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Antologia O Mal que nos Habita: 1x03 - Carola

Conto de Veca
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Sinopse: O relato de uma noite de quinta-feira, no qual os lobos saem para fazer a sua caça e submetem os humanos incautos à situação de presa para o ataque final, com o objetivo de evolução da espécie fora da ordem natural.


Carola
de Veca


          Tunc!

Teria esquecido de fechar a porta da frente? Por que esse barulho estanque e seco? Tunc!

Não, não era possível, checara no mínimo três vezes o trinco da porta. Era uma cidade de interior, mas precisava garantir a segurança, ainda mais às noites de quinta-feira. Tinha certeza que estava trancada. Será que poderia ser a porta de tela? Estaria o vento tão forte a ponto de tirá-la do lugar, batendo-a contra a porta principal?

Não se ouvia barulho de vento, somente aquele uivo distante dos lobos que se disfarçavam de ventania para pegar os incautos e os tornarem parte da matilha, reduzindo os humanos a simples presas das feras.

Sabia das consequências da lua negra, que servia somente para enganá-los e que às quintas-feiras poderia ser a oportunidade real para que mais um componente adentrasse ao mundo dos canídeos.

Não havia uivo. Mas ela tinha ouvido o barulho da porta. Tinha vento?

Talvez fosse Carola que chegou atrasada. Não... Estava louca, pois tinha visto Carola junto à cozinha ao se deitar, tinha se despedido e alertado para não se esquecer de apagar a luz da área. Carola tomava leite. Será que era leite que tomava?

Teria Carola saído? Por que sairia? Já tinham trancado a casa. Não poderia ter feito isso com ela, afinal, já tinha idade. Mas Carola era jovem.

            Resolveu que tentaria dormir. E o barulho? Teria sido da sua cabeça? Tomou o remédio, isso a acalmaria. O barulho persistia em sua cabeça. Tunc! Acho que foi assim.

― Carola! Carooola! - Sem sinal de Carola. Talvez estivesse dormindo. Ou talvez tivesse saído.

Melhor levantar, sabia estar velha, porém poderia ir até a porta da frente. 'Posso, mas não quero, tenho medo. Não quero mais fazer isso!' Vivia há anos nessa casa e nunca tinha lhe acontecido coisa alguma, mas desaparecimentos na cidade já tinham sido relatados. O Sr. Jacó da venda nunca mais tinha visto sua sobrinha. Lucinda, mulher do Sr. Muriaé, também perdeu a afilhada. Até a neta de Carmelo, tinha sido perdida para a matilha, assim como todos os outros. Nunca mais foram vistas e tinham sido avisadas, não era para sair às quintas-feiras. Ela já tinha avisado a todos. Não acreditavam nela. Era velha!

Não se sai às quintas. Até hoje se culpava por ter lido aquele livro. Não se lê aquele livro.

Tunc! O barulho estava na sua cabeça. Não tinha vento. Vou levantar - e se apoiando nas paredes até encaixar corretamente seu pé já deformado no chinelo, acabou batendo o joelho no dossel da cama. Outro barulho seco. Tunc!

Abrindo a porta do quarto com dificuldade e lentidão olhou para baixo. Por que olhava para baixo? O que esperava encontrar?

Arrastando os pés, seguiu até a ponta da escada, tinha uma luz no andar de baixo. Não teria Carola apagado-a? Não gritaria mais o nome dela, poderia atiçar quem estivesse lá. Como teria entrado?

Por que tinha lido aquele livro? Sabia que seria atormentada durante sua vida. Mas também, já fazia anos que tinha feito. Não importa mais agora, sempre se arrependeu por ter lido. Será mesmo? Jamais souberam, quem sabia já morreu. Prestaria suas contas na hora certa, quando fosse chamada, por enquanto precisava lidar com o lobo, ou melhor, com o barulho.

Que lobo, estás louca? Não tem lobo. Como entraria um lobo em sua casa? Eles só atacam quem sai.

Carola não poderia ter saído. Ela sabe dos interesses dos lobos por mulheres, transformando-as em submissas reprodutoras, para que assim pudessem gerar aqueles que, se porventura sobrevivessem, atuariam tanto no mundo do dia, quanto da noite.

