Memórias de uma Louca
de Flávia Redman
O despertador do celular
começa a tocar. O som é similar ao alarme de bombeiros em situação de
emergência. Insistente barulho... insistente alarme.
Ellen, enrolada em seu
lençol florido, descabelada, ouve como se fosse a quilômetros de distância um
som que vai aumentando e invade a sua cabeça. Abre um dos olhos que ficam
encandecidos pelo brilho da tela do celular.
O relógio marca cinco e
trinta da madrugada. Um suspiro. Ellen volta a dormir. Com o rosto no
travesseiro branco manchado de marrom, fala baixinho: ainda estou viva? Por
quê? Não acredito que ainda estou viva!
Virou-se
com o rosto em direção ao teto. Sentou na cama. Retirou vários objetos
que estavam em cima de sua perna. Eram livros, bolsas, roupas, copos,
pratos com restos de comida da semana anterior. Sua cama parecia um armário
velho com antiguidades quebradas e mofadas. Parecia haver mais objetos
jogados na cama do que nos armários da cozinha.
“Chegue cedo para ser a
primeira, assim teremos mais tempo para conversar”. Lembrou repetindo em voz baixa.
– Ah, sim, claro, chegar cedo, etc, etc, etc ...
Sentou na beirada da cama. Seus
pés tocaram o chão sentindo o azulejo gelado
– Onde estão minhas sandálias?
Decidiu
levantar mesmo sem achá-las.
– Talvez seja hérnia de disco. Eu sentiria
saudade de vocês caso resolvessem desaparecer sair de mim? Afinal, essas dores
me fazem sentir que ainda estou viva ...
Fez
alguns alongamentos e reclamou das dores constantes que sentia na
coluna.
Foi
ao banheiro sem porta, de azulejos escuros. Era simples, mas lhe causava
uma sensação sempre estranha. Sentou no vaso sanitário e abaixou
a cabeça. Seus longos cabelos castanho claros tocaram o chão.
– Vida infeliz .... infeliz vida ... mais
um dia e ainda estou viva ...
Ellen tirou seu
pijama infantil cor de rosa com desenhos de gatinhos, presentes de Natal e
bolas coloridas. Já tinha 34 anos, mas ainda achava adequado usar roupas
infantilizadas.
Tocou
seus seios. Tocou a sua vulva. Teve alguns pensamentos
eróticos e pensou em se masturbar.
– Por que não? Já faz tanto tempo que eu
não tenho uma relação sexual...
Desistiu.
Achava aquilo cansativo e tedioso demais para continuar.
Ligou
o chuveiro girando a maçaneta de plástico que fazia um barulho estranho
e que sempre engatava. Deixou a água escorrer por seu corpo. Sentiu
a água gelada tocando seus
seios. Eram pequenos e bem desenhados seios, proporcionais ao seu corpo,
motivos pelos quais já havia recebido muitos elogios.
– Já estou atrasada! As horas passam rápido
demais!
– Eu e essa minha mania de nunca cumprir
horário!
O relógio marcava
6h30 da manhã. Apressada, saiu do banheiro, molhando o chão da cozinha e
do quarto.
– O que vestir, o que vestir?
Falou
olhando o guarda-roupa lotado de roupas. Ellen sempre achava que não tinha
roupas suficientes e que as que já tinham eram sempre ultrapassadas ou já não serviam,
pois sempre se achava acima do seu peso ideal.
Vivia
complexada com o seu peso. Muito provavelmente devido à anorexia que teve aos 17 anos.
– Não tenho algo interessante para vestir e
ainda que eu tivesse continuaria achando que não tenho.
Escolheu
uma calça jeans, camisa cor de vinho e um sutiã rosa. Calçou um tênis
preto e suas meias azul com desenhos infantins.
Procurou
a chave do carro. Ellen quase nunca sabia onde havia deixado a chave. Encontrou-a
embaixo da cama depois de 10 minutos de procura.
Entrou
em seu Chevrolet Chevette, ano 1980, cinza, herdado de sua mãe.
Não estava longe
de seu destino. Dirigiu provavelmente por 20 km. Não havia
engarrafamentos.
Acendeu
um cigarro Malboro. Ellen havia parado de fumar há uns cinco anos, mas
ultimamente não conseguia resistir. De vez em quando, usava o
cigarro como escape para alguma situação.
– Um dia você ainda vai me matar, mas
morrerei feliz.
Chegou
ao local. Estacionou seu Chevette antigo. Olhou no retrovisor, passou
a ponta dos dedos ajeitando a sobrancelha direta.
Suspirou.
– Mais um dia. Vamos lá...
Em pé, em frente ao
local, releu, como sempre fazia, o que estava escrito na placa.
Entrou,
com passadas lentas e ainda fumando seu Malboro. Tossiu algumas vezes, engasgada com a fumaça
do cigarro. Jogou o cigarro no chão e apagou a chama com a ponta
do tênis.
Entrou
e fez os procedimentos na recepção.
– Nossa, hoje o dia vai ser agitado –
pensou. Isso aqui tá lotado! Eles vão ter muito trabalho.
Sentou na cadeira desconfortável azul. Parecia
uma cadeira de escola, porém
com uma fina camada de almofada.
