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Antologia Romance à Vista: 1x17 - A Primeira Sessão de Cinema (Season Finale)

Conto de Celso Lopes
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Sinopse: Romance-ficção cuja história se passa nos anos 50. Região do Brás/SP. O texto narra as peripécias e dificuldades entre o jovem casal Maria Antônia e Giovaninho. 


A Primeira Sessão de Cinema (Season  Finale)
de Celso Lopes

Nas primeiras décadas do século XX, afirmam os historiadores, não seria exagero dizer que no bairro paulistano do Brás se falava, praticamente, dois idiomas: o português e o italiano. Pois foi nesse período que Maria Antônia, ainda uma menina-moça – moradora do bairro - conheceu o rapazola Giovaninho, filho dos Darchini, imigrantes italianos que, depois de batalharem nos campos de cultivo do Café, migraram para a capital paulista “em busca do ouro”. E pouco a pouco, com muito trabalho, foram encontrando as “pepitas” valiosas, chegando a montar um patrimônio de bom tamanho, entre outras coisas, um Armazém no mercado municipal, casas de aluguel e um palacete no bairro chic dos Campos Elíseos.

Quando juntos, era comum que Maria Antônia relembrasse o primeiro encontro de ambos. “Achei muito engraçado” – ela dizia. Agora, anos depois, estavam, ali, no mesmo portão de acesso para o alpendre da casa. Ela, com uma saia plissada e blusa branca, com chapéu cinza, a lhe dar ainda mais relevo na formosura, com seus cachos morenos, sobressaindo com volume sobre os ombros. “Giovaninho acha lindo” – ela sempre dizia isso às amigas do Colégio, ainda que ouvisse alguns muxoxos do tipo: “ - apaixonadinha pelo “carcamanozinho”, hein?” Enquanto conversavam, Maria Antônia olhava com meiguice para Giovaninho do lado de fora do portão, recostado em seu Buick junto ao meio-fio da rua – o carro de Giovaninho era sempre motivo de inveja ao desfilar nas ruas do Brás. E quanta inveja!... Pois era comum que Maria Antônia ouvisse, ainda que à boca pequena, um coro de rivalidade pelas jovenzinhas nativas. Em forma de gozação, os pivetes – como diziam as meninas - cantarolavam uma espécie de marchinha nacionalista: “Carcamano, pé de chumbo, calcanhar de frigideira, quem te deu atrevimento, de casar com brasileira? 

“ - Você acharia engraçado, demais”. – repetiu Maria Antônia, enquanto, compenetrada, finalizava as letras GD/MA, escritas à lápis, dentro de um coração que desenhara no pilar do muro. Giovaninho fez menção de entrar pra conferir o desenho, mas um olhar de Maria Antônia para o alto da porta do alpendre já dizia tudo. Giovaninho não era tão bem-vindo por ali. Por isso, o portão vivia sempre trancado por ordens da Mãe, dona Alminha Mattos, que poderia surgir, como uma aparição, sem marcar data e hora. Assim, os encontros entre os jovens adolescentes, eram raros, e sempre corriam riscos de um flagra da terrível dona Alminha Mattos. 

Maria Antônia e Giovani Darchini, enamoraram-se desde que se viram, há mais de cinco anos, ali no mesmo local. Pode-se dizer, que naquele dia os “Intalianos” – como se dizia comumente - atravessaram de vez o caminho dos Almeida Mattos. Isso, por força de, digamos, uma cena de filme, vamos dizer assim, destacando uma entrega desastrada de mercadorias... e algumas batatas!... Quem chamara a atenção da menina Maria Antônia, ainda com seus 13 anos, fora justamente a mãe, dona Alminha Mattos, que, em altos brados e berros desnecessários, com sua voz tonitruante, dava a maior bronca no entregador Giovani Darchini Filho, ajudante do pai no Armazém do Mercado Municipal. Não era difícil saber o porquê, mas o certo é que Dona Alminha Mattos fora, de imediato, contrária a esse namorico. Não perdoaria nunca – dissera – “preferia morrer”, “a ver filha minha enrabichada com esses novos-ricos do estrangeiro”. 

- Anda, moleque, anda! ...Que pamonha, esses “carcamanos!... 

