço, não um duelo. Escolher pelo jeito
mais prático de execução é o que me tornava um assassino de aluguel tão
competente e requisitado. E também a
falta de perguntas. Apenas o nome do alvo e sua rotina. Este, em particular,
parecia um homem de negócios, pelo que tinha reparado. Sapatos bem engraxados
de couro, um terno de risca de giz de um tecido com um brilho acetinado e bem
cortado e o carro importado do qual saiu antes de receber o tiro. Um homem de requinte. Ou talvez apenas o
motorista. Não importava, de fato. Retirei o telefone simples do bolso, e
retornei a ligação.
- Serviço completo. – Disse quase como em um
sussurro – Pode depositar a outra metade na mesma conta. Obrigado.
Sai do estacionamento vazio
pelo mesmo trajeto que fiz para entrar, evitando as câmeras de segurança como
anteriormente e me dirigindo ao beco
onde havia deixado uma muda de roupas. Troquei-me rapidamente e voltei para o
estúdio de fotografia. Mais um dia na minha rotina secreta.
As contas foram empilhadas do
lado de fora pelo carteiro. Quando decidi me aventurar como fotógrafo, jamais
imaginei como seria um ramo tão dispendioso e disputado. Os poucos trabalhos
que surgiam eram geralmente mal compensados e exaustivos. As sessões de
fotografia, os modelos, os eventos que cobria. Nada disso era, na realidade,
algo aprazível para mim. Apenas uma fachada socialmente aceita para minha
verdadeira vocação e ofício.
No entanto, algo de bom isso
havia me trazido. Não fosse pelo trabalho, eu jamais teria conhecido a Ana. Ela havia me contratado para criar um álbum,
em comemoração a sua formação na faculdade. Meu trabalho em retratar sua
formosura foi mínimo, tal a naturalidade de sua beleza. Uma perfeita morena, de
cabelos cacheados e exuberante. A câmera captava seu esplendor neste ensaio e
eu nunca me senti tão feliz em ser um fotógrafo como naquele momento.
Então, fiz o melhor que pude.
Não cobrei pelo trabalho dela. Ela havia achado engraçado o porquê de eu não
ter cobrado pelo serviço. Afirmei que foi um enorme prazer para mim poder
fotografá-la e não poderia cobrar por isso. Dessa forma nos aproximamos.
Ela havia acabado de se formar
na faculdade, estava na cidade para tentar arrumar um trabalho na área.
Psicologia. Eu tinha contatos e ofereci ajuda para ela se colocar. Algumas
pessoas me deviam favores. Consegui um emprego para ela e ofereci meu modesto
apartamento para que ela pudesse se hospedar enquanto se estabelecia. Àquela
altura, ela já demonstrava estar atraída também por mim e aceitou minha oferta.
Levei-a para meu quarto naquela mesma noite e consumamos nosso vínculo
carnalmente.
Não me preocupou, à princípio,
minha vida dupla. Era capaz de esconder de todos o que fazia, seria capaz de
esconder dela. Passava os dias no estúdio de fotografia, enquanto ela começou a
trabalhar no consultório. Minha vida
começou a se preencher mais com ela, tanto que comecei a me decidir a abandonar
a vida de assassino de aluguel, assim que obtivesse dinheiro o suficiente para
viver apenas como fotógrafo e finalmente estabelecer uma família.
Foi assim por algum tempo até
aquele dia fatídico. Eu estava no estúdio, organizando a agenda com as poucas
solicitações de serviço. O telefone pré-pago voltou a tocar. Novamente alguém
procurando pelas minhas habilidades extras.
Atendi prontamente.
- Eu preciso pescar.
A frase secreta, que já tinha
ouvido tantas vezes. Mas dessa vez,
havia algo diferente naquela voz. Era bem familiar.
- Eu estou com a linha e o anzol. – Respondi,
enrouquecendo a voz.
- O nome dele é Mércio. Ele está sempre no
estúdio de fotografia da rua 32.
Meu nome sendo dito do outro
lado da linha. Jamais havia sentido pavor anteriormente. No entanto, nesse momento,
o coração disparou como se uma ameaça tivesse sido proferida.
- Eu... Não sei... – Hesitei bastante quando
tentei responder.
- Você não pode executar o serviço?
