Labirinto de Papel
de Mateus Ântoni Rúbia
As estantes metálicas erguiam-se mais altas do que
ele, mais altas do que ambos. Eram frias; sabia de sua frieza
ainda sem tocá-las. Os livros silenciosos quedavam suavemente tombados uns
sobre os outros, ajuntando-se na superfície plana e lisa como pássaros buscando
aquecer-se do frio em cabos elétricos. Era um fraco cheiro de desinfetante, o
odor mofado recendendo de páginas há muito não arejadas e o do seu perfume, a
nuvem de lírios, chuva de verão e madeira molhada que exalava daquela pele, que
ele inspirava. Quando se distraia assim ela sumia — mesmo que soubesse que
estava bem à sua frente, ainda que soubesse segui-la a passos cegos, os olhos apenas
na ponta dos pés calçados, de alguma forma ela sumia, de tal maneira que, de repente, tornava-se apenas uma mecha de cachos escuros
atrás de uma estante; olhos espiando sobre a lombada de livros velhos e
bolorentos; um sorriso fantasmagórico ecoando no ar parado que antes era
preenchido apenas pelo som de suas respirações incessantes e ritmadas ou de
passadas incertas. Mesmo que se encontrassem sozinhos na biblioteca, apesar de
saber que acima de suas cabeças o que havia eram lâmpadas tubulares de um
branco fosco, em
torno das quais voavam insetos tontos, tinha a impressão de que as estrelas o viam-no através do espesso
concreto que acondicionava suas presenças minúsculas e a gigantesca que era a
de todos aqueles livros.
Ocorreu-lhe,
então, que caso pegasse nas mãos um desses livros empoeirados e abrisse-o,
qualquer um deles, encontraria em seu interior os olhos escuros da menina — que
são alcatroados, da mesma cor e resinosos como é tinta. Do susto imaginou que
deixaria o livro cair no chão com um baque surdo que acordaria todos os demais
objetos da mesma espécie, os quais, em uma revoada de folhas e capas desbotadas,
voariam das estantes como pássaros mudos, batendo rapidamente as capas à guisa
de asas. Por pudor, assim, apenas os tocava as lombadas. Alguns mantinham-se
com muito esforço, e isto apesar da aparência decrépita, costurados e inteiros.
Outros não possuíam nenhum vinco, nenhuma marca gordurosa de dedo humano,
nenhuma digital invisível há muito seca de um leitor anônimo. Distraíra-se
novamente; estacou, tampouco havia passos que soassem; o silêncio era o dos
livros — como o de um raio sem trovão: luminoso e apavorante, um estrondo
suspenso.
Foi
quando em um gesto galhofeiro ela tocou-lhe o ombro. Virou-se surpreso, quase
ofendido, encarando-a com a expressão abobalhada como a de um homem que apenas naquele
momento descobria que além dele existe outro ser vivo no mundo — e que
exuberante criatura lhe fazia companhia neste mundo deserto e árido, mundo que era
plano e infinito, pois
naquele momento ninguém seria capaz de convencê-lo de que o mundo é esférico — perdia-se
a vista e a si mesmo olhando para a infinitude de campo que era o único modo do
mundo existir e, ainda assim, os comportar. Assaltado por um ímpeto inesperado, teve vontade de
gritar-lhe “o que é
quer de mim, mulher?”.
E ela, assustada, com a mão apenas levemente tocando o tecido sobre o peito,
responder-lhe-ia “ora, tudo o que puder dar-me,
bobinho”, mas,
retrucaria olhando para as próprias mãos, estendendo-as espalmadas: “tudo o que eu tenho
são os meus sonhos e a minha crença inabalável no reino invisível dos homens
que não recuam frente ao impossível”. “Dê-me
os seus sonhos”,
ela diria. E ele hesitaria,
embora tenha esquecido
a palavra “não” no segundo que a conheceu. Diria “sim”, mesmo que ela pedisse para abrir as suas veias com os dentes e se
ajoelhasse sangrante. Ele sabia, soubera desde que entrou em seus olhos
escuros, que chegaria o dia em que ela lhe pediria isso.
