Sairemos juntos dessa
de Evandro Valentim
Silêncio ensurdecedor, maior que o acumulado em cem anos de solidão.
Caminhar a esmo na vida que se tornou madrasta, daquelas más dos contos de fada.
Na mochila, desânimo pesado como bigornas; nos bolsos, o peso do pessimismo. Da
pouca luminosidade a lhe restar, enxerga desencanto a perder de vista. Fundo do
poço, lamaçal e, finalmente, o breu.
Assim reinicia o “era uma vez” da história de Marcelina, marcado por
episódio desesperadamente triste, ao receber uma das bordoadas mais vigorosas e
doloridas que alguém pode experimentar em sua jornada: a perda materna. Luto
que a tudo encobre, amordaça e amarra. Sensação ininterrupta de sufocamento e
aperto no coração, como se o músculo pulsante recebesse mortal abraço de gigantesca
serpente constritora.
A condição social da família de Marcelina, em nada diferia da dos
vizinhos de mesmo bairro, lugar que se ampliou invisível ao olhar míope governamental.
Seres humanos humildes que copularam e conceberam outros seres humanos. Estes,
em replicada teimosia, geraram mais filhos. Ao aglomerado, juntaram-se gentes
de muitos outros lugares tão ou mais miseráveis quanto.
Guadalupe e Joaquim, respectivamente, mãe e pai de Marcelina, vieram ao
mundo e se juntaram a esse povo de humilde e desfavorecida origem. Ainda bem que
para as crianças, o mágico véu da infância subtrai a nitidez de certos
acontecimentos, disfarça as agruras do enredo e ameniza o cenário ao redor.
A chegada de Marcelina ao ceio daquela família, contudo, encontrou a
situação um tiquinho melhor. De cara, a ligação entre ela e Guadalupe se
construiu mais intensa, amorosa, primaveril. Bem diferente de como a banda
tocava na orquestra composta pelos outros filhos da matrona. Além de ser a
única filha mulher e a ‘rapa’ do tacho, veio quando já se acreditava na
impossibilidade de incluir outro integrante entre os ‘artistas’ daquela grande
família.
Oito anos separavam o nascimento de Marcelina do ano em que nasceu o
ex-caçula, recém-destronado desse posto. Azar dele e dos demais irmãos, por terem
nascido antes dela. Não conheceram a suavidade, os carinhos e meiguices, dengos
mesmo, de Guadalupe, transformada em outro ser. Jeitão que, tudo indica, foi
gerado durante sua sétima e derradeira gravidez, dentro do mesmo barrigão que
hospedou Marcelina por nove meses.
Os salários de miséria dos irmãos juntados à pífia renda do pai e ao reles
salário de professora municipal da mãe, tornaram a vida daquela família um pouco
mais fácil. Tanto é que, quando Marcelina, abriu o berreiro, recém-saída das
entranhas da mãe, teve até enxoval, pela primeira vez. Bem modesto, mas estava
lá, novinho e cheirando a bebê.
A vida desafia, requer ‘sangue no olho’ daqueles que almejam futuros
melhores. Some-se a tais imposições, os rigores de Guadalupe, quanto às
cobranças junto à prole, para que jamais descuidassem dos estudos,
independentemente do enorme sacrifício para que dessem conta do recado. De firmeza,
nem mesmo Marcelina escapou.
Tamanhos rigores na criação orquestrada pela dama de ferro sertaneja,
frutificaram. A colheita, respeitadas as proporções, pode ser comparada à de
grãos na safra anual brasileira, pujante, a endinheirar latifundiários responsáveis
pela destruição do Cerrado. Esses gananciosos e despreocupados agricultores conseguem
superar, a cada ciclo, o recorde da colheita de soja do ano anterior.
Assim se deu com os filhos de Guadalupe e Joaquim; sem exceção, ano a
ano, obtiveram êxito em suas escolhas, todos bem encaminhados, como se diz.
Alguns animaram a se aventurar para além do oceano Atlântico, percorrendo o
caminho de volta dos ‘descobridores’ do Brasil. Outros, mudaram de cenário,
todavia, continuaram a viver aqui mesmo, no “berço esplêndido”.
Aos dezoito anos, a aprovação de Marcelina para cursar Psicologia na
Universidade Federal em sua cidade natal conseguiu erodir os poderosos muros de
contenção há tanto tempo rijos e capazes de segurar a represa de lágrimas
daquela mãe durona. Ela, com tantas primaveras acumuladas em seu alforge,
chorou como criança, da qual se toma um doce desembrulhado depois da primeira
mordida.
