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Cine Virtual: Onirica

Conto de Luiz F. Haiml
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Sinopse: Ele vive e meio a uma pandemia seguindo em seus dias então mais solitários e rotineiros até que um inesperado sonho vai tirá-lo de seu lugar comum.


Onirica
de Luiz F. Haiml

Foi só um sonho.

Um sonho apenas. Mas por ele eu soube que minha biografia ainda não se concluíra, que eu podia remover dela o ponto final. Foi um sonho curto, rápido, e me veio numa das noites do terceiro mês desde que iniciara, aqui em T., onde moro, o confinamento obrigatório.

Aproveitávamos ainda um verão mais aprazível (ia bem mais ameno que os últimos) quando fomos alcançados pelo sol cinzento do Covid-19. T. é um lugarzinho tão esquecido num canto obscuro do planeta, que até cultivávamos certezas de que não seríamos notados pelo maldito vírus. Ledo engano.

Aposentado há quase dois anos, separado há mais de quatro, sem filhos, desafeito a ajuntamentos de todos os tipos e tendo o único parente vivo que me restava – uma velha tia – me deixado no Natal passado, não me incomodava tanto o involuntário exílio que o processo de contaminação forçara sobre nós.

O ruim, claro, eram as incertezas trazidas pela doença: a máscara que embaçava os óculos, os instituídos horários alternativos, as filas arrastadas e em pinga-gotas. Eu, porém, devido a vários empregos anteriores que tive, acumulara boas relações com pessoas de estabelecimentos diversos, através dos quais eu conseguia resolver muita coisa sem precisar sair de casa. Assim não me expunha muito, não ficava tão suscetível a um possível contágio. Afinal, estou perto da idade de risco, no caso desse mal que pegou o mundo desprevenido e o encerrou no ventre de sua pandemia.

De resto, seguia eu com a minha vidinha igual à do pré-vírus. Revia minhas fitas e DVDS antigos. Relia os muitos livros da minha vasta coleção de westerns. Revisitava meu baú de CDs e vinis. Tomava minha pequena medida de vinho antes do almoço – enquanto cozinhava – e no happy hour. Arriscava algumas linhas “literárias” na máquina de escrever. Cuidava das coisas da casa e do jardim e mantinha as costumeiras caminhadas, essas, porém, encurtadas em frequência e trajeto. E eu dormia e acordava e assim eram os meus dias sob o olhar atento do Covid.

E meus sonhos, esses nunca tiveram nada de especial. Nunca me detive impressionado com algo estranho que neles tivesse acontecido, pois sabia que esquisitices são características normais de tais fenômenos. Mas isso iria mudar.

Na dimensão ilusória, aonde a maioria de nós vai quando adormece, costumo passar por vários ambientes Esses oníricos espaços, segundo os entendidos, se erguem por outras substâncias além das que formam a nossa realidade desperta, embora se originem eles de conteúdos extraídos das gavetas do nosso inconsciente, por sua vez baixados do que vivenciamos, do que presenciamos. Mas creio eu que em toda essa massa construtora há também uma porção tirada sabe-se lá de onde. Quando posto em tais fictícios cenários, neles vou por diferentes meios, distâncias, razões, me deparando em tais malucas jornadas ora com conhecidos, ora com estranhos, ora com ambos.

No sonho que aqui nos cabe, eu saíra de uma sessão de cinema que ainda não acabara. Me vejo então no hall que levava ao local de exibição. O lugar era pequeno e só havia nele um móvel envidraçado, também pequeno, com os costumeiros doces que se vende em tais balcões. Não havia cartazes, banners, só paredes nuas e eu não tinha percebido nenhuma outra pessoa ali, mas ao ir em busca da saída, que não sabia onde era, notei alguém agachado a limpar parte de uma parede junto ao rodapé.

Não recordo se disse algo primeiro, mas quem estava ali se voltou para mim. Era uma mulher, o que eu já tinha percebido por certos aspectos. Uma mulher por quem imediatamente, irremediavelmente, fui arrebatado. Sem se levantar, ela então falou. Mas eram palavras num idioma estranho. Depois, já desperto, pensei “talvez nem fosse um idioma, talvez ela estivesse falando ao contrário como certos personagens nos filmes de David Lynch”.