Havia na voz de dona Alminha Mattos, um tom provocativo, ao espezinhar o pirralho – ofendê-lo, por certo, era como se o fizesse ao próprio pai Giovani Darchini - Esse, sim, merecia de dona Alminha Mattos os maiores desaforos. Afinal, o italiano enricara, rapidamente, num Brasil em que a tradicional família dos Almeida Mattos empobrecera lentamente. Pois, ali, com o menino a seus pés, dona Alminha Mattos alimentava aquele sufoco estampado no rosto do garoto que viera entregar as mercadorias. A voz de dona Alminha Mattos – sempre um trovão – faria tremer por um bom tempo, o pobre adolescente, pouco ou nada acostumado a esse tratamento aristocrata e quatrocentão. Quem o salvaria nessa hora, seria a menina Maria Antônia, pois ouvindo os gritos desaforados da mãe, saíra à porta do alpendre, o mesmo, onde agora conversava com o seu affair e bom vivant Giovani Darchini Filho. Ao se deparar com o garoto sobrecarregado de pacotes, inicialmente, Maria Antônia achou engraçado e não conteve o seu riso. Giovaninho, vendo a menina, complicou-se, ainda mais, ao subir os degraus da casa. Era risível. Era engraçadíssimo. Maria Antônia, encabulada pelo que fez, lutava para resistir ao deboche, sufocava o seu riso gracioso que aquela cena oferecia, disfarçando com uma das mãos sobre os lábios, o quanto podia esconder. Giovaninho não teria olhos para tal façanha, mas a partir dali, enquanto sofria uma queda ou outra, tropeçando nos degraus do alpendre, Giovaninho caiu, - e caiu literalmente – e para sempre - aos pés da amada, balbuciando algo, numa voz quase inaudível, mas perfeitamente decodificada pela menina. Alguma coisa como “ escusa-me Senhorina!... Io pego tutti!...tutti, capisce!...”. À saída, ainda desesperado, o adolescente Giovaninho, ao passar por Maria Antônia, arriscou-lhe um olhar cabisbaixo e repleto de timidez – vivia uma experiência que nunca sentira sobre si, até então. E Giovaninho descera a rua com aquela inocência de um anjinho das procissões. Maria Antônia acompanhou, com os olhos fixos no entregador, até onde fora possível. Uma quadra depois, Giovaninho pararia por um instante. Sorriria meio que abobalhado e sem o entendimento. E por fim, por fim tiraria dos bolsos as três batatas que esquecera de devolver à cliente, fazendo um malabarismo profissional com as “bolas”. As batatas jogadas ao alto celebravam um perfeito artista de circo apaixonado. Depois...depois Giovaninho cantarolou uma cançoneta italiana romântica, enquanto sumia rua abaixo, sem o saber, chaplinianamente, até o Armazém do pai no barracão do mercado municipal.

Assim, Maria Antônia passara a viver os caminhos da sua juventude: dedicava amor a Giovaninho e o defendia das palavras impiedosas e cruéis da Mãe, diante de eventuais tentativas, ora frustradas, ora memoráveis, pra ver e encontrar o seu amado. O dia de hoje estava acenando com uma dessas epopeias. Maria Antônia ficara animada com a estreia, na matinê, do filme Luzes da Cidade, de Charles Chaplin; afinal, nunca estivera numa sala de cinema, recentemente inauguradas na cidade, e só agora chegando aos bairros. Assim, quis porque quis carregar Giovaninho para a tela. Haveria apresentação de orquestra famosa, show de mágicos, malabaristas de circo... e depois o filme, com acompanhamento musical. No colégio não se falava de outra coisa. Inclusive muitas meninas já sabiam sobre o enredo - “a história de um vagabundo que se apaixona por uma florista cega. Para ajudá-la ele vive peripécias tristes e engraçadas. Depois de salvar a vida de um milionário bêbado, recebe uma recompensa em dinheiro, que vai mudar a vida da florista para sempre.