Presentes do estrangeiro, enviados pelos irmãos que cruzaram um mundão
de água salgada para viverem em Lisboa chegaram às mãos de Marcelina, em
celebração ao feito da irmã caçula.
Mas o destino ou, seja lá o nome que leve, também presenteia; não raro,
“presentes de grego”. Mal iniciado o semestre letivo da caloura, em um ano que
começara tão bem, fulminante ataque agudo do miocárdio, vitimou Guadalupe,
carregando-a para lonjuras desconhecidas, outros mundos inacessíveis aos
viventes.
O sepultamento de seu corpo reuniu a família depois de tanto tempo. Até
mesmo os filhos mais distantes.
Desde o fatídico dia em que Guadalupe partiu, Marcelina se tornou outra
pessoa. O olhar não mais brilhava. O viço comum à juventude se perdeu. Os belos
e cacheados cabelos desapareceram, deixando-a calva. Emagreceu arremedando as
imagens de miseráveis em alguns locais da Terra que padecem de fome.
Seu velho pai, sofria. Não bastava perder a esposa, companheira de
tantos anos, testemunhava o definhamento da filha caçula, a ‘zumbizar’, dissolver-se
sem que nada ele conseguisse nas vãs tentativas de fazê-la emergir do pântano
em que mergulhara. Marcelina era uma versão de Sísifo, que mandou Zeus se danar,
pouco se lixando com as consequências da inação, afinal, qual o propósito de
viver?
Tião, ex-caçula, único da prole de Seu Joaquim e Dona Guadalupe a
permanecer solteiro e na mesma cidade, resolveu voltar a viver sob o mesmo teto,
junto ao pai e à irmã. Os anos em que morou sozinho o ensinaram a se virar na
cozinha. Esmerava-se em elaborar pratos de todos os jeitos, a fim de resgatar
seus familiares da zona nebulosa em que se encontravam.
O velho Joaquim recuperava-se, pouco a pouco. Marcelina, como envolta em
casulo, fechada em si mesma, desafiava-o. Revirava o conteúdo do prato pra lá e
pra cá, como a preparar concreto... e só.
Uma ideia, como que sugerida pelo espírito materno, chegou a Tião:
faria, para o domingo, um dos pratos que Guadalupe preparava com prazer, que se
tornara tradição para aquela família: feijão cozido com mocotó fatiado, galinha
cabidela e macarrão ao molho de tomate. Ao lado de cada prato, fatias de pão,
que todos passavam nos seus pratos, deixando-os praticamente limpos.
A soma dos cheiros da produção gastronômica surtiu efeito. Depois de
tanto tempo, foi a primeira vez que um lampejo no olhar de Marcelina se fez
presente. Tião aproveitou:
— Mana, vamos à padaria? Esqueci de comprar pão.
Como era de se esperar, Marcelina se recusou. Ele insistiu:
— O almoço de hoje é especial, precisa de pão para ficar completo. Fiz
com tanto capricho... Vamos comigo, por favor.
Como veículo caído em rio, erguido com a ajuda de potente guindaste,
Marcelina se levantou, com estupenda dificuldade.
— Eu estou muito feia, cara amarrotada!
— Nada que um bom banho e uns truques que vocês, mulheres, sabem fazer,
não resolvam.
— Não, Tião, não vou. Além do mais, estou quase careca.
— Um lenço?
Tanta insistência e o cheirinho da comida a seduzir venceram a duradoura
negatividade de Marcelina. Braço dado com o irmão, a dupla caminhou,
lentamente.
— Olha, mana, um poodle! “Cachorro de madame”. Parece abandonado.
— ‘Tadinho’... Deve estar com fome.
— Não tenho nada aqui pra dar.
— Podemos comprar? Acho que podemos encontrar alguma coisa na padaria ou
no açougue.
— Claro, vamos lá.
— Tomara que ele esteja por aqui quando voltarmos.
Tão rápido quanto Marcelina conseguia caminhar, a dupla foi e voltou
pelo mesmo caminho. Traziam pequeno pacote de ração canina. Tião, com um pouco do
alimento à mão, tentou se aproximar do cão. Ainda que pudesse estar faminto,
afastou-se da generosa oferta.
— Não foi com a minha cara – comentou Tião.
— Minha vez – disse Marcelina, a caminhar na direção do cachorro.
