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Funerária Dois Irmãos: Capítulo 01

Novela de Marcelo Caronesi
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FUNERÁRIA DOIS IRMÃOS - CAPÍTULO 01




 

            Estado de São Paulo. Algum ponto da Serra da Mantiqueira, 1956.

         É noite de lua cheia, mas algumas nuvens a escondem. A região é montanhosa. Bastante longe uma luz se move no meio das montanhas, na serra, ora ficando mais brilhante, ora desaparecendo. Na verdade, não é apenas um, mas dois pontos de luz. São os faróis de um veículo em movimento pela estreita estrada de terra.

         Pela sinuosa estrada, o ônibus modelo Grassi ano 1948, sobe e desce, segue por curvas, ora à direita, ora à esquerda. Bem desgastado e sujo, o veículo, por vezes, dá a impressão de que não conseguirá chegar ao seu destino; o motor parece querer fundir a qualquer instante. Após uma curva, bem distante, avista-se alguns pontos de luz do que parece ser uma pequena localidade. Uma pequena cidade encravada no meio da Serra da Mantiqueira, perdida no meio do nada. O motorista guia o veículo com bastante dificuldade, tentando fazer com que todos cheguem até o final da viagem.

         Pela janela do veículo, dá pra se observar as luzes da pequena cidade bem abaixo da serra. Por vezes, a mata fechada ou alguma ribanceira a esconde. Mas, conforme o tempo passa, e o velho ônibus desce a serra, a cidade vai ficando mais visível. Já é possível observar melhor os seus contornos, suas ruas, suas casas, a praça, a igreja. O veículo da Viação Mantiqueira faz o trajeto Taubaté – São Pedro da Cachoeira, tendo uma parada de 30 minutos na cidade de Santa Inês para que os passageiros possam tomar uma água, fazer suas necessidades, ou fumar um cigarro. Logo após sair de Taubaté todo o trecho é feito por estrada de terra. De Taubaté até Santa Inês, já no alto da serra, são 42 quilômetros; e de Santa Inês até o destino final, são mais 28 quilômetros. Fincada no alto da Serra da Mantiqueira, São Pedro da Cachoeira fica a apenas 17 quilômetros da divisa com Minas Gerais e, após mais 30 quilômetros, pode-se chegar a Itajubá.

         São Pedro da Cachoeira fica a cerca de 1300 metros de altitude. Cercada por montanhas e mata atlântica, a cidade de cerca de 11 mil habitantes tem poucos atrativos. Talvez as principais atrações que trazem gente de fora sejam as suas doze cachoeiras. Duas delas podem ser vistas a partir da estrada, vindo de Santa Inês. As cachoeiras mais famosas e visitadas são as do Rochedo e a da Toca, que têm boas piscinas naturais e não ficam tão distantes do núcleo urbano de São Pedro; além de terem trilhas bastante seguras, se comparadas a outras cachoeiras do município.

          São Pedro fica bem distante dos grandes e principais centros urbanos. O isolamento e o péssimo estado das estradas transformam os raros turistas em verdadeiros aventureiros. Tanto a estrada que sai do Vale do Paraíba, da cidade de Taubaté, quanto à que leva aos pequenos povoados mineiros e até a cidade de Itajubá são de estados lastimáveis. Mas não são apenas os turistas de espírito aventureiro que procuram a cidade. Tendo cinco pensões e duas pousadas, algumas pessoas, principalmente de cidades do Vale, como Taubaté, Caçapava, Jacareí, São José dos Campos, procuram São Pedro da Cacheira para descansar; principalmente os que preferem o campo à praia.        

         Enfim, o ônibus para em frente à praça, onde também fica a igreja matriz. Bem no meio dela há um coreto. Ela tem um jardim muito bem conservado e com vários bancos. Em seu entorno há pequenas casas com portas e janelas que dão para a rua e também sobrados em estilo colonial.

         Várias pessoas descem do velho ônibus, carregando malas, pacotes. Eis que surgem dois homens descendo do veículo, vestindo ternos pretos e chapéus fedora. Ambos carregam duas malas cada um. A diferença de altura deles é mínima, sendo que um tem 1,77 e o outro 1,72. Além disso, têm uma certa aparência fisionômica: peles claras, cabelos e olhos castanhos. Um deles aparenta ter cerca de 40 anos, enquanto o outro, mais baixo, não tem mais do que 25. Juntos, acendem seus cigarros.

