Andando na Prancha
de Mayra Luiza Corrêa
A sua alma pesava uma tonelada e a impedia de sair da cama. O alarme tinha tocado há algumas horas, mas seu corpo não respondia a nenhum comando. Era uma luta interna e ela sempre perdia a batalha com feridas que ninguém podia ver. Entre um estado desacordado e semiatento, procurava não pensar na sua vida, mas isso se tornava impossível naquele breu repleto de nada.
Sua consciência havia perdido a noção das horas e, com as cortinas fechadas, ela não conseguia adivinhar se era manhã, noite, terça, segunda ou sexta; nem pelos barulhos de Copacabana. Talvez fosse sábado. Não que isso fizesse alguma diferença na sua grande disposição para enfrentar sua realidade.
Estava imóvel, com os olhos fechados, até que sentiu a língua de Pirata lamber a sua mão. Ele tinha uma missão e não ia descansar até que ela saísse do seu torpor e fosse fazer o que a vida demandava.
O cachorro caramelo, com patinhas curtas e uma pinta em volta do olho direito, foi um presente da família para que ela não ficasse tanto tempo sozinha. Só que, até agora, tinha servido apenas como uma forma de fazê-la sentir culpa.
Talvez fosse melhor deixar o animal com sua irmã por um tempo, até as coisas se estabilizarem em sua cabeça. O único problema eram as perguntas que isso ia gerar: por que temos que pegar o Pirata? Ele fez algo? Você está bem? Quer que passe aí para te ver? Está tomando a medicação? Já falou com a psicóloga? Como está no trabalho?
Se tivesse como desenvolver o assunto, sem interrupções e com credibilidade, falaria que: o Pirata é um ótimo cachorro, mas eu preciso de uns dias para mim. Não quero preocupar ninguém, nem minha psiquiatra, ou minha psicóloga, então não é necessário avisar ninguém; tudo vai melhorar… eu acho. Ah! Ando faltando ao trabalho, mas não consigo lidar com isso agora, tudo bem?!
Ainda assim, sentia que a conversa
seria: por que sim. Não. Não. Não. Não. Não. Faltando.
Enquanto ela ponderava sobre a ligação para sua irmã, Pirata continuava lambendo sua mão. Droga! Ela estava pronta para dormir o dia inteiro, mas lhe cortava o coração pensar em deixá-lo sem comida. Não era tão simples contar com alguém de sua família para uma ajuda, como bem sabia.
Reuniu as poucas forças que tinha para sentar na cama, mas não esperava que, na mesma hora, o seu coração quebrado fosse derreter do oco do peito, cair pelo espelho da alma e escorrer até o lençol. Encurvada e com as mãos viradas para cima, tentava pegar os pedaços de si que convalesciam. Pirata, contudo, continuava insistindo em pular na cama e brigar pela sua atenção. Ela jogou as pernas para a beirada da cama e com o rosto lacrimejando, tateou até a cozinha sentindo os pés tocarem o assoalho de madeira do caminho.
A cada passo que dava, deixava a confiança entrar nas suas veias e melhorar sua localização no escuro. Sua passada estava tão certeira que resolveu soltar as mãos da parede com a plena noção de para onde estava caminhando... até que deslizou. Bateu a testa na quina da mesa de jantar. Entortou uma perna. Colocou a mão direita no chão tentando parar a queda. Sentiu seus dedos ficarem molhados e mergulhados num líquido quente e, na hora, soube o que era: xixi do Pirata. Eles não passeavam há dias, então o cachorro devia ter se aliviado pela casa.
Tentou se levantar usando a mão esquerda para apoiar na mesa, mas com o corpo desequilibrado, caiu completamente, limpando parte do líquido com a roupa. As lágrimas começaram a cair com violência enquanto ficava ali, deitada no chão, em uma posição desconfortável. Após um tempo naquela posição começou a sentir cãibra, então levantou-se, balançou o corpo, e foi até o armário pegar um pano com desinfetante para limpar a bagunça no chão.
