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Antologia Sempre ao Meu Lado: 1x05 - Aquele que Nunca Muda

Conto de Amanda Magri de Abreu
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Sinopse: A jornada de uma garota através do luto com a ajuda de seu pequeno companheiro que passa a ser uma constante em sua vida desde o primeiro dia.


Aquele que Nunca Muda
de Amanda Magri de Abreu

 

            Eu nasci e cresci na cidade de São Paulo, e nunca me sentia acolhida, sempre me sentia solitária, e raramente me sentia em paz. Mas o que salvara a minha completa apatia, foi o fato de que desde criança eu costumava viajar com grande frequência para a cidade dos meus avós maternos no interior do estado, era uma cidadezinha minúscula com oito mil habitantes, composta por uma avenida e uma praça central com uma igreja desproporcionalmente grande para o tamanho da cidade. Além de uma enorme diversidade de fauna e flora por todo o arredor.

            Lá, eu sentia vividamente o efeito daqueles elementos deslumbrantes, sentia que a fragrância das árvores tornava o ar mais delicioso, que o alimento era mais saboroso, sentia inclusive que cada habitante era mais caloroso. Mas, principalmente, sentia que o meu coração pertencia àquele lugar.

            Talvez por um acaso do destino, ou talvez por desejar tão avidamente ao universo para que o meu coração permanecesse ali, aos dezesseis anos, apaixonei-me por um rapaz da cidade. No entanto, fosse novamente por um acaso, ou por capricho, ele faleceu. E, assim, teve início a minha jornada com o Luto.

            Desde então, o luto faz parte de minha vida, faz parte de quem eu sou, acompanhando-me todos os dias e para todos os lugares, como um amigo soturno. Sentir uma perda tão repentina e de uma pessoa tão querida em plena adolescência era algo que estava fadado a ser uma experiência violenta, mas não sentir o apoio e o amparo de minha família foi uma surpresa devastadora. As mudanças de humor, naturais para o período, foram enormemente intensificadas pela situação que eu enfrentava naquele momento da minha vida.

            O julgamento dos meus familiares, inclusive de meus próprios pais, que ignoraram o trauma pelo qual eu estava passando, atribuindo erroneamente o meu comportamento ao uso de substâncias ilícitas, contribuiu para o aumento significativo da depressão que destroçava a minha alma.

            Eu não tive acesso a acompanhamento médico, não sentia que ninguém se importava, mas sentia desesperadamente o peso da solidão.

            Até que, alguns meses depois, a melhor amiga de minha mãe nos contou que a sua cachorrinha tinha dado cria, e isso fez com que minha mãe tivesse uma brilhante ideia, resolvendo que iria me presentear um dos filhotes.

            Sinto a necessidade em pontuar aqui o quanto desejei e ansiei, quantas vezes implorei de joelhos para ganhar um cãozinho quando criança, sem nunca ter obtido sucesso. E era apenas irônico que, quando finalmente resolveram que eu poderia ter um, tenha sido em um momento em que eu sequer tinha condições de cuidar de mim mesma, quanto menos de um outro ser que dependeria completamente de mim, que não passava de uma boneca desmantelada na época.

            Pois foi depois de muita insistência por parte de ambas as mulheres que resolvi ver uma foto dos filhotes e escolher um deles para conhecer. Sendo assim, em uma certa sexta-feira, resolvemos ir até o salão de belezas que pertencia à amiga de minha mãe, por volta da uma hora da tarde; e enquanto eu esperava pela chegada da pequena criatura peluda, eu era consumida pelos meus pensamentos e pelo cheiro de acetona e produtos de cabelo que preenchiam o ambiente, causando-me uma sensação ainda mais nauseante e desconfortável por ter acabado de almoçar. A irmã da moça levou o cãozinho até lá pouco tempo depois, era um Lhasa Apso que tinha o peito branco e o resto da pelagem preta, enquanto todos os outros filhotes possuíam uma pelagem completamente branca. Ao ser colocado no chão, a criatura de pouco mais de três meses, veio direto até mim.

            Obviamente, eu não consegui largar aquele pequeno filhote de Chewbacca durante o dia todo, afinal de contas, era um cachorro amoroso e adorável, mas eu ainda não estava convencida de que aquele era o momento certo para adotar um cãozinho, algo que deixei bastante claro para as pessoas que estavam ali presentes naquele dia. Considerando o meu ponto, chegado o final do dia, a amiga de minha mãe disse:

            “Leve-o para casa, passe o final de semana com ele. Se não der certo, pode me devolver na segunda-feira”.

            Concordei com a sugestão, por mais desconcertante que fosse, depois disso despedimo-nos e fomos para as nossas respectivas casas.