         Todas as casas e pontos comerciais estão fechados e as pessoas que desceram do ônibus já estão sumindo, cada uma tomando um rumo, desaparecendo pelas ruas e vielas próximas. O motorista manobra o ônibus. Os dois homens caminham pela praça; seus nomes são Odílio e Odilon. Odílio é o mais velho, Odilon o homem mais jovem. Do outro lado da praça, numa esquina, as portas de um imóvel estão abertas e as luzes acesas. Chegando mais próximo, está pintado na parede, no alto: “BAR DO PEREIRA”. Odilon e Odílio entram.

         No recinto, cumprimentam e recebem cumprimentos de umas poucas pessoas que estão a beber e comer. O bar tem azulejos azuis, mesas e cadeiras de madeira, um balcão ao fundo e prateleiras com garrafas de bebidas expostas. Por trás do balcão há uma porta que leva até a cozinha. Eles escolhem uma mesa e se sentam. Rapidamente Pereira chega para atendê-los. Pereira é um homem baixinho, de uns 57 anos. Ele se dirige a Odilon, com o sotaque caipira típico da região, apertando-lhe a mão:

         – Ô meu amigo, de volta em São Pedro. É um prazer ver ocê de novo.

         – Tudo bem com o senhor, seu Pereira? – diz Odilon.

         – Tudo sim, seu Odilon. Esse é o seu irmão? – se dirigindo a Odílio.

         Odilon balança positivamente a cabeça.

         Pereira aperta a mão de Odílio.

         – É um prazer conhecer o irmão do amigo Odilon. Meu nome é Joaquim Aurélio Pereira, mas é só Pereira pros amigo.

         – Muito prazer seu Pereira.

         – E então, os amigo chegando de viagem agora; devem com fome. Se cêis quiserem eu posso ver com meu ajudante pra esquentar um carne de panela procêis? – completa Pereira.

         – Ô, Pereira, isso seria ótimo! – exclama Odilon. A viagem foi tranquila até Taubaté. Depois que pegamos esse ônibus ordinário, a viagem foi bem cansativa, principalmente depois de passar por Santa Inês.

         – Essa joça véia é assim mesmo; vive dando pobrema. Não basta a distância que é longe, eles ainda botam um troço véio desse. Bom, então eu vou lá adiantar a refeição docêis.

         Pereira saía, mas se volta de repente para eles, impedindo a aproximação de Odílio para cochichar algo para Odilon.

         – Cêis vão querer beber arguma coisa?

         – Se tiver daquela cachacinha mineira, ia ser ótimo, seu Pereira – pede Odilon.

         – Um instantinho que já chega a carne com um arrozinho, feijão e a cachaça mineira – diz Pereira sorrindo.

         Pereira se afasta, gritando para o lado da cozinha:

         – Ô, Alencar, esquenta aí aquela carne de panela pros amigos que acabaram de chegar.

         Tão logo Pereira se afasta, Odílio encosta o seu rosto no de Odilon para iniciar um diálogo discreto e silencioso, abafado pelo burburinho dos outros clientes do bar.

         – E a casa? Fica longe daqui?

         – É uma cidade pequena. Não fica a uma distância exagerada daqui do centro, não dá mais do quinze minutos de andada. Tive a precaução de escolher uma casa do jeito que você pediu: num ponto um pouco mais distante, com pouco movimento. Imagino que não vamos ter problemas nem com olhares curiosos e nem com fofocas – responde Odilon.

         – Fez bem, meu amigo. Isso é muito importante. Tomou as medidas pra saber sobre o delegado, a polícia?

         – Odílio, fiz exatamente o que combinamos; o mesmo em todas as cidades por que passei. Já te disse isso durante a viagem inteira. Logo você vai se convencer que São Pedro da Cachoeira foi a melhor escolha. Não tem com o que se preocupar.

         – Assim espero. Você sabe que nós não podemos cometer nenhuma falha. Não podemos chamar a atenção, e muito menos dar motivos pra levantarmos qualquer tipo de suspeitas.

         – O que combinamos? Uma cidade pequena, afastada, com pouco movimento de gente de fora. Confie em mim: ninguém vai desconfiar de nada.

         Pereira chega com uma bandeja. Nela estão pratos, copos, travessas e uma garrafa de aguardente. Ele coloca tudo sobre a mesa e recosta-se numa mesa de trás, sentando-se nela e mantendo uma das pernas no chão.

         – Então decidiram mesmo ficar em São Pedro? – questiona Pereira.