Aquela voz estava certamente
sendo dissimulada. Afastei o telefone e revi o número de quem discava.
Desconhecia aquele telefone.
- Não. Eu posso executar o serviço. Apenas
tenho um para concluir. Mas assim que você depositar cinco mil reais na conta
que lhe enviarei por sms, eu dou uma semana para concluir.
- Sim. Eu vou fazer isso. Passe-me o número da
conta que eu deposito.
- Está bem então. Aguardarei.
Desliguei o telefone depois
dela. A voz da mulher estava rouca e abafada, quase irreconhecível, no entanto
ainda era distinguível. Era Ana do outro lado da linha, para meu espanto.
Certamente ela não teria
reconhecido minha voz. Eu havia colocado um filtro no microfone do celular,
além do disfarce normal. Medidas que sempre tomei. Tentei recapitular os
últimos dias, tentando vasculhar alguma mudança entre nós dois que desse
indício do motivo que a faria se decidir por uma atitude tão sumária dela
quanto tentar contratar alguém para me assassinar, e também a ironia da
situação em que ela tenta acertar minha eliminação por mim mesmo.
Sai na rua, reflexivo. Havia
de confirmar de que era ela própria, minha amada, quem me queria morto. De um
telefone público, disquei o número do qual ela me ligou. Alguns toques depois.
- Alô?!
A voz era dela, mesmo. Agora
sem a tentativa amadora de acobertá-la como antes, aquela voz que tanto me
acariciou pelos últimos meses e agora me queria enterrado.
Desliguei rapidamente e voltei
para o estúdio. Tentei novamente imaginar os motivos. Será que ela havia
descoberto quem eu realmente era?
Talvez. Ele pode ter sido descuidado por esses tempos. No entanto, se um
assassino de aluguel é algo abominável para ela, por que ela recorreria a um
para se livrar de mim?
Não fazia muito sentido Ambos estávamos
felizes. Não havia motivos para imaginar que ela quisesse se afastar ou algo
pior. Não havia brigas entre nós dois. Segredos, sim. Havia segredos, lógico.
Eu tinha coisas que não poderia revelar a ela, e ela também devia ter coisas
que não revelou a mim.
Teria que confrontá-la. Sai do
estúdio apressado, levando apenas minha jaqueta de couro e, como que por instinto,
minha pistola de estimação. Naquele
horário ela já deveria estar em casa, pois a noite já havia caído. Com pressa,
decidi não ir pelas ruas principais, mas sim pelas vicinais. Chegaria mais
rápido até meu apartamento no subúrbio. Com os passos apressados, pelos becos e
vielas úmidas e decadentes daquele lado da cidade, demorou alguns minutos a
perceber que alguém me seguia por aquelas vias estreitas.
Não me importei com isso,
apenas apertei ainda mais o passo e sai de frente para meu apartamento. Corri
para meu andar o mais rápido que meu fôlego permitiu, apenas para encontrar meu
apartamento vazio. Ana não estava lá, assim como as malas que ficavam
acomodadas em cima do armário.
- Eu a avisei. Ela foi embora.
A voz tinha vindo da porta,
para onde me virei rapidamente, apenas para encarar aquele homem morrudo com a
arma apontada em minha direção.
- Luís... você?
- Aham... Quanto tempo. – Ele respondeu, como
um gracejo.
- Você estava preso...
- Não estou mais. E vou livrar Ana também.
Luís, aquele que já havia
trabalhado comigo, puxou o cão do revólver ameaçadoramente, enquanto eu, sem
entender exatamente o que acontecia, ficava apenas olhando.
- Eu avisei a Ana. Pena que ela não teve
coragem de matá-lo. Precisava de alguém para isso. E que coisa, não? Ela foi
achar logo você...
- E como você conhece Ana? Que merda você está
fazendo aqui?
- Ela é minha! Sem ela, certamente eu não teria sobrevivido
nos últimos anos. Agora que estou fora, nós vamos começar nossa vida.
- O que? - Aquilo não fazia o menor sentido.
- Eu só estou aqui para terminar o serviço,
Mércio. Pelos velhos tempos, acho que deveria informá-lo. Eu e Ana vamos sair
da cidade. Vou pegá-la no cais assim que sair daqui. E você não vai nos impedir
de maneira nenhuma. Eu pretendo garantir isso agora.
