Canto 2.0
de Luciano Kendzierski
Conforme acelerava a sua moto, atravessando a MG-158, Miguel sentia a ansiedade aumentando como um balão que se enchia lentamente no seu estômago. Ainda não conseguia acreditar que a linda morena que conhecera através de um grupo de whatsapp, e com quem conversara por meses a fio, finalmente aceitara a proposta de encontrar-se pessoalmente com ele. O encontro era mais que desejado, e por muito tempo foi tema dos sonhos mais íntimos dele, que ficavam mais comuns conforme o contato deles se intensificava em tempo e sentimento. Em nenhum momento pensou nos quase 400 km que os separavam, ou mesmo nas mais de 5 horas que precisaria para chegar ao destino, pois tudo que importava é que aquilo. Aquele simples "quero", significava algo palpável, que ultrapassava o volátil interesse virtual. Isso tornaria as coisas ainda mais reais e, por consequência, mais intensas.
Ao chegar, viu que a
cidade do interior mineiro apresentava casas de aparência antiga, com pesadas
telhas de barro e parecer pintadas com cal, algo que o lembrara muito da
vizinhança de sua avó, em São Paulo quando era pequeno. Embora não fosse uma
comunidade tão pequena quanto ela fazia parecer em suas longas conversas
on-line, era estranhamente acolhedora. Não levou muito tempo andando para
avistar a igreja que recebera como ponto de referência para o encontro, uma vez
que junto de um pequeno prédio, era uma das únicas duas edificações de grande
porte na cidade, mas assim viu o balão de ansiedade que carregava finalmente
explodir.
Imediatamente seu corpo inteiro foi tomado de um suor frio, conseguia sentir as
mãos molhadas começando a ficar trêmulas e o coração quase parando. Não se
lembrava de ficar assim por qualquer outra mulher em sua vida, e começou a
imaginar que se a simples visão do ponto de encontro o transtornara daquele
jeito, o que poderia acontecer quando a visse, ou a tocasse. Ele já não
conseguia compreender-se, ou mesmo se reconhecer, tudo ia contra seus instintos
mais primários e ele sentia que algo dentro dele estava mudando. Sempre fora um
homem apegado aos palpável e ao que pode ser comprovado e testado, era apenas
isso que o permitia ter controle e planejar. A inconstância e imaterialidade da
situação dava uma falta de controle, que normalmente o faria espumar de raiva e
insatisfação. Mas, isso era o normal dele e essa palavra vagamente fazia
sentido agora, a normalidade se foi há tempos.
Assim que parou a sua
moto em uma rua larga que era usada como estacionamento da igreja, ele a viu sentada nas
escadas. Assim que colocou os olhos em sua amada, um calafrio correu pela sua
coluna, fazendo gelar a alma e criando uma terrível sensação de desespero tomou
conta de todo o seu corpo. Foram milissegundos angustiantes, superados apenas
por uma sensação incrível de esperança e ternura que tomaram seu coração logo
em seguida, disparados pelo primeiro sorriso que apontou que ela o
identificara, mesmo com o capacete.
Isa era uma mulher
jovem e bonita, aparentando no máximo 22 anos. Tinha a pele morena com traços indígenas e um
longo cabelo preto que escorria até a sua cintura. Estava vestida de forma
casual, com um vestido de alça branco que ia quase até os seus joelhos e um
tênis rosa. Para Miguel aquilo era como o vislumbre de algo sagrado, sua
vontade era de ajoelhar como quem adora um esplendor, o sorriso a voz e a
maciez da pele dela eram quase que hipnótico, ao ponto de sequer questionar o
momento de terror imediato ao vê-la.