O cachorro pulava em círculos, aproveitando que a amiga estava de pé para garantir sua comida. Uma vez resolvida a questão da sala, ela puxou o pesado saco de ração e pensou se não o colocava aberto para o Pirata comer na hora em que quisesse, e não precisar mais levantar. Decidiu que isso era irresponsabilidade demais; ela não tinha aceitado um cachorro para depois criar um problema para o bichinho. Assim que tomou a decisão de colocar só um pouco de comida para ele, o pequeno foi desesperado para cima do pote e ela, ao assistir a cena, decidiu que o melhor era voltar para a cama.
Assim que entrou no quarto, cogitou voltar para a cama do jeito que estava, mas, pensando bem, talvez fosse melhor trocar a roupa suja. Na cabeça dela, tomar banho seria um esforço homérico e desnecessário. Sim! Só iria mudar o pijama e voltaria para seu casulo embebedando-se nos braços de Morfeu.
Parou na frente do armário antigo que, outrora, tinha reformado com as próprias mãos. No escuro mal conseguia vê-lo, mas uma dor no lado esquerdo do peito começou a se intensificar a ponto de dificultar a respiração. Ela colocou a testa no espelho frio da porta e tentou lembrar das palavras da psicóloga: “isso não é real.” Mas parecia tão verdadeiro, que ela logo entrava no ciclo vicioso: sentia a dor, faltava o ar, pensava nisso, sentia mais dor, faltava o ar, ela pensava mais. Ela sempre dizia na terapia que não tinha muitos motivos para continuar, mas seu maior medo era partir sentindo dor. Conforme ia racionalizando aquele sentimento, os sintomas diminuíam.
Só quando a cabeça voltou a funcionar, percebeu o nojo que seria não tomar banho depois de ter servido de pano de chão para o xixi do cachorro. Com trajes limpos nas mãos, ela foi tateando até o banheiro e o cão, depois de comer esbaforido como sempre, tentou lhe fazer companhia; mas ela fez o seu melhor para ignorá-lo.
No chuveiro, escolheu a água quente. Deixou o jato bater nos músculos e tirar-lhe a tensão guardada nas escápulas e nos ombros. Sentou no chão do box, abraçou suas pernas e chorou, deixando fluir todas as dores do seu âmago, a fim de buscar as cores que faltavam no seu mundo cinza. Ao mesmo tempo, no entanto, falava para si mesma que isso era inútil e balançava o corpo no ritmo dos soluços. Ficou naquela posição até desistir de vez, e levantou-se para fechar a torneira soltando, em seguida, um berro dolorido com a voz rouca.
Saiu do cômodo secando o cabelo, pronta para deitar na cama, quando viu, em cima dos lençóis, uma silhueta conhecida, esperando para tomar bronca ou receber carinho. Ela pensou em tirá-lo dali, mas, na verdade, não tinha forças para impedir que Pirata ficasse ali; só queria descansar no seu travesseiro até amanhã.
Quando deitou, seria inegável deixar de reparar que o cão girava, e girava, e girava, sem encontrar uma posição confortável para dormir na cama. Então, a moça se rendeu mais uma vez e o deixou deitar debaixo das cobertas. O quentinho do corpo dele acalentava o que restava de seu pobre coração, o que não a impedia de sentir a dor que era ter uma alma vazia, sem nada. Assim, os seus olhos se fecharam e ela procurou consolo em terras distantes onde tudo poderia acontecer.
Antes de retomar a consciência, no seu pesadelo, sentiu uma corda fria parada em seu rosto que a despertou, sem piedade. Pulou da cama e percebeu que Pirata estava segurando com a boca seu colar favorito, um amuleto no formato de gota, que costumava ficar em cima da cabeceira. Com dificuldade, recuperou a peça dos caninos dele e limpou a baba no pijama. Sem pensar direito, e reclamando muito, catou tudo que estava no móvel e jogou dentro do armário. Aquilo era um problema para sua “eu do futuro”.
Tentou voltar a dormir e abraçou o cachorro, mas ele chorava e lambia sua mão, impedindo que o sono penetrasse na mente teimosa. Pirata começou a correr de um lado para outro, fazendo questão de empurrar seus ombros e bater em suas pernas. “Comida?!” Ela perguntou e o animal correu da cama até o potinho.