Por que faziam isso? Por que eles não ficavam somente no seu mundo de lobos? Diziam os que escreveram aquele livro, que elas os ajudariam a atuar no plano elemental. Que raio de plano seria esse? O livro explicava. Aquele plano que contribui, acelera, para que o animal vire humano. Era então que o ser consciente transformado em quase nada, praticamente uma enzima, auxiliaria para que o animal se tornasse humano rapidamente. Teria sentido essa definição? O livro dizia. Quem mandou ler o livro?

 Até o banquinho em que estava chacoalhou para que fosse impedida de praticar aquele ato, mas não se deu por vencida. Leu! Agora sabia tudo, e tendo sido aberta a porta do conhecimento, a serpente ceifou sua pele, misturando seu sangue ao veneno da sapiência. Já não era mais aceita no mundo dos crentes. Sabia demais, sabia além da conta, não era mais bem-vinda à realidade normal.

Os lobos, por instinto, sabiam que na escala evolutiva, não seriam os próximos humanos, o caminho era lento e jamais aceitaram essa letargia. Nunca aceitariam, e, precipitando o que deveria ser natural, tentavam ludibriar a escada da evolução da espécie. Quem ludibria aquele que tudo vê? Ninguém.

Os lobos tinham interesse em chegar ao nível dos humanos. Seriam os humanos tão mais evoluídos assim? Não importava. O que sabia era que os lobos eram astutos, tentando burlar a regra da reencarnação evolutiva, não se importando com o resultado. Tentaram até hoje, tentariam para sempre. Atormentavam mulheres pelas ruas, se poriam diante delas e lhes atacariam, simulando um coito agressivo e sedutor, reverenciando-as, mas invadindo seu mais profundo órgão para que produzissem criaturas temerárias, sendo as mais novas as de preferência, para gerarem na sua maestria aqueles fetos semi-humanos.

Decidiu que desceria as escadas e encararia o medo de frente. Já tinha decidido. Não importa tudo o que sabia, teria que lidar com o barulho seco. Tunc! Um degrau de cada vez, pendendo a cabeça para que pudesse adiantar os olhos ao corpo e assim, se antecipar a qualquer surpresa. Mas de que adiantava isso, se não via coisa alguma naquele escuro? Deveria ter acendido a luz, mas agora já estava no meio da escada, teria que subir novamente até o topo para conseguir alcançar o interruptor. Já não podia mais. Ascenderia assim que descesse.

Agora, através da janela não tão bem fechada pelo vidro, podia ver a cortina se balançar. Talvez tivesse vento ou esses animais somente disfarçavam para enganar? Comunicariam-se sem uivos? A porta permanecia fechada. Tinha certeza que tinha conferido o trinco por três vezes. Era velha, mas a cabeça funcionava.

Chegando ao último degrau, conseguiu tocar no trinco da porta antes que saísse da escada e, dobrando a maçaneta, essa girou. Destrancada!

Alguém entrou? Ou melhor, teria Carola saído?

Rondando a casa com os olhos e virando lentamente a cabeça analisou a sala, a cortina fazia um barulho assustador de tão baixo, precisava ir até a janela fechar o vidro antes de se preocupar com a porta. Virando-se diretamente para a cozinha viu a luz da área acesa. Carola nunca se lembrava de desligar. Ou teria alguém entrado?

Tomou coragem e foi até a janela, fechou o vidro por entre a cortina entreaberta, não olhou para fora, pois, o vento aumentara, o uivo em breve iniciaria a sua demonstração afinada de apavoramento avisando os requintes daquela noite de coito reprodutor.

O parto era doloroso para essas mulheres, as patas saiam primeiro na cavidade humana que não aceitava a forma quadrúpede, e as entranhas femininas não facilitavam o nascimento. Eram litros de sangue perdidos, a ponto de ao final, após as horas de dor que beiravam a insanidade, houvesse a morte pela dilaceração dos órgãos, pela anemia e pela afronta às regras da natureza. A vida da mãe era ceifada de forma proposital para dar ao filho, toda força humana que fosse necessária para que o embrião vingasse.