— Vem cá, vem. Tenho comida pra você...
O cão permaneceu parado. Um progresso em relação à tentativa de Tião, de
quem se afastou.
A pequena distância do animal, Marcelina se agachou. A expressão no
olhar de ambos transmitia, mutuamente, mensagens contando as chagas ofertadas
pela vida. A semelhança os aproximou, tornou-os cúmplices sabe-se lá do quê. De
forma tímida, receosa, desconfiada, o cachorrinho se avizinhou da mão com o
regalo há muito desejado.
Tião se manteve quieto, apenas a observar o encontro de seres
maltratados por longo tempo de sofrimento.
O poodle comeu toda a ração inicialmente oferecida. Pelo olhar parecia
pedir mais. Marcelina pediu o pacote a Tião. Porém, quando ele se aproximou, o
cachorro, para tristeza de ambos, saiu em disparada.
Aguardaram alguns minutos na esperança de que voltasse, mas não
retornou.
Meio frustrados, os irmãos retornaram para casa. À mesa, o trio - pai,
filho e filha - almoçou em clima já ameno, atmosfera menos densa do que em dias
anteriores.
— Você aprendeu a cozinhar muito bem, meu filho!
— Obrigado, pai. E você, Marcelina, não comenta nada?
— Está tudo muito gostoso, Tião. A mãe, de onde estiver, deve estar nos
olhando, com alegria, orgulhosa de você.
A mudança de comportamento de Marcelina era visível. Tanto que
descarregou o semblante paterno. O velho Joaquim, sentado em sua cadeira de
balanço, olhava os filhos na arrumação da cozinha. Daquele rosto enrugado,
brotou discreto sorriso. Mais um pouco, cochilou...
— Tião - disse Marcelina -, quero voltar lá onde encontramos o
cachorrinho. Não paro de pensar nele...
— Quer que eu vá junto?
— Melhor não, ele tem medo de você – respondeu Marcelina.
— Então vá. Eu termino de organizar tudo. Leve o pacote de ração.
Em missão de resgate, Marcelina percorreu o mesmo caminho de antes.
Torcia para que o cachorro estivesse por perto.
Lá estava ele, como a esperá-la, pareciam ter combinado. Vestidos a
caráter: ele, pelagem escura e encaracolada, repleta de carrapichos, folhas e
pedaços de graveto. Além disso, muito provável, carregava alguns bichinhos por
lá acampados. Ela, com roupas que a cabiam duas vezes dentro, de tão folgadas.
Ele balançava, com vigor, o toco de cauda. Ela, sem cauda para balançar, acelerava
o coração, tão desacostumado de bater forte.
Encontro de seres machucados pela vida, que juntaram seus respectivos
sofrimentos, como escoras, de modo a sustentar os escombros das paredes que teimaram
em resistir, por tanto tempo, às borrascas que as flagelaram.
Seu Joaquim despertou do sagrado cochilo com os latidos. Apesar de
miúdo, o cão latia alto.
— Que novidade é essa? – questionou o velho pai, já a imaginar o que
ouviria.
— Podemos ficar com ele, pai? Foi abandonado.
Tião também esperava, na verdade, torcia para que um novo capítulo na
vida da irmã caçula começasse a ser escrito a partir daquele inesperado
encontro.
Joaquim mirou bem os olhos da filha, depois encarou o bicho, que,
pareceu temer a autoridade do velho. Sentenciou:
— Podemos sim, filha. Com uma condição:
— Eu cuido, pai, prometo.
— Disso, eu já sei. A condição é outra.
— Qual?
— Eu escolho o nome – disse com um largo sorriso, tanto tempo depois da
vida sedentária dos músculos faciais que o permitiam fazê-lo.
Tião adentrou à sala feliz da vida por ver duas pessoas por ele tão
amadas, como a se reconciliarem com a vida.
— Qual nome o senhor quer? É uma fêmea.
— Vai se chamar Preta.
— Precisa de uns cuidados, um bom banho pra começar – disse Tião.
— Precisa mesmo, tá que é uma catinga essa moça – emendou Joaquim.
Convalescença. O lar que abrigava, até então, três vidas, acolheu uma
quarta. Preta, como o astro-rei, todas as manhãs, inundava a vida de Marcelina
com seu brilho. A jovem, por sua vez, transbordava carinho e cuidados para com
Preta.
Resgate mútuo do abandono certamente não planejado por nenhuma delas.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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