Plantei Café, Colhi Amor
de Ulisses Andrade
Caso vivo fosse, teria dificuldade em contar-lhes minha história. Atualmente eu teria por volta 123 anos pelo calendário Gregoriano. Nasci em um domingo de 1896, no século 19, num pequeno povoado chamado Peraleda de San Román, em Cáceres, na Espanha. Porém com a ajuda de um médium posso ser psicografado e permitam-me apresentar: Sou Juan Fernandez Garcia. Saí de minha terra natal em 1913, já no século 20, numa viagem sem volta, rumo ao Brasil. Sob a promessa de terra farta, um futuro melhor e muitas oportunidades, meus pais deixaram pra trás a pobreza, a família, a igreja, as ruas quase sem movimento, o lago sem peixes, a velha casa maltratada e a falta de perspectiva, levando nas malas algumas roupas, o que puderam carregar de comida e alguns trocados – tudo o que conseguiram juntar por toda uma vida, e que mal dava para sobreviver alguns meses. Mas todos (eu, meus irmãos, mãe e pai) carregamos o que tínhamos em abundância: nossa fé! Não sei bem quantos dias passamos no navio, alternando mar revolto e mar calmo, mas creio que foram contados em meses. A mesma fome que nos assombrava em terra firme também embarcara conosco para nosso destino. E nos acompanharia por uma boa parte da vida... Após muito sofrimento, algumas vidas ficarem pelo calvário do caminho, vencemos a dor, o cansaço e a esperança tinha nome: porto de Santos. Despedi-me sem saudades do ITALIE, navio que fora nossa morada por um tempo, já meio perdido junto à multidão, onde agarrávamos a mão que estivesse disponível, tal qual uma grande família em busca de sobrevivência. Após burocracias que eu não entendia (tampouco meus pais, pois éramos todos analfabetos), passei a me chamar João Fernandes Garcia e seguimos como gado para uma fazenda de café, no interior de São Paulo, qual o dono parecia nos ter comprado em um grande supermercado. O trabalho era duro, por muitas horas todos os dias, mas estávamos instalados e bem, dentro das possibilidades. Durante alguns anos, vi inúmeras vezes meu pai chorar em silêncio e murmurar com a minha mãe que o destino lhe reservara somente sofrimentos, mas que assim que juntasse um bom dinheiro voltaríamos à Espanha. Acredito que não juntamos o suficiente, pois os dois morreram ainda na fazenda, sem nunca ter conhecido nada por aqui. Só os pés de café. E as mãos grossas e calejadas de ambos que se acariciavam. Eu tive melhor sorte: entre os vãos dos pés de café, saia comprida, rosto brilhante, cabelos longos, olhos redondos e negros feitos jabuticabas, engraçava-se comigo uma bela mocinha espanhola, bem mais nova que eu, mas a mais linda que vi em toda a minha vida! Quanto mais pés eu colhia, mais eram as vezes que a via. E contava nos dedos os dias que faltavam para a missa de domingo, dia em que não trabalhávamos e que haviam os animados bailes... Dançamos “La Jota” pela primeira vez em 02/03/1919, dia que jamais esquecerei. Também porque exatamente trinta dias depois, 02/04/1919, Margarida – minha flor em pessoa - faria quinze anos, data em que ficaríamos noivos oficialmente. Casamo-nos e continuamos nossa vida na fazenda, e o sofrimento das colheitas de café era sempre minimizado com a doçura dos momentos com minha eterna companheira. Vieram nossos filhos, ano a ano a família ia crescendo, e assim também era com nosso amor e cumplicidade. Passamos dificuldades sim! Mas os momentos de alegria e felicidade foram enormemente superiores. E assim nossa vida seguiu, nossos filhos foram crescendo e a vida foi tomando alguns rumos que não esperávamos, mas que ainda assim aceitamos, era o que Deus nos mandara, pois Ele sabe todas as coisas. Juntamos algum dinheiro e apesar do Brasil produzir a maior parte do café do mundo, o preço não era mais como antes... Por