As apresentações eram
desnecessárias, já haviam se conhecido até demais através de suas conversas e
exposições sensuais nas longas chamadas de vídeo que atravessavam a noite, e
dilaceravam a solidão tão cotidiana, e antes desejada, na vida dele. Embora
estivesse ávido para consumar aquela relação de forma carnal, era um homem
educado e paciente, tinha reservado um hotel para os 4 dias do feriado de
carnaval. Conversaram brevemente sobre futilidades, a fim de quebrar o gelo,
conversa essa que foi interrompida por um beijo tentado por Miguel, que se sentia à beira da
sanidade a cada minuto que escutava a voz de sua paixão. Ele já não conseguia
segurar-se na presença dela, era algo tão impulsivo quanto um viciado na
presença de sua droga. O beijo fora completamente aceito e devolvido por Isa,
que propôs que eles fossem andar pela cidade, ela queria mostrar alguns pontos
da cidade que ajudariam a passar logo o dia, pois a noite seria incrível. Essas
palavras foram marcadas na cabeça dele, não apenas pelo que elas significavam
efetivamente, mas pela empolgação que ela demonstrou, pelo sorriso frenético
que deixou escapar, e pela volta do calafrio que isso tudo causou.
A tarde passou rápido,
as visitas aos "pontos turísticos", que apenas uma cidade com aquele
tom interiorano poderia oferecer, iam de uma pequena gruta de onde escorria
água cristalina vinda da fenda em uma pedra, local adorável, mesmo que aquela
fenda aparentasse ser a entrada de uma caverna mais vasta complexa, à uma
padaria local onde Isa trabalhava atendendo o povo local. Miguel notara que ao
longo do dia havia recebido muitos olhares sorrateiros, as apresentações eram
sempre acompanhadas de certa indiferença, pensou que fazia parte da chegada de
um novato à uma comunidade onde todos se conheciam. Assim, logo que pode,
deixou esses pensamentos de lado e se convenceu de que o certo era focar apenas
na sua companheira. Afinal, era o primeiro dia do resto dos dias deles. Era só
o que pensava, a partir daquele momento, só a Isa lhe importava, e se estava
bem para ela, estava bem para ele.
Quando a tarde deu os
primeiros passos para tornar-se em noite, Miguel já estava em estado de êxtase, mal
conseguia raciocinar e tudo pensava e desejava era a sua adorada. Parecia
embebedado da presença da sua amada, não lhe importava o que custasse sua
existência parecia ser não apenas para amá-la, mas era ela em si. A
desconfiança que se
iniciou durante o dia já fazia parte de uma memória esquecida, e tudo parecia
um sonho. Tudo parecia emanar uma luz celeste, o céu tinha uma cor linda, como
nunca antes houvera visto. Tudo era mágico, e cada palavra que aquela linda
boca pronunciava era como uma flecha que o atingia em cheio, como ordens
diretas, não para sua mente, mas para seu coração e sua alma. Mesmo quando ela
disse que era o momento, e que só então ele percebera que a noite havia
enegrecido a abóboda celeste, e que as horas não faziam mais sentido algum, ele
conseguiu sair de seu estado de pura adoração. Não houve um resíduo sequer de
resistência ou questionamento quando ela falou que não iriam passar a noite no
hotel, mas em uma gruta no meio da mata. Miguel apenas aceitava o que lhe era dito, como
um computador cuja existência se resume a aguardar o comando de seu mestre, e isso era tão
natural pra ele agora, quanto era respirar.
Eles atravessaram a
cidade em direção à uma vasta zona de mata. Para ele tudo era brilhante e
vívido, as casas e sobrados se mexiam e dançavam para festejar a passagem dos
amantes, a consumação do que, para Miguel, fora cosmicamente planejado, a união
em carne e espírito. Adentraram em uma floresta e caminharam por um longo tempo
entre as árvores, as folhas que passavam em seu rosto sinalizavam o quanto o
corpo dele estava amortecido, ao ponto de sentir como que carícias os galhos e
espinhos que arranhavam e cortavam sua pele. Nada era estranho ou importava,
pois tudo era brilho e beleza, tudo era ela e ela era tudo.
Chegaram à gruta e ele
notou que a entrada parecia uma boca aberta, as pedras pareciam dentes afiados
prontos para devorá-los e o pequeno córrego que corria de seu interior era como
uma língua traiçoeira. O interior era composto de uma grande câmara com uma
piscina natural, alimentada por um rio subterrâneo que serpenteia um túnel,
pouco podia ser visto por causa das sombras. No meio do espelho d'água, havia
uma pedra que figurava como uma pequena ilha, seu formato era como o de um
altar. Ao contrário da parte de fora, tudo ali era sombrio e asqueroso, a
escuridão parecia composta não por sombras, mas por um lodo negro e fétido.
