Alma de Menina
de Luisa Garbazza
A chuva intensa dos últimos dias trouxera uma inesperada onda de frio para a pequena cidade, no sertão das Minas Gerais, e os moradores, acostumados com o calor de fim de ano, saíam das casas para se aquecerem. O frio ainda era intenso naquela manhã, apesar de os raios do sol dourarem a rua por inteiro. Crianças brincavam, algumas pessoas varriam a calçada, outras conversavam animadamente. A alegre senhora que tomava sol à porta de seu sobrado, logo no início da rua, divisou ao longe uma pequena silhueta que se aproximava, a passos miúdos, na estrada poeirenta. Aos poucos, a senhora – que se chamava dona Aurora e era dona de vistas exemplares – pôde perceber melhor a pequena transeunte: uma menina miudinha, morena, de cabelos encaracolados. Trajava um vestido vermelho, já roto, que ia até o joelho, deixando as pernas desprotegidas. Os pezinhos magros portavam chinelos grandes, que batiam ruidosamente, a cada passo, levantando a poeira. Os braços, descobertos, a despeito do frio, estavam cruzados à frente do corpo abraçando um embrulho como quem segura um tesouro: bem apertado contra o peito. Se pudesse vê-la por dentro, dona Aurora enxergaria uma alma preocupada, com medo, mas esperançosa. A menina passou por ela de cabeça baixa, sem levantar o olhar, e continuou seu caminho. Dona Aurora, curiosa e pensativa, acompanhou a menina com o olhar até perdê-la de vista.
Era dezembro. A cidade fervia.
Ruas cheias, vitrines enfeitadas, o som delicado das músicas, um entra e sai
das lojas, a ansiedade das crianças: o Natal batia às portas. Lia, a pequena
menina, foi se aproximando vagarosamente do centro da cidade. Andou, de um lado
para outro, tímida e desconfiadamente. Procurou então um espaço livre no
passeio da praça, estendeu uma esteira velha e ali espalhou, delicadamente, o
conteúdo da caixa que carregava protegida naquele embrulho. Sentou-se, pois, na
beiradinha da esteira e ali permaneceu durante todo o dia. Aos poucos, a fome
apertava, mas reservou o único biscoito que possuía para o início da tarde. O
que aconteceria depois não saberia dizer.
O dia já ia avançado. A menina
olhava ora para seus pertences, ora para as pessoas. Com voz fraca, anunciava,
convidava, oferecia. Uma pequena multidão passara por ali; ninguém, no entanto,
deu importância aos seus chamados suplicantes. A alma começava a
entristecer-se. A esperança sucumbia. Em alguns momentos, aquele pequeno ser
teve a impressão de que estava invisível, mas a impaciência de uma senhora,
dando a entender que ela estava atrapalhando sua passagem, veio provar que
fazia parte sim daquele emaranhado de pessoas.
No final da tarde, já cansada,
Lia recolheu seu pequeno tesouro, guardou cuidadosamente na caixinha, reformou
o embrulho e preparou-se para o caminho de volta. Os passos agora eram
arrastados. O corpo cansado, enfraquecido pela falta de alimentos, fazia da
caminhada um fardo. Cada passo um pensamento, todos pesados demais para sua
mente tão inocente. Como chegar a casa e explicar à mãe o que acontecera?
– O que eu vou dizer à mamãe?
– sussurrou. A voz, quase sem forças, deu vazão aos sentimentos, e uma lágrima
furtiva rolou pelas faces desbotadas.
Liz conhecia a mãe. Sabia de seu jeito destemperado de levar a vida. Atribuía à filha todos os seus infortúnios. Pela manhã, ao entregar-lhe o embrulho, fizera mil recomendações. A última fê-la tremer por dentro, de susto e de medo: “Não volte aqui sem vender tudo, ouviu? Tudo mesmo!” – vociferou ao ver a menina se distanciar. Por isso a volta parecia tão medonha! Passou fora o dia todo e não conseguira vender nada. Nada mesmo! Os pensamentos perturbavam-lhe os sentidos. O aviso para não voltar sem o dinheiro fora claro demais. “O que vou fazer agora? O que minha mãe vai fazer comigo?” As lágrimas agora eram abundantes. Já não havia mais esperança. Sentia a alma enfraquecida, como se quisesse abandoná-la.
Nessa luta interior, a pequena
continuou a caminhada: olhos baixos, semblante triste, passos vagarosos e uma
constatação: havia ainda muito a caminhar. Foi nesse ritmo que dona Aurora, a
senhora alegre do início da rua, conseguiu vislumbrá-la novamente. Pensara
naquela cena o dia inteiro. Ficou imaginando quem seria aquela menina, aonde
iria, o que havia naquele embrulho que carregava com tanto cuidado!? Agora,
quase à boca da noite, a cena se repetia, quase tal e qual se lembrava. Sentia,
no entanto, os passos mais hesitantes e uma sensação de tristeza no ar. Dona
Aurora não suportou a curiosidade. Assim que a menina se aproximou um pouco
mais, tratou de gritar:
–Ô menina! Venha cá!
Absorta que estava, Lia parou
assustada e olhou timidamente para a mulher.
– Venha cá! O que você leva aí
nesse embrulho?
Já sem forças para continuar,
a menina se aproximou, sentou-se ao lado da mulher e, com a voz amedrontada,
contou-lhe sua história.
Dona Aurora ficou comovida com
as palavras da menina.
– Venha! Vou ajudar você –
disse, enquanto entravam na casa. – O que é mesmo que você tem aí para vender?
A pequena desfez o embrulho e
retirou a caixa. Soltou a tranca e levantou a tampa com cuidado, revelando-lhe
o conteúdo. Dona Aurora soltou uma exclamação:
– Ah! Que flores lindas!
– Minha mãe fez – revelou a
pequena.
A senhora pegou as flores.
Estava mesmo deslumbrada com elas. Ficou alguns segundos a sós com seus
pensamentos. Voltando à realidade, solicitou à menina:
– Já sei! Vamos! Ajude-me a colocá-las
adornando minha árvore de Natal.
As duas se revezavam na tarefa
de escolher a flor da cor perfeita para cada espaço. Todas as flores foram
necessárias. Cada uma teve um destino bem específico.
– Ficou maravilhoso! –
Exclamou a boa senhora. – Que cores lindas! Era o que estava faltando na minha
árvore! Obrigada, menina!
Entregou, então, o dinheiro à menina, que o guardou na caixa, onde antes estiveram as flores, e refez o embrulho com delicadeza. Agradeceu também à senhora e saiu.
Lia retomou a estrada
poeirenta. Parecia outra pessoa agora. Os passos leves, a cabeça erguida, um
suave sorriso no rosto. O pensamento tomava mil direções... Lembrava-se das
recomendações da mãe e da amargura em sua voz; da longa estrada que percorrera
e do dia exaustivo que suportara; do anjo que encontrou no final da rua; da
venda repentina de todas as flores que levava. O coração da pequena batia
descompassado. Era, no entanto, de pura alegria, lenitivo eficaz para afastar a
tristeza que lhe fizera companhia por tanto tempo. Agora tinha certeza de tudo
o que ia dizer à mãe. E a certeza maior: aquilo tudo fora um milagre; um
milagre de Natal. A alma da menina havia renascido.
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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