            Era uma noite fria de julho, então vesti o meu pijama felpudo favorito, que era igualmente horrendo e reconfortante, coloquei-me debaixo de umas belas camadas de edredom, e aninhei o filhote na cama aos meus pés, o que pareceu o deixar bastante satisfeito, porque ele adormeceu com uma rapidez surpreendente, o que não era para menos, depois daquele dia tão agitado. Diferente do pequenino, eu passei a noite quase toda em claro, debatendo exaustivamente comigo mesma a respeito daquela mesma questão, porém, todo aquele diálogo interno foi em vão, eu não cheguei a uma conclusão. E nem precisei.

            O universo possui um jeito peculiar de agir, e, no sábado de manhã, recebemos uma ligação. A amiga de minha mãe havia falecido em um acidente de carro ao sair do trabalho, logo após termos nos despedido e ela ter deixado o filhote aos meus cuidados.

            Eu senti que uma força maior estava me enviando um aviso, um chamado, ou algo do tipo, mas que, certamente, estava tentando me dizer alguma coisa. Então, eu batizei aquele pequeno Lhasa Apso de Peter, como Peter Pan, aquele que nunca cresce, nunca muda. E ele passou a fazer parte da minha jornada através do luto. Não, ele não apenas fez parte, porque ele, assim como eu, experienciava o luto, embora não tivesse tanta ciência disso. Reconhecemos a dor um no outro, e Peter ajudou-me a compreender o luto, ajudou-me a ter forças para lutar e, muitas vezes, a apenas coexistir com a dor, frequentemente, é só isso o que podemos fazer. Coexistir com ela.

            Passamos juntos não só pelo luto, mas também por separações de pessoas conhecidas e amadas, superamos mágoas e, independentemente das provações, Peter sempre foi aquele que esteve comigo, mesmo quando as pessoas partiam, eu sempre pude aninhá-lo no cobertor aos meus pés, como naquele primeiro dia, e recorrer a ele quando estava melancólica e amedrontada, assim como ele o fez por diversas vezes.

            Durante muitos anos, ele não foi só o meu melhor amigo, mas o meu único amigo.

            Peter entrou em minha vida para me trazer aprendizados diários; e descobri que concentrar os meus esforços em cuidar de outro ser fez com que eu me curasse de uma maneira que eu jamais esperaria que fosse possível.

            E, é claro, a vida não se faz apenas de momentos de tristeza, dias alegres, e até mesmo hilários, se passaram; como quando seu pelo começou a adquirir uma coloração caramelo, e, por fim, a pelagem branca de seu peito tomou conta de seu corpo como um todo, isso antes mesmo de completar um ano de idade, fazendo com que ele parecesse um cachorro completamente diferente daquele que escolhi justamente pela pelagem ser diferente da pelagem dos irmãos.

            Aos poucos, fomos amenizando a dor um do outro, e passamos a partilhar dias cada vez melhores. E, não importava para onde ia, eu sempre o levaria junto comigo. Visitamos amigos, viajamos juntos, e eu não seria capaz de imaginar uma companhia melhor do que ele, ainda mais vindo de uma criaturinha tão apequenada.

            Até que finalmente tomei uma decisão, havia chegado a hora de seguir com o meu sonho: iríamos nos mudar para a minúscula cidadezinha interiorana que eu tanto amava. A princípio, não foi fácil, porque isso exigiria alguns sacrifícios, como o período em que eu teria que deixar Peter em São Paulo até que eu tivesse organizado os pormenores e estivesse estabelecida, tendo condições para trazê-lo para perto de mim novamente.

            Foram meses conturbados pela mudança de cidade, e fiquei um tanto aflita por não ter o meu amigo ao meu lado depois de tantos anos de companheirismo. Porém, quando foram finalizadas todas as transações e pude buscar o meu pequeno Peter, senti, pela primeira vez, que podia respirar de verdade.

            Nossa nova vida teve início, Peter agora tinha espaço para correr e brincar, podia rolar pela grama verdejante, sentir o calor do sol quentinho em sua barriga voltada para cima, observar com curiosidade todas as criaturas que ele tinha pouco contato, como  pardais roliços e maritacas de cores vibrantes. Assim como compartilhamos nossa tristeza um dia, compartilhávamos agora a nossa alegria. E, enfim, compreendi o motivo de sempre ter sentido que o meu coração pertencia àquele lugar tão encantador. Ver o meu pequeno melhor amigo transformando-se em um serzinho tão contente, fez com que o meu contentamento se intensificasse ainda mais.

            Dez anos depois, encontro-me sentada em minha varanda, é um fim de tarde estival, meu vestido vermelho e florido é de um tecido leve, que oscila com o vento caloroso, eu posso sentir o aroma do ar fresco fortemente ao meu redor, então, olho para baixo, e Peter está aqui comigo, aninhado aos meus pés, ainda tomando um sol quentinho na barriga, mas agora tira mais sonecas do que quando era jovem. O luto não me persegue mais, nós fizemos as pazes, isso graças ao meu companheiro peludo, que segue sendo uma constante em minha vida. Segue sendo àquele que nunca muda.

Conto escrito por
Amanda Magri de Abreu

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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