isso e por nossa idade já um pouco avançada, decidimos mudar para São Paulo onde acabamos de criar os filhos (vivos, ao todo foram onze), vieram os netos, os bisnetos... Como recordação de nosso encontro, compramos uma casa com um imenso quintal, onde, por todo o tempo que tivemos condições físicas, cuidamos de um grande jardim que era sempre florido de um lado, com uma extensa passarela ao meio que conduzia à nossa casa, e do outro lado havia inúmeras árvores frutíferas. Era nosso pomar pessoal. Por muitas vezes pela manhã, eu e minha flor particular regávamos juntos nossa horta, da qual tirávamos verduras frescas para nossa alimentação. Tínhamos muitos animais também! Algumas galinhas e galos, alguns porcos, um papagaio, um cachorro, um jabuti, muitos gatos e até um sagui, fora os incontáveis pássaros que nos visitavam todos os dias. Nenhum de nossos animais foi abatido para alimentação, todos faziam parte da nossa família e assim deveria ser. Todos morreram quando Deus quis. Todos tiveram uma vida plena como nós. Todos descansam em paz. Eu já estava há algum tempo enfermo e não saia da cama, mas minha flor me acompanhou até o último dia de minha vida, sempre ao meu lado, até meu suspiro final, que foi em 1983. Minhas últimas palavras foram “Yo quiero morirme”. Ela me olhou com sinal de aprovação, derramou uma lágrima e suspirou fundo. No momento em que desencarnei pedi permissão para uma última olhada para trás, que me foi concedida. A cena nunca mais saiu do meu pensamento, ela debruçada sobre meu corpo já sem vida, chorando, me beijou, retirou minha aliança que fora colocada por ela em meu dedo 64 anos antes e juntou à sua, numa comunhão de amor eterno. Levantou-se e saiu. Neste momento eu parti rumo ao meu novo destino. Por oito anos (coincidentemente eu era oito anos mais velho que ela) não mais pude vê-la, mas muitos amigos que desencarnavam me traziam notícias dela. E todos diziam a mesma coisa: que ela pensava em mim todos os dias e que em todos os entardeceres ela ajoelhava-se frente ao pé de café que havíamos plantado ao lado da porta da entrada da nossa sala e fazia sua oração, pedindo que eu estivesse em paz e que um dia ela me reencontrasse. O pé de café representava nossa união e fora plantado por nós com sementes trazidas da fazenda onde nos conhecemos. Aquilo me emocionava, apesar de eu não ter ainda autorização para vê-la. Em 1991 (ano humano) fui chamado às pressas para conversar com um Anjo de Luz que me disse que eu havia sido escalado para uma missão e que deveria partir naquele momento. Como não havia feito nada parecido desde meu desencarne, fui meio inseguro, mas seguindo as coordenadas que me foram dadas. Não sei bem como, mas de uma passagem branca e com muita luz me vi em meu quintal, junto ao pé de café. Antes que eu pudesse ter noção do que estava acontecendo, vi meus filhos, netos e alguns bisnetos no interior da casa que morei, mas não conseguia ver o que ocorria. Eis que por entre os vãos do pé de café surge radiante um rosto suave, pronto para me beijar e diz: Esperei por este momento todos os dias! Nosso laço é eterno e infinito como prometemos um ao outro. Vamos à nossa nova fazenda; mostre-me tudo, como fez quando eu tinha quinze anos; tudo mesmo. Ensine-me novamente o amor e agora a vida após nossa morte, porque morremos para viver eternamente.
Hoje temos parte de nossos filhos conosco e olhamos pelos outros, pelos nossos descendentes e rimos sempre que alguém para e fica olhando atentamente aquele pé de café, como se estivéssemos plantados nele! E estamos, porque as memórias representam a vida, a vida representa o amor e a morte representa o renascer...
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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