Sabia quem eram os que viviam dessa forma. Era visível aos olhos, o livro tinha lhe dado esse conhecimento. Pagaria pelo resto dos seus dias o castigo de ter descumprido a regra do não saber. Ela queria saber, e soube!

Um barulho de carro enguiçado que tentava dar a partida se fez ouvir. Estaria na esquina? Pela rapidez com que tentava sem sucesso girar a chave, se via a pressa da criatura em fuga. Não teria como, seria pega. Sabia disso.

Melhor seria abrir a porta e verificar se precisava de ajuda, não corria mais o risco de ser uma reprodutora na sua idade, mas podiam, vendo-a sem função para o fim desejado, estraçalha-la a ponto de não poder ser reconhecida em seu caixão.

A velocidade do barulho do motor em ignição frustrada aumentava, em breve sabia que reconheceria os urros femininos de pavor, que romperiam os uivos daquela noite, já que o vento fantasiado, aquietando-se, comunicava em seu silêncio que a missão já teria sido cumprida. A caça tinha sido abatida.

Precisava ajudar, era necessário. Aproveitou a maçaneta sem tranca, girou com cuidado na sua mão já não tão firme, olhou para trás e pensando na luz acesa, achou melhor cuidar disso depois. Abriu a porta com dificuldade com os dedos curvados e se deparando com a tela rente a sua face, olhou para ambos os lados, seu jardim estava intacto. Andaria com calma e tranquilidade até o portão.

Sentia-se arcada, como se houvessem travas em suas juntas. Já não era nova, mas conseguia se movimentar, agiria com cautela e atenção, sabendo dos seus limites.  Sabia da sua posição naquela corporação. Diante da dor nas mãos, abriu a porta de tela com a cabeça, devagar para não machucar e nem fazer barulho. Encaminhando-se para o portão pequeno defronte ao seu jardim, olhou para o lado e viu, já na sua linha de visão, o montinho de terra com grama crescida e tratada onde tinha enterrado aquele livro. Por que fora lê-lo?

A partida do carro não se completava, e a pressa da presa continuava, parecia ouvir-se o choro abafado de uma mulher em desespero. Precisava ajudar a finalizar essa situação e com as costas da mão, diante das dores nos dedos já transformados, tentou abrir o trinco do portão sem sucesso. Puxou uma força que não sabia ainda existente e saltou por sobre a grade baixa, o que a deixou assustada com tamanha astúcia.

Pela continuidade do barulho da partida interrompida pela falta de queima suficiente do combustível, pôde dirigir-se para a esquina com garantia que estava indo ao local certo. Seu corpo dolorido e mais arcado, não se sabe se pela vida ou pelo salto recente, dificultava os passos, mas lhe dava uma agilidade que não tinha até descer as escadas.

Chegando próximo ao barulho, ao invés de se dirigir diretamente ao carro, analisou a situação, e com um jeito sorrateiro escondeu-se atrás de um pequeno arbusto, averiguando o perigo. O que faria se visse algo? Teria condições de salvar-se?

Sentindo-se segura iniciou o caminho até o veículo, que já parecia afogado. Essa era a hora certa.

Dando a volta por trás, de forma traiçoeira, agora já tocando com as mãos o asfalto frio, chegou próximo da vítima. Viu e sentiu o cheiro dos cabelos compridos, negros e ondulados de Carola, que com a porta aberta gritava de pavor, sem saber se continuava tentando ou se saía correndo sozinha pela rua. Era um choro misturado com reza. Era tarde.

Por que teria saído? Tanto que alertou para que não fizesse. Mas agora o mal já estava feito, e ela não podia mais ajudar. Agora era executar o seu legado.

Chegou de forma lenta e roçando seu corpo junto ao metal gelado na lateral do carro, seu nariz transformado em focinho colaborava para adiantar o faro à visão. Viu-a sentada no banco do motorista. Assim que os olhos se cruzaram, Carola gritou. Por que grita, sou eu?

Ela não mais conseguia identificar a minha fisionomia, já não era mais eu, estava de quatro, peluda e com os dentes arreganhados. Não tinha mais o que fazer, agora era atacar.

Num salto súbito agrediu Carola e com o faro aguçado, roçou a boca que berrava de terror. Já não podia se certificar pela consciência, mas o seu faro jamais a enganou. Era realmente Carola.

Enquanto deslizava seu nariz preto e gelado pelo rosto que transpirava sem cessar, constatava que aquela era a presa certa para emprenhar a constituição da próxima a nascer em setenta dias, numa noite de transição entre os dois mundos.

Seu nascimento relembraria os que já foram e para que enfim, alguém de força suficiente viesse a assumir o seu papel no futuro. Não suportava mais, exercia-o há milênios, e até o momento não tinha preparado a presa certa para procriar aquela que lhe sucederia. Chegou sua hora de partir.

Carola tinha esse dom. As outras que conheceu eram fracas e franzinas. Carola, não, era robusta, vistosa, possuía ancas largas e uma postura decidida. Procriaria da forma desejada. Sua obra era apenas imobilizá-la.

Tinha sentido amor por Carola, não queria que sofresse e nem morresse, mas a juventude não deu atenção para os avisos de não sair às quintas-feiras. Insistiu, descumpriu, arriscou-se. Agora era tarde.

Sua obra estava pronta, seria o seu último ato. Num rápido arranhão, feriu o rosto da presa, fazendo-a cair desmaiada de pavor e dor, estendendo-se o corpanzil bem feito no passadiço, cessando o grito de horror. Sua pele estava molhada de suor do pânico vivido, o que aguçava ainda mais o instinto viril daquele que viria romper os preceitos naturais da mistura de espécies.

De pé sobre a vítima, demonstrando vitória, pisou com a pata dianteira sobre o rosto ensanguentado de Carola e com um uivo alto demonstrou o trabalho bem feito e acabado, deixando para o reprodutor somente a atuação masculina sobre aquele corpo imobilizado.

Os subalternos que respeitavam a rainha foram chegando com a mesma melodia que aterrorizava a noite de terror. Aproximaram-se, cheiraram de forma calma e tranquila o sangue que ainda escorria do corpo adormecido. Rasgaram com os dentes a roupa da fêmea humana, causando escoriações e aumentando o odor do sangue para que o reprodutor, com passos lentos e seu faro bem apurado, chegasse e, empurrando a rainha para o lado, lambesse e cheirasse a presa, podendo enfim, fazer com que sua cria pudesse através daquele corpo ser gerada.

Todos se afastaram assistindo à consumação do ato. A rainha não ficou para o espetáculo nefasto, se afastou lentamente, após a excelência do trabalho realizado, sabendo que ao retornar para a sua casa, talvez sua vida fosse ceifada, diante das centenas de anos que já exercia seu papel.

            A filha de Carola assumiria seu cargo, a mãe, no entanto, morreria, não suportaria as feridas do ataque para concepção forçada nem o parto a ser executado brevemente.

Onde se esconderia? Já não era mais seu papel se preocupar com Carola, era seu papel morrer, deixando para a próxima geração comandar a alcateia de maneira firme.

Pulou o portão de volta fraca e cansada, a porta que não deveria estar destrancada, agora ficaria, sua casa receberia Carola até sua morte prematura na luz que daria àquele ser quase humano.

Cabia a ela somente deitar e esperar a morte chegar. Jazeria humana ou como loba? Quem saberia dizer? Mas precisava de um último ato, precisava deixar uma pista de onde a substituta, a criança-loba, conquistaria mais de mil anos de vida no comando dos lobos e nos rituais de quinta.

Decidiu, antes de deitar para morte, raspar com a pata suja de sangue o jardim de grama crescida, deixando à mostra o livro enterrado há muitos séculos e que faria da filha de Carola a substituta que tanto aguardava.

Ela cometerá o mesmo erro, e fungando pela última vez deitou-se sobre a capa preta de couro, sentindo vibrar-lhe as fibras ao constatar em sua certeza de que a sucessora seria dominada pela ânsia de conhecer o proibido, lendo as letras que a levariam aos seus únicos dois caminhos, de sucesso ao executar seu reinado milenar junto à matilha e ao martírio de viver sozinha mais de mil anos entre mundo consciente e animal. 

Conto escrito por
Veca

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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