Luís era um dos assassinos
mais desumanos entre os “colegas de profissão”. Era corriqueiramente
encarcerado, pois carregava cada vítima como um troféu, facilmente associável a
ele pelo seu sadismo e violência, nada profissional ou discreto. E ele estava
ali para me matar e levar Ana. Não havia muito o que pensar.
O primeiro disparo explodiu no
quadro acima da televisão, na altura dos meus olhos, caso eu não tivesse me
jogado rapidamente ao chão. Um segundo disparo atingiu a mesa de centro e um
terceiro o sofá, enquanto eu rolava no chão, tentando sacar da cintura a
pistola com silenciador. O meu primeiro
disparo atingiu o batente, enquanto Luís se escondia atrás da porta.
- Quase me esqueci de como você era bom,
Mércio. – Luís provoca. – É realmente uma pena que tenha que acabar contigo.
Não respondi. Apenas disparei
vários tiros na parede entre mim e ele.
Alguns segundos tensos se
passaram, enquanto eu mirava em direção a entrada, esperando a próxima
investida dele. Luís, dessa vez, com certa lentidão, reaparece a porta, mirando
o revólver para mim. Dessa vez, no entanto, parecia cambaleante. Um filete de
sangue escapava pelo seu lábio, e ele caiu pesadamente no chão.
Levantei-me rapidamente e
corri em direção à saída, saltando por cima de seu corpo. No cais. Ana deveria
estar aguardando por ele. Coloquei
novamente a arma na cintura e corri até o fim da rua, parando um táxi e lhe
dando o caminho, pedindo para que corresse.
No cais, naquele momento da
noite, apenas uma pessoa aguardava perto dos barcos pesqueiros. Pedi para que o
táxi me deixasse ali e fosse embora.
Ana, com duas malas aos seus pés,
fica espantada quando me vê, como se tivesse visto um espírito.
- Você... Está bem? – Perguntou vacilante.
- Parece que não era isso que esperava. – Respondi grosseiramente.
Ana baixa a cabeça,
envergonhada.
- Você não entenderia.
- Mas acho que mereço uma explicação. –
Respondi.
Ana levanta o rosto, me
fitando com um ar de desespero.
- Eu não fui honesta com você. Porque eu vim
para cá. Eu vim para ficar perto do Luís... Nós estivemos juntos por cinco
anos... Eu tinha uma vida com ele.
- E escondeu isso de mim.
- Não... Ou melhor. Sim. Eu escondi. Eu estava
tendo uma vida com você. Eu não queria perder isso, mas Luís estava para sair
da cadeia... E eu não queria deixá-lo.
- E me matar era o melhor caminho. –
Perguntei, com raiva.
- Não. Eu não queria isso. Mas Luís ia me
matar se eu não ficasse com ele. Eu daria minha vida por você. Mas minha vida não é mais minha, como eu
descobri há pouco tempo.
Ana disse isso, enquanto
passava a mão na barriga. Com apenas esse gesto entendi a que se referia.
- Você não entende. Eu estava acuada. Eu tinha
duas vidas, uma com você, mais os anos que tive com Luís. E agora eu tenho duas
vidas em mim. Não posso aguentar isso. Por muito tempo. Eu quero uma vida. Eu
não posso mais mentir.
Os olhos de Ana que já estavam
marejados, finalmente escorrem em tristeza. Eu podia compreendê-la. Luís
realmente não a deixaria viva caso me escolhesse. Ela tinha que fazer uma escolha.
- Eu te entendo. – Disse, então, enquanto a
abraçava. – É realmente insuportável viver em uma mentira, uma vida de ilusão.
Eu entendo
Enquanto dizia isso, envolvi
Ana soluçando.
- Você tinha que escolher uma de suas vidas.
Apertei seu pescoço
vigorosamente.
Arremessei seu corpo
desfalecido na água.
Por um longo momento, fitei a lua refletindo no mar, com um brilho prateado. Olhei para os dois celulares que carregava. O telefone do fotógrafo e o telefone simples, irrastreável. Joguei o primeiro o mais longe possível. Ajeitei a pistola na cintura e voltei para minha vida. A única.
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
Copyright © 2021 - WebTV
www.redewtv.com
Comentários:
0 comentários: