O Porco no Podium
de Gisela Peçanha
Era uma menina só: sem irmãos, e com
uma vida familiar – digamos assim – disfuncional. O pai, General da reserva,
severo e de conceitos cristalizados; A mãe, viciada em Bromazepan e usuária de Gardenal. Nada que se
aproximasse, nem de longe, de uma família levemente feliz; mas Santa era uma
adolescente meiga, religiosa, amante da natureza e dos animais, feliz: dentro
de sua bolha de total infelicidade e, seu sonho, era ter um cachorro. Simples
assim. Apenas um cachorro de estimação. Um companheiro para sua solitária vida.
Mas o pai não gostava de latidos, a mãe não gostava de pulgas, e a empregada
não gostava de pelos.
Havia, no quintal da chácara onde a
atormentada família morava, um pequeno lago com alguns patos e um chiqueiro
vazio e desativado – no qual Dona Crispina (a mãe) armazenava sua adorada
coleção de orquídeas,
ordem do psiquiatra, atestando que, cuidar de plantas acalmaria os sintomas
histéricos dela. Era suicida. Tentara se matar doze vezes, sem êxito. E Santa,
tinha muita compaixão por sua alucinada mãe ... a afagava, beijava, e se colocava
em seu amoroso colo, a cada tentativa de desencarne. A vida era sempre o mesmo
desterro. Sempre.
Foi quando, certo dia, Tibúrcio Maranhão (um vizinho criador de cavalos puro sangue) anunciou que se mudaria para outro sítio: Possuía um muito maior! Chegaram os caminhões de mudança (quatro), para o translado dos cavalos de raça e das mobílias. O pai de Santa observava tudo a distância, com um sentimento mesclado de inveja com indiferença (que era a sua característica genuína). Criticava o quanto de dinheiro e poder o Maranhão tinha, e sentia-se feliz com a perda desta vizinhança ameaçadora: eles eram muito mais ricos; mas, o criador de cavalos (bem mais cortês) foi despedir-se de seus vizinhos de mal com a vida.
—‘’Tarde’’! Vim me despedir, vizinho.
O General desejou (cinicamente) boa
sorte. Santa e Dona Crispina chegaram até a varanda para fazer as honrarias da
despedida sem apreço ou sinceridade, e perceberam que o vizinho carregava uma
caixa. Já iam perguntar que caixa era aquela, mas o Maranhão se antecipou.
— ‘’Ói’’, vizinho...a gente fez um churrasco no domingo e matamos dois
porcos. Marido e mulher. Quer dizer, a porca e o porco.
O General não gostou nada disso, danado
por não ter sido convidado para o churrasco de bota-fora. ‘’ E daí, que matou o porco e a porca? E eu com isso? Ainda teve o
desplante de me contar’’ – pensou.
— Sim, e daí?
— Daí que o rebento deles sobrou.
Se interessar ao senhor, deixo aqui, senão,
jogo ali no mato.
Abriu a caixa e, dentro, um
porquinho branco quase recém-nascido.
Os olhos de Santa pularam da cara.
O General, disse: joga no mato. A mãe falou: joga no mato. A empregada, lá de dentro, berrou: joga
no mato! E Santa se jogou no chão, em prantos, dizendo: se jogar ele no mato,
eu me jogo também! E me mato! Não era o cachorro dos seus sonhos, mas era um
porco. Porco não tem pulga, porco não late, porco não tem pelo grande. Mas tem
rabo, e o bate que nem cachorro. — Quero este porco! — Santa berrou. Levantou
do chão, arrancou a caixa da mão do vizinho e saiu correndo.
O General apenas balbuciou: Inferno...
Dona Crispina, ponderou – deixa o porco ficar por
um tempo. Vai que ela se mata mesmo, pode ter puxado a mim – Quando crescer, a gente torra ele.
Logo, todas as orquídeas terapêuticas
foram removidas do chiqueiro desativado. Agora, lá havia um chuveiro com água
quente aonde Picolé se banhava. Foi o nome que o porco ganhou, por motivos
óbvios: amava picolé e sorvete. Descobriu isso, quando, por acidente, um pote
gigante sabor baunilha caiu no chão, dando início ao seu imediato vício. Ele o
devorou em segundos.
Santa colocou um colchonete na beira
de sua cama e, da boa mesada, comprou shampoo, ração cara, mas o porco gostava
mesmo era de sorvete. Eram caixas e mais caixas por semana e o veterinário
sempre indo lá, para medir a glicose do suíno: que era boa! Mas percebia-se que
ele engordava a olhos vistos. Estava mesmo gordo que nem um porco. Tinha pouco
mais de um mês, era um leitão inflado, porém, Santa não lhe negava os sorvetes. Ela estava feliz, o
porco estava feliz, batia o rabo o dia inteiro, roçava as bochechas gordas nas
pernas dela o tempo todo, e parecia não se reconhecer como porco – pensava-se um
cachorro ou até mesmo, um humano. O General o ignorava. Dona Crispina, também. A
empregada, idem. O porco era muito rejeitado e, desconfiava-se, ele sabia
perfeitamente disso. O que não sabia, era que a sua pança estava sendo muito
admirada por todos os seus algozes, só esperando que ele crescesse e ficasse
que nem uma anta.
Então, três meses depois, Santa
percebeu que os pais estavam de olho ferrenho em Picolé. Estava preocupada e
cismada. Decidiu, assim, que ele faria uma severa dieta: magro, não chamaria
tanta atenção nem teria serventia. O leitão, tristonho, de uma certa forma
parecia perceber a situação: era o primeiro dia em que sorvete e picolé estavam
cortados de sua deliciosa dieta.
Os meses foram passando e Picolé
agora era um porcão
dos grandes, parecendo mais, uma anta, porém, magro e com um olhar depressivo e acabrunhado. Por
conta de seu estado emocional, começou a grunhir tão alto, que incomodava bem
mais do que latidos estridentes. Santa se condoía por demais com isso, mas
queria protegê-lo a todo modo, era o seu ‘’cãozinho’’ amado. O preferia magro e
triste, do que morto e assado; porém, ele foi se minguando a cada dia.
Revoltado pela falta do sorvete e dos picolés, começou a fazer as necessidades
no meio da sala, a roer as almofadas do sofá, e a destruir as sandálias de Dona
Crispina. O General deu um ultimato para
Santa se desfazer do bicho. A empregada, quando ninguém estava olhando, dava
vassouradas na cabeça dele, e ele respondia urinando forte no pé dela. Criou-se
um clima de guerra civil. Santa, desesperada, implorava aos pais para não
destratarem Picolé, mas não era ouvida. A conduta dele mudou da água para o vinho,
e ele tornou-se violento e com um olhar mau. O que antes era um animal
domesticável amoroso e gentil, viu-se um porco selvagem.
Até que, num domingo de manhã, o
General e a esposa decidiram que o sacrifício do estorvo seria naquele mesmo
dia: gordo ou magro, ele viraria churrasco. Combinaram com a empregada, dela
levar Santa até o lago para observar um pato que parecia doente. Ela cuidava dos patos
também. Seria tudo muito rápido! Pegariam o porco e ele iria direto para os
espetos.
A empregada puxou Santa e os pais
foram em direção ao quarto da filha, com o chicote e a coleira para pegar
Picolé. Quando o porco viu os dois entrarem, tremeu da cabeça ao rabo e, por
mais raiva que sentia – agora que era um porco revoltado e rebelde – raciocinou
que estava encurralado, e que não poderia enfrentar aqueles dois; mas, como era
muito, muito corajoso, lutou o quanto pôde! Lutou, debateu-se, grunhiu, cuspiu,
até que deu uma mordida forte na mão de Dona Crispina. Ela, desmaiou. E ele, saiu
correndo.
Não sabia o quanto correria, pois
sempre foi muito lento – pela obesidade. Mas, para sua completa surpresa,
estava levinho, do tanto que tinha emagrecido! Correu tão rápido quanto corre
uma galinha atrevida. Passou por vários sítios, plantações, açudes, e quem
via-o correr, se espantava! Os que o conheciam, bradavam:
— Vai, Picolé!
E ele ia. Correndo
desesperadamente. Correu tanto, que saiu da área rural e atingiu a estrada. Um
caminhão frigorífico que vinha no asfalto não o enxergou e, ao tentar se
desviar dele, derrapou e tombou numa pequena ribanceira. O porco ficou olhando
lá de cima, desolado; mas, já que agora era um atleta veloz, decidiu descer a
ribanceira e ver como estava o motorista, e ele estava preso, sem conseguir
abrir a porta. Picolé não pensou duas vezes. Com o focinho raivoso que adquiriu com seu novo
temperamento passional e irado, pôs-se a forçar a porta do caminhão, para
tentar libertar o motorista. E, tanta força fez que, por um milagre, a porta
destravou e o motorista conseguiu sair. O focinho chegou a sangrar, pois o
porco não desistiu! Grato e emocionado (e percebendo o quanto o porco estava
magro), o homem apontou para centenas de potes de sorvete que caíram do
caminhão. — Vai comer o sorvete,
porquinho! Antes que derreta!
E Picolé não titubeou. Entendeu que era o seu dia de sorte. Com voracidade, engoliu todo o sorvete caído no chão: de morango, chocolate, e um que ele nunca havia experimentado, napolitano. Se esbaldou! O motorista, com um roxo no meio testa, ria da situação e ainda buscava mais potes dentro do freezer tombado, a oferecer ao suíno salvador. Ligou pedindo socorro e a ambulância chegou. Exausto – e entalado de sorvete – Picolé se deitou. E dormiu. Profundamente.
Anos depois, na Fábrica de sorvetes ‘’Geladinho’’, havia uma mascote valente, forte e leal, fazendo a segurança do estabelecimento. A mascote não latia, não tinha pulgas nem pelos e amava sorvetes; mas, agora, os saboreava com muita moderação... Havia sentido o gostinho do quanto é divertido correr por todo canto, desbravar fronteiras e sentir o enorme prazer de ser um herói. E carregava diversas condecorações em seu Pet - colete a prova de balas (as de aço, claro).
Dona Crispina passou a frequentar um grupo de apoio para suicidas e, lá, conheceu um cortador de pulsos compulsivo, recuperado há cinco anos. Apaixonaram-se perdidamente e foram morar em Miami, dando palestras de autoajuda. O Coronel casou-se com a empregada e passou a levar vassouradas na cabeça, cada vez que chegava bêbado e ia se deitar sem tomar banho – Vai se lavar, seu porco! – Ela berrava, sonhando em jogar ele no lixo. E foi o que fez, quando o trocou por Tibúrcio Maranhão.
Santa decidiu honrar o nome que recebeu, se convertendo e entrando para um convento no Norte do país, após completar dezoito anos: Isso, depois de ter passado alguns meses em um reformatório para adolescentes infratores, por quase quebrar a cabeça da empregada com o pau da vassoura, destroçar as sandálias e as orquídeas da mãe, e jogar todas as fardas de gala, medalhas e condecorações do pai, em uma enorme fogueira. Sua santidade, não superou a lealdade e a feroz defesa que nutria por seu amado porco... que foi, para ela, muito mais do que o cãozinho sonhado que nunca teve! Ele foi o seu maior amigo...
Os patos, Santa levou para o lago do convento e lá, descobriu que havia muitos cachorros abandonados pelas redondezas: repletos de pulgas, carrapatos, e com olhos e corações feridos. Ela os curou, adotando a todos.
Então a vida seguiu doce... para ela e para Picolé.
E jamais, jamais se esqueceram um do outro.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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