Dessa vez ela se levantou com mais facilidade, e surpresa com a energia que havia surgido depois de chorar o dia inteiro. Com passos firmes, andou no escuro, e torceu para não encontrar mais nenhum xixi surpresa… só que achou algo pior. Ao menos, dessa vez, não virou o próprio pano de chão. Ela foi mancando até o banheiro limpar o pé, xingando o cachorro de todos os nomes possíveis. Voltou fazendo um caminho diferente, desviando pelo outro lado da mesa, a fim de pegar logo papel e desinfetante para limpar aquele desastre.
Limpou tudo com muito cuidado, pois não tinha vontade de ligar a luz; ainda no breu, deu comida ao Pirata, pegou um biscoito de chocolate e sentou no sofá pronta para assistir qualquer coisa. Esse movimento foi suficiente para se permitir deitar com a cabeça no braço, observando uma televisão na estática, que a fez desistir de ver “qualquer coisa”. Contemplava o ambiente e sobre como sua vida tinha ido parar ali... O fluxo de pensamentos começou a pelos seus olhos fechados e escorrer pelo nariz, querendo chegar no chão.
“O que eu vou fazer da vida?”
“Como posso acabar com esse sentimento?”
“Talvez fosse melhor se eu não existisse.”
Pirata assistia a cena com a cabeça virada como se perguntasse o que poderia fazer para ajudá-la. Ela fazia carinho no seu pescoço enquanto soluçava alto, sem medo de que os vizinhos a ouvissem. O prédio já devia estar acostumado com os barulhos do desespero que saíam do seu apartamento.
Decidiu, então, voltar para a cama, mas o cachorro pulava entre suas pernas enquanto ela tinha dificuldade de discernir o que era sombra e o que era Pirata. Quase caiu duas vezes, tamanha a agitação do amigo, o único com quem tinha coragem de dividir a pior versão de si. Os outros viam uma versão montada, a partir dos cacos que conseguia recolher do chão. Eles sabiam que ela sentia dor, porém não tinham ideia do que se passava quando tudo escurecia e ela só queria ir embora do mundo. Ninguém sabia que ela sentia um grande vazio no lugar de seu peito, e nada mais fazia sentido.
Até que, chegando no quarto, a luz voltara a brilhar no teto, iluminando seu caminho. Olhando para a mão reparara que havia, instintivamente, encontrado o interruptor. Agora via, além de, Pirata, seus pés descalços, suas unhas descascadas, sua cama com lençóis vermelhos, seu armário e as cortinas fechadas para o mundo. A volta das cores para seus olhos era quase como uma ferida.
A melancolia continuava presente, pois, há muito tempo, tinha decidido que a vida não faria mais sentido. Mas, ali, olhando para o seu refúgio sobre uma nova perspectiva, perguntava-se sobre o que seria ou não necessário. Lembrava da sua afilhada, quando era pequena, cantando a música cuja letra dizia que a gente precisa lutar pelos bons momentos. “A vida é meio engraçada, né, dinda?” dizia depois da dança da escola. Ela não corrigiu, apenas concordou. Só um pensamento voava na sua mente aleatória:
“Eu tenho força para continuar lutando?”
Seu reflexo no espelho era de dar pena: cabelos desgrenhados de quem dormira com os fios molhados, olheiras gigantes apesar do sono imenso, e uma expressão vazia de sentimentos. Ela foi até sua imagem e mapeou com a ponta dos dedos os rastros das suas lágrimas e os olhos vermelhos de tanto chorar. Queria abraçar a pessoa que via através do objeto espelhado e dizer que tudo ia ficar bem. Mesmo que não acreditasse nisso. Ela então decidiu abrir os braços e estendê-los na parede, colocar sua face direita e seu peito no frio do retrato que desconhecia.
Decidiu ir até o armário, procurar seu celular, sentar na borda da cama e fazer carinho em Pirata. Buscava no cachorro, a coragem para fazer a ligação mais difícil da sua vida.
- Irmã… acho que preciso de ajuda.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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