– Quantas pessoas devem ter sentado aqui
hoje nessa mesma cadeira? Quantas eram homens? Quantas eram mulheres? Vieram a
pé ou de carro? Como estavam vestidas?
Seus pensamentos pairavam
em coisas muito diversas e sem sentido.
Ouvia
o trinco enferrujado da porta de ferro abrindo e fechando de vez em quando.
– De fato, isso parece uma prisão... –
falou baixinho
Ouve-se gritos lá de
dentro. Por vezes eles pareciam mais proximos da sala onde todos estavam,
outras vezes mais distantes.
O barulho do trinco
enferrujado da porta chamou a atenção de Ellen novamente. Pela porta,
sai uma mulher falando alto. Suas mãos apontavam pra cima. Vestia uma saia
frouxa.
– Será que ela está grávida? Pensou Ellen.
Ellen sentiu-se
assustada. A mulher parecia fazer uma pregação bíblica. Dizia:
– O Senhor está vindo! Arrependam-se,
irmãos, arrependam-se!
Chegou
perto de Ellen e com sua mão direita a tocou próximo ao coração.
– Deus vai te curar! Receba a cura irmã!
Ellen, um pouco assustada, mas tentando não
demonstrar nervosismo algum, ficou em silêncio e imóvel.
Passado esse momento
tenso, voltou
a observar as pessoas ao redor.
Viu
uma mulher que ria sem parar ao ler alguma coisa no telefone. Ela estava
sentadade de costas para a parede naquela cadeira azul de almofada fina e
desconfortável. Pegava o celular de vez em quando e balbuciava
algumas coisas que eram impossíveis de compreender. Soltava altas
gargalhadas.
– O que está acontecendo com ela? O que
será que está lendo no celular que causa tanta euforia?
Ao lado de Ellen, uma
jovem senhora, loira, com cabelos curtos e uma voz em tom bem suave. Falava
sempre bem baixinho.
O ambiente estava tão
agitado que Ellen nem havia prestado atenção nessa senhora.
– Meu médico mandou eu vir para cá porque eu não
estou conseguindo dormir. Você também não consegue dormir? – disse a senhora.
– Sim, tenho dificuldades para dormir, mas estou
aqui por outro motivo.
– O que aconteceu com você?
– Ah....bom...depressão e tentativa de
suicídio.
– Minha nora teve problemas com isso. Ficou
muito mal. Ela tinha depressão e se suicidou.
– Parece que essa informação não me ajudou
muito – pensou Ellen.
Olhava
o relógio do celular constantemente. Já estava aguardando por muito tempo.
De repente ela chega,
apressada e atrasada como sempre. Seu sapato de salto alto fazia barulho
naquele piso escuro. Seu cabelo encaracolado estava esvoaçante e com um sorriso
meigo, disse:
– Desculpem pelo atraso, a culpa foi do
motorista do aplicativo. Eu já vou atender vocês!
Ellen achava ela bonita,
elegante e inteligente. Parecia sempre ter certeza do que dizia.
Cansada de esperar, cedeu
a uma conversa de uma senhora risonha. Ambas foram para fora e sentaram
na calçada. Essa senhora de cabelos grisalhos, desgrenhados e uma maquiagem malfeita, tirou de
sua bolsa uma revista com imagens de modelos femininas. Começou a comentar sobre
as botas e roupas que usavam. Ellen gostou da conversa, parecia
mesmo interessante falar sobre roupas. Isso a distraia um pouco. Até que
a mulher disse: eu sou filha daquela atriz da novela.
Ellen se sentiu
tola naquele momento.
– Não acredito que entrei na conversa dela.
Essa senhora não é uma pessoa mentalmente normal.
Sentiu
pena daquela senhora.
Voltou
para a sala lotada.
O trinco enferrujado soou
outra vez.
– Senhora Ellen, pode entrar.
Resmungou
um pouco – Até que enfim, chegou a minha vez.
Passou
pela porta enferrujada de ferro e entrou no corredor de paredes brancas.
Local de ar fúnebre, sem decoração, grotesco, esquecido.
Tentava
abrir os olhos aos poucos, mas sua visão estava embaçada. Não conseguia
falar. Sentia um peso enorme no corpo que não a deixava levantar.
Não conseguia mover os braços. Eles estavam amarrados.
– Doutora Amanda, por quanto tempo a minha
filha precisará ficar aqui?
– Não sabemos, pois o caso dela
infelizmente é grave. A Ellen desenvolveu várias personalidades na sua mente
para lidar com seus problemas. Em uma determinada vez em que ela esteve aqui,
relatou ter conversado com uma senhora de cabelos grisalhos sobre moda. Falou
ainda sobre ter conversado com uma senhora loira que sua nora havia se
suicidado. Além disso, comentou que viu uma mulher louca falando
sobre o fim do mundo na sala da recepção, porém nesse dia não havia ninguém com essas
características.
– Muito obrigada pelo seu cuidado com minha
filha. Um dia ela falou sobre você. Disse que às vezes chegava atrasada, mas era muito inteligente e bonita.
– Obrigada pelas palavras. A senhora deve estar preparada, pois Ellen, depois dessa tentativa de suicídio, ficará aqui no centro psiquiátrico por um bom tempo.
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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