Naquele
instante, em que tão
somente um lençol de ar separava-os, ele, masculino, imóvel, forte em sua fragilidade
anunciada na estupidez da boca, ela lhe pedia; ela, feminina, cheia de movimentos que eram sutis como o das feras
que são do silêncio e dos matos altos que é por onde podem atacar, que o olhava
como uma rainha que ordena, naquele instante ela lhe pedia mais do que amor —
pedia por sua vida. E quando lhe desse isto, ela chamaria com um riso
zombeteiro apenas de bondade. É que por vida ela queria dizer toda a inteira
eternidade — e isso nunca lhe coubera nas mãos; esse sempre será um dos sonhos
que, por ignorância, apesar de toda a sua juventude latejante, e também por um
nadinha de pudor e talvez de humildade, ele nunca saberá sonhar. Bondade mesmo
quando o que lhe daria seria tudo de si e até mais do que a si mesmo.
Dar-lhe-ia a Vida que tantas outras criaturas antes dele havia vivido e que
lhes animara os movimentos; lhe daria o fôlego que, antes de inflar seus
pulmões, fizera-o aos de uma besta pré-histórica, de um tigre dentes-de-sabre,
um lobo gigante, ou até mesmo, porque ele sempre fora também delicado e um
pouco grande demais, talvez delicado até mesmo por ser grande demais e por isso
o seu medo de quebrar as coisas, de uma daquelas libélulas que de tanto
oxigênio e flores eram enormes. Mas o que ela, por sua vez, lhe daria? … Penso
que um segredo…. Um segredo? Sim. E, de alguma forma, bastaria — era a coisa
mais última de si que ela algum dia poderia dar a alguém, a sua mais íntima
solidão de menina inevitável.
Somente
com o lençol de ar separando-os ele soube que, caso fosse tocá-la, teria antes de molhar a ponta dos dedos, como fazem algumas
pessoas antes de folhear um livro. É que, dela, a pele era como a do couro envelhecido, gasto e macio, como o da capa de alguns dos
livros a cercá-los como espectadores cegos e mudos. Ele adivinhava que, caso ela fosse livro, seria um de capa
de camurça vermelha com páginas de papiro, pois era frágil, embora durável, delicada, mas indubitavelmente sólida,
e decerto antiga, imemorial, egípcia, habitante de gloriosos impérios ancestrais onde só se
construíam, mesmo para os vivos, ao delta de um rio farto de águas brancas e
caniços dourados, pirâmides negras. O seu sangue corria à forma de hieróglifos
vermelhos sob a morena pele papirácea.
De
repente, a aguda e
insistente consciência das estrelas úmidas e faiscante acima deles e de toda a
escuridão envolvente que sitiava o edifício em que se encontravam atingiram-no, e um medo terrível
acometeu-o, pois ele não poderia agir ignorando que a noite é a sombra de Deus
caindo sobre o mundo,
e de que as estrelas são os olhos brancos, apurados e sensíveis dos seus anjos
espiando-os no alto. A ela isso não seria nenhum problema — é mais escura e
mais profunda do que a sombra de Deus. Este não era o momento do segredo, e,
por isso, respeitando-o em sua condição de homem encurralado, ela ofereceu-o um
chamado. E ele reconheceu.
Sob as
estrelas, ao seu olhar, foi invadido por uma vontade quase irreprimível de
lançar a cabeça para trás, arreganhar o lábio sobre os dentes expondo os
caninos agudos e assim uivar! E esse grito lúgubre, intestino, que seria o seu
primeiro e mais genuíno ato de liberdade é o que os libertaria. Mas ele não
pôde fazer isso — teve a impressão que caso provocasse fissuras nas paredes, despenhadeiros
partiriam o chão e todos os livros cairiam como raios sem trovão sobre suas
cabeças. Por isso, reconhecendo-o, fazendo também porque ela precisava
ardentemente de que ele sangrasse por ela e lhe desse a sua vida e os seus
sonhos, estendeu-lhe a sua mão.
Como quem agarra uma boia em alto-mar ou uma corda lançada pelo rosto acima do precipício, ele agarrou à sua mão — e os dois, jovens e levemente ébrios tanto pela sua juventude quanto pelas luzes tubulares que zumbiam quietas e atraíam os insetos, passaram a correr pelo mundo plano e infinito que se descerrava ante seus pés como campo interminável, onde se cultivavam perfeitas, mortas e frágeis margaridas de papel, e quase nunca mais pararam.
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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