A Maldição de Koyaanisqatsi
de Yuki Ehms
Antes do plano existir, um ser
nefando nasceu. Só havia ele e o grande Sonhador, mas logo proveio o Material e
Tempo. Sonhador confiscou seus domínios e os aprisionou no virtual. Por lá
permaneceram por muitos milhões de milênios, até que os humanos nasceram. Seus
pensamentos permitiam que entendessem o universo, mas dava força aos presos no
virtual. Conforme a humanidade crescia, os seres restituíam-se, permitindo que
se manifestassem em nosso plano.
Mas essa era a religião da minha
mãe. Nunca me convenci
de suas crenças,
até porque meu pai (ateu) sempre foi muito mais convincente do que ela no
assunto. Mas, nos
últimos anos de minha vida, muitas coisas aconteceram que me fizeram crer nesta história. Comecemos
pelo início.
Era uma noite normal, como qualquer
outra. Fui ao meu
quarto e dormi. Praticava o sonho lúcido desde novo e, por isso, não tive problemas em tê-lo. Fui
imaginando coisas, mas não conseguia controlar tudo, uns objetos apareciam sem
minha vontade, me encurralaram, até me cercarem num asfixiante corredor
infinito e um ser apareceu. Ele me seguia, sua presença inspirava terror.
Doía, ele me alcançava e doía,
permaneci correndo por um confuso período tentando acordar, mas, mesmo com a
dor e desespero... mesmo
com aquele terror, meu sono era infindável.
Minha vontade foi tamanha que pude
sentir-me deitado e,
em seguida, senti
meus olhos. Apesar da péssima experiência, minhas pálpebras não queriam abrir e eu sentia um sono
que só poderia ser descrito como artificial – não era meu.
Lutei contra a vontade de dormir e abri os olhos. Deus... eu estava acordado no meu
quarto, eu sei disso, não sou maluco e nem mentiroso, mas o que eu vi deveria
ser impossível. Eram várias linhas transparentes que ligavam várias partes de
meu corpo até a mão de uma figura que estava na janela de meu quarto numa pose
como se estivesse me sugando. Estava me pondo para dormir, dopando-me!
No início fiquei sem reação, mas
reuni forças para transformar o medo em raiva e, quando tive segurança para desferir um soco, ele
fugiu para fora de minha janela. Mas o que foi isso? Pesquisei na internet,
falei com conhecidos formados e entusiastas de psicologia, mas nada. Não tinha
explicação: os sonhos lúcidos ocorrem quando estamos no REM, um período em que
temos total e absoluto controle sobre o sonho. Além disso, uma alucinação após
acordar? Nunca tive qualquer problema mental e minha família não possui
histórico de loucura. Por precaução, visitei os hospitais, fiz várias consultas
em diferentes médicos e nada.
Tentei, portanto, esquecer disso,
voltar para minha vida. No entanto, havia noites em que eu sentia a sua presença
e sabia que, se eu
dormisse, ele viria me pegar. Comecei a dormir quase que exclusivamente de dia,
mas a constante sensação de espreita nunca me abandonou.
Foi então que um conhecido meu
recomendou vários centros espíritas,
da umbanda, de tudo que existe, mas por mais que fossem bem-intencionados, não conseguiam me
ajudar. Conforme o tempo passava, me sentia menos vivo. Pela falta de energia, minha postura se
tornou curva e minha respiração lenta, minhas aspirações bocais tinham o som de
uma ventania. Óbvio
que fui ao hospital, mas os médicos não conseguiam me ver... Para eles minha
postura estava reta e o único problema que eu tinha era de coração. Também fui a um psicólogo e
hipnoterapeuta, mas não me entendiam – era como se o assunto fosse bloqueado em
suas mentes e não houvesse problema algum.
Trabalho, consultas no cardiologista
e pesquisas nas bibliotecas da cidade, assim era o meu dia. Perambulando no
centro do Rio, foi na Biblioteca Nacional que encontrei um livro sobre o
assunto. Se chamava Koyaanisqatsi. O primeiro conto do livro foi justamente de um sujeito
relatando o exato mesmo sonho que tive e a sua constante sensação de aperto no
coração e paranoia. O
conto acaba com ele relatando que algo está invadindo sua casa, penetrando seu
quarto pelas sombras. O leitor é levado a crer que ele morreu. É besteira, mas
me obcequei pelo livro, suas crônicas eram tão vivas e seu ritmo constante e
paranoico empunhavam um ar de perigo invisível que, combinado com a narrativa em
primeira pessoa, penetrava em minha mente.
Eu não podia parar de ler, pois os relatos eram
realistas e imersivos ao ponto que perdi a noção de tempo e
me desliguei da realidade. Mas o transe hipnótico do livro acabou em seu último
capítulo que continha somente essa frase ´´ “preciso de um novo
escritor” ``. Bitolado, interroguei a bibliotecária sobre o livro. Ela
me contou que a continuação estava no Real Gabinete Português de Leitura. § Chegando lá, me dirigi
avidamente à bibliotecária.
– Como faço para ler a continuação de
Koyaanisqatsi?
Ela checou no sistema se tinha o
livro e então olhou-me nos olhos com tamanha imposição de perigo que me
assustei.
– O que há na escuridão que a
evolução favoreceu aqueles que a ignoram?