Caminharam até o altar como se não existisse a piscina natural ao redor dela, Miguel
sequer conseguia identificar se nadaram até lá ou simplesmente caminharam sobre
as águas, só havia ela puxando-lhe pela mão e mostrando o caminho que deveria e
desejara. Finalmente chegara a hora, ela o deitara na pedra que agora serviria
de cama, subiu por cima dele e falou as mais baixas atrocidades ao seu ouvido. Tudo era tesão e
sentidos. Apenas nesse momento é que Miguel escutou o barulho dos tambores, que
ecoavam milhares de vezes na caverna e em sua cabeça, ele olhou e viu aquelas
mulheres de aspecto tenebroso, com membranas e barbatanas, mas sua amada o
havia puxado pelo rosto e beijado tão profundamente que nada mais poderia importar. As
horas seguintes trataram-se apenas de desejo e luxúria, não havia proibição ou moral, assim não havia descanso, tudo
que existiu naquele momento foram os dois e mais nada. Em meio a todo aquele
caos, ele viu os
olhos dela brilhando em um tom esverdeado, a chama foi engolindo-o pouco a
pouco, e quando a pergunta foi feita, ele disse sim até cansar, pegou a faca de
pedra que ela lhe
dera, cortou o estômago logo abaixo do plexo e enfiou a mão dentro de si mesmo,
arrancando e entregando seu coração. Tudo era surreal e a dor lancinante nada
se comparava aos olhos de Isa ao ver e devorar o órgão ainda quente e pulsando.
E na primeira mordida ele veio, o nada. Foi como mergulhar de uma viagem de
drogas pesadas diretamente na sobriedade, não sentia mais o tesão, ou a
disposição e praticamente não sentia o cansaço, nem mesmo a sua amada
totalmente suja de uma lama enegrecida lhe causava nojo ou terror. Tudo era um vazio infinito, e
nenhum sentimento povoava mais a sua mente.
Isa levantou-se
sorrindo e, mesmo sem qualquer indício de questionamento por parte de seu
parceiro, explicou que ele teria uma vida melhor, que não haveria mais tristeza
ou horror, e tudo isso pelo pequeno preço do que o fazia humano, sua alma e seus sentimentos.
Miguel só conseguia simular uma espécie de desespero por entender que isso
seria o resto da existência dele, mal prestou atenção no resto da história que
ela contou sobre sereias e como as pessoas transformaram-nas em uma fábula totalmente fora da
realidade, mesmo quando ela riu de forma jocosa os mitos de que elas cantariam
para atrair os barcos e marujos para os corais, ou a sua correção de que "eram
eles que se atiravam lá por não conseguirem conviver com o dom que elas lhes
deram". Tudo
isso residia enterrado em seu subconsciente. O que ele ouvira, com muita
atenção, foi que deveria sentir-se premiado por ter alimentado uma rainha e,
quando os primeiros indícios de insanidade começaram a borbulhar na face dele,
ela ordenou que ele se fosse e foi o que ele fez, instintivamente e sem olhar para trás.
Só foi notar que já era dia quando chegou à cidade, atravessando o caminho todo quase sem se dar conta do que fazia. Indo diretamente para sua moto, se deu conta do motivo para a apatia daqueles moradores, que tanto lhe constrangera, sem se apegar em nenhum momento deste pensamento, ou em qualquer outro. Apenas subiu em sua moto e saiu. No caminho se perguntava como poderia isso acontecer de verdade, que a realidade não poderia aceitar isso. De nada adiantavam as explicações ou o quanto ele tentava racionalizar, havia apenas um fato real e palpável, ele não estava sentindo nada. Ele sabia que haveria novas vítimas, mas será que existiriam outras do tipo dela por aí?
Longe dali, em Goiás, o jovem policial Gustavo andava em seu carro em outra rodovia qualquer, indo ao encontro de uma linda morena que conhecera em um grupo de whatsapp e que rapidamente lhe roubara o coração e os desejos mais profundos. Ele sabia exatamente onde iria encontrá-la, o que jamais desconfiaria é dos laços tribais de Priscila com a mineira Isa, e como ele terminaria o dia sendo roubado de seus bens mais valiosos...
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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