         – Pois é, rapaz – diz Odilon. Foi aquele negócio que tinha falado rapidamente com o senhor naquela ocasião. Eu e meu irmão crescemos numa cidade pequena perto de Sorocaba. Depois nosso pai decidiu levar toda a família pra São Paulo. Continuou no mesmo ramo de agência funerária. Crescemos trabalhando nisso.

         Odílio puxa um lenço e enxuga os olhos. Pereira aperta seu ombro.

         – A vida é assim mesmo, meu amigo.

         Odilon completa a história:

         – Nosso pai se foi há uns 15 anos, levado pela tuberculose. E nossa amada mãe se foi no final do ano que se passou. Sem termos arranjado casamento e tendo só um ao outro, não vimos outra opção, a não ser recomeçar a vida em outro lugar.

         – Perder nosso pai foi difícil, mas depois que a mãe também se foi, a tristeza forçou a gente a procurar um outro lugar pra tocar a vida – completa Odílio.

         – Mas São Pedro da Cachoeira é uma cidade pequena; aqui quase não tem empregos – diz Pereira.

         – Mas nós temos uma importância herdada. O suficiente pra montarmos uma casa funerária. E estar numa cidade onde vamos poder ter uma vida mais tranquila é muito importante, longe da movimentação de São Paulo e com rios pra pescar, cachoeiras pras horas de lazer – explica Odílio.

         Pereira se anima:

         – Então os amigo escolheram o lugar certo. São Pedro é uma cidade muito tranquila. Tem nove anos que não é registrado um único assassinato. Aqui cês podem dormir com janela e porta aberta. Acho até que cês vão estranhar a diferença de São Paulo.

         Odílio encara Odilon, demonstrando uma expressão irritada. Pereira não percebe, e continua com sua explicação:

         – E que coisa maluca foi aquele assalto do banco? Puxa vida; o maior assalto a banco da história! Me desculpem ocêis que são de lá, mas eu num queria morar numa cidade grande como São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte... Bom, eu vou lá ajudar o Alencar a limpar a cozinha. Cêis fiquem à vontade; quarqué coisa, é só chamar.

         Pereira sai. Odílio não consegue esconder a irritação.

         – Que história é essa, rapaz?

         – Eu explico tudo logo que a gente chegar em casa. Nós tamo um bocado cansados. Chegando lá, te explico tintim por tintim – justifica Odilon.

         – Mas você disse que o Pirão te falou...

         – Em casa, em casa – diz Odilon, fazendo um sinal baixando e erguendo a mão. Discutir isso agora pode terminar chamando a atenção. Vamo terminar de comer e beber tranquilamente.

         O restante da refeição não foi nada tranquilo. Enquanto Odílio não conseguia disfarçar a irritação, Odilon demonstrava um misto de desconfiança com intranquilidade, diante da reação áspera do irmão. Ora ele baixa a cabeça e come, encarando o prato, ora olha para Odílio pelo canto do olho.


NESTE SÁBADO, NÃO PERCA O SEGUNDO CAPÍTULO DA NOVELA LITERÁRIA "FUNERÁRIA DOIS IRMÃOS", AQUI NA WEBTV.


CENAS DO PRÓXIMO CAPÍTULO

          Odílio senta-se, acende um cigarro e encara Odilon.

         – Vamos lá. Abra o bico. Me explique aí, que tem coisa que não tá batendo com o que o Pirão te falou.

         – Aqui tem duas famílias que disputam por causa de política e de terras. De vez em quando morre um – justifica Odilon.

         – Odilon, eu não sou idiota. Eu escutei muito bem o que o seu Pereira disse. 

NÃO PERCA, NESTE SÁBADO, O SEGUNDO CAPÍTULO:

         – Eu só achando que o Pirão possa ter contado vantagem, Odilon.

         Odilon ri.

         – Contar vantagem de que? O que ele ia ganhar com isso? – questiona Odilon.

         – Respeito na cadeia, ora. O sujeito chega na cadeia e fica dizendo pra todo mundo que já matou oito pessoas, que era capanga de uma família na cidade que morava. Aquela história que você já repetiu dezenas de vezes.

         – Mas ele matou um sujeito numa desavença. E foi lá em São Paulo. Todo mundo sabe disso – retruca Odilon.

escrita por
Marcelo Caronesi

elenco
Odilon
Odílio
Tereza
delegado Ferreira
Onça-parda

tema
Canções de Assassinato 

intérprete
Confraria da Costa

direção
Carlos Mota

produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela

Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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