– Perdão? O que você quis dizer com
isso?
Ela deu um riso maquiavélico e
respondeu-me.
– O que eu quis dizer com o quê?
– Com esse papo de escuridão.
– Escuridão? Senhor, eu apenas disse
que para ler o livro é necessário passar por um teste de confiabilidade, pois é um livro antigo
e precioso de nossa casa. Está tudo bem?
– Não. Você não disse isso. Você está
mentindo.
Só me lembro de ser expulso do local
pelos seguranças. Pelo jeito, não me deixariam entrar lá novamente.
Pesquisei sobre o livro na internet:
muitas poucas informações, mas
ao menos consegui encomendar a entrega da primeira edição. Enquanto ela não
chegava, recebi uma inesperada, porém bem-vinda, surpresa – o site de onde comprei o livro, havia dado meu
contato ao suposto escritor e ele teria me chamado pelo e-mail! Fanaticamente, elogiei sua obra e
combinamos de nos
encontrar na mesma semana. Eu estava satisfeito, entretanto, tendo em vista o
livro que li e a situação que me encontrava, decidi não adormecer.
Passada a madrugada, me dirigi ao
hospital onde teria minha segunda consulta no cardiologista. Avistei o doutor
de longe e chamei-o, entretanto, ele não me ouviu, mas um velho morador de rua
que eu alimentava de vez em
quando o fez e me chamou.
– Sinhô, o sinhô sabe que tenho muito
apreço pelo sinhô, não sabe?
– Sim, claro que sei.
– Então faça o favor de não confiar
nesse homem.
– Ora! E por qual motivo eu não
deveria confiar nele? É meu médico afinal!
– Sinhô, antigamente ele dava
caridade pra um colega meu. Todos os dias ele dava comida, e não era das
baratas: eram todas gostosas e caras, do tipo que é raro gente como eu comer.
Meu amigo comia bem ao ponto de engordar, mas conforme o tempo passava, seu
cabelo caía e tinha
dores de cabeça. Não suspeitávamos que fosse a comida, então ele contou ao
doutor e este disse que era sintoma de estresse.
– Estou ouvindo.
– Sinhô, teve uma noite que um voluntario
do abrigo me acordou desesperado: meu amigo estava morto.
– Deus...
– Sim, o voluntario levou ele ao
hospital da ONG e
deram a causa da morte que até hoje não esqueço: falta de vitamina A. Sou miserável
sinhô, mas sei que vitamina é fácil de conseguir nos alimentos. O seu doutor deu
somente comida sem vitamina A de proposito pro meu amigo!
Ele chorava, e eu estava muito
confuso. Será que
deveria acreditar no desordenado mendigo ou confiar em meu cardiologista? No
fim das contas, me deixei levar pelo preconceito. Entrei no hospital sem que o
menos afortunado me visse (não queria ferir seus sentimentos), passei pelos
corredores brancos e fui atendido.
– Bom dia, como vai o coração?
– Anda doendo um pouco,
principalmente depois de ouvir uma história de terror.
– Você gosta de histórias de terror
é? – disse com
aquele típico tom profissional e artificialmente amigável dos médicos – com o seu problema, eu
não te recomendaria assistir histórias de terror.
– Você tem razão, que ideia a minha!
Ele acessou minha ficha pelo
computador e a sala ganhou um ar terrível.
– Pois bem, tenho duas notícias para
te dar: uma ruim e outra pior ainda – meu coração disparava.
Coloquei minha mão em meu peito
enquanto pedi que desse as notícias.
– Te contarei a ruim primeiro: você
tem apenas 24 horas de vida.
Tentei falar algo, mas fiquei com
falta de ar.
– A outra notícia é que eu deveria
ter contado isso há 24 horas atrás.
Tive um ataque cardíaco e morri, não
minto, realmente morri. Não conseguia controlar e nem sentir meu corpo.
– Agora que estás morto, tenho o
prazer de te contar que menti: tu não morrerias agora. Sabia que tinha um
problema de pressão alta relacionada ao estresse e por isso te levei ao pico
emocional. Não precisava ter morrido, imbecil.
Vi o maldito me colocar numa cama de
UTI como se eu ainda estivesse vivo e por lá fiquei durante três dias até ser
notado por uma enfermeira.
Recebi um funeral relativamente
decente.
No entediante estado mórbido,
xinguei muitas pessoas e tentei falar com Deus, mas ouvi uma outra entidade.
– Aceite o meu acordo e se livrará da
maldição.
– Então isto é uma maldição?
– Sim, eu mesmo te amaldiçoei. Sou
aquele que apareceu em seu sonho, e sou aquele que te matou. Meu trabalho é
perseguir aqueles que sabem de minha existência.
Não consegui reagir.
– Escute-me bem, pois te ofereço um
acordo. Você me ajudará a causar o mal e te livrarei da atual situação.
– Qual é a sua proposta?
– Te dou uma vida nova e tu escreverá
um conto relatando sua história comigo. Sua vida será livre de azar, mas sua
consciência poderá pesar,
pois todos que lerem seu conto saberão que eu existo, sendo amaldiçoados por
mim. Qual será sua escolha?
Me desculpe, dada a atual situação
você já deve saber o que fiz. Você, caro leitor, foi amaldiçoado.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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