Rute, a melhor amiga iria junto, como um álibi para eventual cobrança de dona Alminha Matos. Giovaninho já estava com os bilhetes na portaria do cinema. Pronto. Apresentação de música, show de palhaços, um casal de malabaristas... e finalmente, o escurinho para início da sessão. Giovaninho trouxera balas para Maria Antônia e balas também para Rute. No escuro da sessão, a mão de Giovaninho, lentamente, tocava o braço da amada. O calor surgia dando mostras de que atingiria o corpo de ambos. O beijo viera com certa reticência, e certo receio de se exporem ao “lanterninha” na sala do cinema. Por instantes, uma trégua diante dos risos destacados da plateia para o filme. Ambos perderam a cena. Bom, o melhor era prosseguir o namoro. Um segundo beijo selaria o amor para sempre. Giovaninho e Maria Antônia, rostos colados, e como a personagem do filme, nada enxergavam, apenas sentiam o fervor e a suavidade dos seus toques. Por instantes, Rute balbuciou sobre uma cena do filme – “ acho que vou chorar!...”. Maria Antônia respondeu-lhe com um sorriso espontâneo, que não fora visto pela amiga. Por seu lado, Giovaninho beijou-lhe o canto da boca, demoradamente. Novas cenas hilárias... o vagabundo num ringue de boxe. O vagabundo fugindo de perseguidores. O público delirava... os risos causavam novas tréguas entre os amantes, que se recompunham de imediato, entretanto, novas cenas perdidas. Pouco depois, a florista, ao entregar uma flor ao vagabundo, toca na sua mão, e descobre ser ele o seu benfeitor. “Você pode enxergar agora?”- Perguntou ele. Ela confirma que sim... e a emoção eclode tomando conta da plateia. As luzes principiam na sala. Giovaninho e Maria Antônia recompõe-se com um olhar que os seguirá pela vida inteira, garantem. Rute, ao lado de ambos, disfarça o enxugamento das lágrimas que desandam... E sem se dar conta, dirige-lhes a pergunta de sempre: “ – Então, gostaram?”... Maria Antônia e Giovaninho, mais que nunca enamorados, ainda que com algum titubeio desconcertante, juntaram o riso ao mesmo tempo agora, numa mesma resposta indagativa: “ – Simmm, claro... vamos ver de novo, amanhã?!...” 

No caminho de volta, Maria Antônia não teve como deixar de pensar em duas coisas. Primeiro: o pai, Seo Altamirando, fora despedido da repartição em que trabalhava, e passara o dia anterior resmungando a mesma coisa: “ - Um enxugamento!...”. Em complemento a isso, confessara para a esposa e para a filha - ou vendiam o sobradinho e um terreno que tinham ou então... a miséria, a pobreza!... Dona Alminha Mattos se fez silenciosa. Mas instantes depois, evidente que da sua boca sairiam todos os impropérios à estrangeirada que invadira o Brasil e o Brás, tomando o lugar de “gente de bem como nós”; e não tendo a quem mais atingir, Dona Alminha soltou os cachorros com a própria a filha: “ - já pra dentro, vá enxugar as louças!”... E para o Conselheiro e marido só fez suspirar, como quem buscasse o último fôlego no século passado: “ - Ah! que falta nos faz a Monarquia!”... Segundo: Maria Antônia, obviamente, sabia que a essa altura, dona Alminha Mattos estaria lá de plantão à sua espera. Assim, sua cabeça fervilhava para garantir um álibi convincente, perfeito. Falar do cinema, nem pensar. Falar do encontro com Giovaninho, pior ainda. Então, pé ante pé, subiu os degraus como quem carregasse uma culpa medonha e imperdoável. Muda como nunca, Maria Antônia abriu a porta e, além da Mãe, lá estava o Pai, os dois ali, juntos, a sua espera. Entretanto, não pareciam carrancudos ou nervosos, mas Maria Antônia não via isso, não enxergava, não tinha olhos para tanto; o certo é que tremia um bocado, e o máximo que conseguira dizer, foi um balbucio rouco e apagado: “ – Rute...eu, eu...eu... passei...”. Seo Altamirando foi o primeiro a falar: “- que foi filha... aconteceu algo... temos...”. Dona Alminha Mattos atropelou o marido: “ e então filha, o namoro....”. Maria Antônia intimidara-se como nunca nessa hora: “ – Não.... não ... namoro não... Rute.... na casa da Rute...”. “- Sente aqui – intimou Dona Alminha. “ – Senta, filha, senta...” – reforçou Seo Altamirando. Entre assustada e boquiaberta, Maria Antônia ouviria algo como “temos novidades... e são muito boas...as melhores possíveis.” Seo Altamirando prosseguiu: O pai do Giovaninho, o Darchini, soube do “affair” entre vocês e fez muito gosto. E repetiu, ipsis literis, as palavras do ítalo-brasileiro: “ - Capisce, amico!... Vamos montar a Vila Darchi. O terreno é suo, o capital é mio! O lucro meio a meio, anh?... E deixo o Armazém para “Duona Amiamato”? E enton?... Dona Alminha completaria: “ – sim, filha... autorizo o namoro!...”. Maria Antônia desabou de alegria. E não via a hora de espalhar a boa-nova para o mundo. 

 

Nota: Inspirado - livremente - em Brás, Bexiga e Barra Funda, do escritor Antonio de A. Machado.     


Conto escrito por
Celso Lopes

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO

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