Sabemos todos que a edição dos sonhos não cabe a nós, fica a cargo do rei Morpheus. Ele, por seus gostos e interesses, então os edita a seu bel-prazer.  Assim, depois de se voltar e falar comigo, não houve a cena em que ela se levantou e se encaminhou para mim, nem eu indo em direção a ela. Pedaço suprimido. Da troca de olhares, Morpheus já nos colocara pressionados um contra o outro numa das paredes do local.

De minhas carícias ela não fugia entregando-se a elas em lânguidas contorções enquanto murmurava aquelas coisas ininteligíveis para mim. E não, não estávamos despidos e não era um sonho com sexo. Já tive muitos desses. Era diferente. Havia um sentimento forte vindo daquela mulher que eu via pela primeira vez. Era algo forte e agradável (paixão e amor?) e o mesmo irrompia de mim para ela. Eu, uma criatura emergida do mundo real. Ela, um ser tecido por linhas etéreas.  No entanto, imergíamos um no outro, compartilhando ambos, eu tinha plena certeza, as mesmas sensações. Então acordei. Meu corpo, que parecia uma nuvem leve e densa, trouxera consigo tudo o que por tal criatura, em situação tão inusitada, inesperada, nele fora liberto.

Descrevê-la? Não, não creio necessário. Digo apenas que com meus lábios, com meus dedos, numa lentidão ávida, eu percorri aquele corpo longo, mais alto do que o meu, devolvendo com eles a resposta, não menos prazerosa, às delicias que eu não conhecera antes em nenhuma outra pele, nenhuma outra carne, nenhuma outra mulher. Então, considerando que às vezes sonhos podem conter presságios, comecei a procurá-la por todos os cantos, por todos os meios. Em T., minha pequenina cidade, onde vivo desde que nasci, há cinquenta e sete anos, sabia que ela não morava.

Não obtendo resultado por formas mais concretas, fui pesquisar técnicas de controle dos sonhos. Ideias que vinham de povos antigos, de místicos diversos. Contrariando meus hábitos, comecei a dormir mais cedo e acordar mais tarde, a tirar longos cochilos após o almoço. Antes disso, acreditei uma vez que finalmente a encontrara, através de um aplicativo instalado pelo técnico que também colocara de volta o WhatsApp no meu celular, já que a primeira coisa que fiz ao me aposentar foi abolir-me do aplicativo, tendo a pandemia me obrigado a trazê-lo de volta. No tal aplicativo, que o técnico indicou como um bom passatempo, eis que aparece a foto de uma moça. A princípio, meu coração já acelerando, achei ser a do meu sonho. Um exame melhor, mais detalhado, trouxe-me apenas decepção.

 Todo esse processo de busca, daquela que se tornara minha obsessão, eu realizava de forma tranquila. Já perdera muitas coisas em minha vida por uma incontrolável pressa, um excesso de afoiteza, até finalmente adquirir a virtude da paciência, a sapiência do esperar. De resto, quando cansasse de todas as tentativas, não tendo mais nada a perder, eu iria a um recurso mais definitivo. Os mortos sonham? Quem sabe...

No entanto, caro leitor, este plano que nossos sentidos abarcam a maior parte do tempo, e ao qual chamamos de realidade material, pode ser tão ou mais estranho e surpreendente que as terras para onde Morpheus nos leva.

Um dia me vejo obrigado a ficar em uma fila, longa e a se estender pela calçada com os devidos procedimentos de afastamento entre as pessoas. De repente, do outro lado da rua, algo me leva a olhar para lá, e, ora vejam, quem ia pela outra calçada? Quem passava, naquele momento, em frente a uma banca de revistas que desde criança eu frequentava? Ninguém menos que ela: a mulher do meu sonho.

Reconheci-a, mesmo parte de sua face estando oculta sob uma máscara escura – decorada com um unicórnio em vários tons de verde – e o resto do rosto escuso sob o grosso capuz de um casaco azul.

Deixei a fila como louco, não me importando com as horas nelas gastas, com a reação dos conhecidos que ali estavam, com o atraso e a multa do documento a ser pago.

Ela não sonhara comigo.

Ela não me procurava.

Ela também não tinha ninguém.

A pandemia, o confinamento obrigatório, esses continuam, mas agora, agora sou feliz.  

Conto escrito por
Luiz F. Haiml

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima Eliane Rodrigues
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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