Carola
de Veca
Tunc!
Teria
esquecido de fechar a porta da frente? Por que esse barulho estanque e seco? Tunc!
Não,
não era possível, checara no mínimo três vezes o trinco da porta. Era uma
cidade de interior, mas precisava garantir a segurança, ainda mais às noites de
quinta-feira. Tinha
certeza que estava trancada. Será que poderia ser a porta de tela? Estaria o
vento tão forte a ponto de tirá-la do lugar, batendo-a contra a porta
principal?
Não se
ouvia barulho de vento, somente aquele uivo distante dos lobos que se
disfarçavam de ventania para pegar os incautos e os tornarem parte da matilha,
reduzindo os humanos a simples presas das feras.
Sabia
das consequências da lua negra, que servia somente para enganá-los e que às
quintas-feiras poderia ser a oportunidade real para que mais um componente
adentrasse ao mundo dos canídeos.
Não
havia uivo. Mas ela tinha ouvido o barulho da porta. Tinha vento?
Talvez
fosse Carola que chegou atrasada. Não... Estava louca, pois tinha visto Carola
junto à cozinha ao se deitar, tinha se despedido e alertado para não se
esquecer de apagar a luz da área. Carola tomava leite. Será que era leite que
tomava?
Teria
Carola saído? Por que sairia? Já tinham trancado a casa. Não poderia ter feito
isso com ela, afinal, já tinha idade. Mas Carola era jovem.
Resolveu
que tentaria dormir. E o barulho? Teria sido da sua cabeça? Tomou o remédio,
isso a acalmaria. O barulho persistia em sua cabeça. Tunc! Acho que foi assim.
―
Carola! Carooola! - Sem sinal de Carola. Talvez
estivesse dormindo. Ou talvez tivesse saído.
Melhor
levantar, sabia estar velha, porém poderia ir até a porta da frente. 'Posso, mas não quero, tenho medo. Não quero
mais fazer isso!' Vivia há anos nessa casa e nunca tinha lhe acontecido
coisa alguma, mas desaparecimentos na cidade já tinham sido relatados. O Sr. Jacó da venda nunca
mais tinha visto sua sobrinha. Lucinda, mulher do Sr. Muriaé, também perdeu a
afilhada. Até a neta de Carmelo, tinha sido perdida para a matilha, assim como
todos os outros. Nunca mais foram vistas e tinham sido avisadas, não era para
sair às quintas-feiras. Ela já tinha avisado a todos. Não acreditavam nela. Era
velha!
Não se
sai às quintas. Até hoje se culpava por ter lido aquele livro. Não se lê aquele
livro.
Tunc! O
barulho estava na sua cabeça. Não tinha vento. Vou levantar - e se apoiando nas paredes até encaixar corretamente
seu pé já deformado no chinelo, acabou batendo o joelho no dossel da cama.
Outro barulho seco. Tunc!
Abrindo
a porta do quarto com dificuldade e lentidão olhou para baixo. Por que olhava
para baixo? O que esperava encontrar?
Arrastando
os pés, seguiu até a ponta da escada, tinha uma luz no andar de baixo. Não
teria Carola apagado-a? Não gritaria mais o nome dela, poderia atiçar quem
estivesse lá. Como teria entrado?
Por
que tinha lido aquele livro? Sabia que seria atormentada durante sua vida. Mas
também, já fazia anos que tinha feito. Não importa mais agora, sempre se
arrependeu por ter lido. Será mesmo? Jamais souberam, quem sabia já morreu.
Prestaria suas contas na hora certa, quando fosse chamada, por enquanto
precisava lidar com o lobo, ou melhor, com o barulho.
Que
lobo, estás louca? Não tem lobo. Como entraria um lobo em sua casa? Eles só
atacam quem sai.
Carola
não poderia ter saído. Ela sabe dos interesses dos lobos por mulheres,
transformando-as em submissas reprodutoras, para que assim pudessem gerar
aqueles que, se porventura sobrevivessem, atuariam tanto no mundo do dia,
quanto da noite.
Por
que faziam isso? Por que eles não ficavam somente no seu mundo de lobos? Diziam
os que escreveram aquele livro, que elas os ajudariam a atuar no plano elemental. Que raio de plano seria
esse? O livro explicava. Aquele plano que contribui, acelera, para que o animal
vire humano. Era então que o ser consciente transformado em quase nada,
praticamente uma enzima, auxiliaria para que o animal se tornasse humano
rapidamente. Teria sentido essa definição? O livro dizia. Quem mandou ler o livro?
Até o banquinho em que estava chacoalhou para
que fosse impedida de praticar aquele ato, mas não se deu por vencida. Leu!
Agora sabia tudo, e tendo sido aberta a porta do conhecimento, a serpente
ceifou sua pele, misturando seu sangue ao veneno da sapiência. Já não era mais
aceita no mundo dos crentes. Sabia demais, sabia além da conta, não era mais bem-vinda à realidade
normal.
Os
lobos, por instinto, sabiam que na escala evolutiva, não seriam os próximos
humanos, o caminho era lento e jamais aceitaram essa letargia. Nunca aceitariam,
e, precipitando o que deveria ser natural, tentavam ludibriar a escada da
evolução da espécie. Quem ludibria aquele que tudo vê? Ninguém.
Os
lobos tinham interesse em chegar ao nível dos humanos. Seriam os humanos tão mais evoluídos assim? Não importava. O que
sabia era que os lobos eram astutos, tentando burlar a regra da reencarnação
evolutiva, não se importando com o resultado. Tentaram até hoje, tentariam para
sempre. Atormentavam mulheres pelas ruas, se poriam diante delas e lhes
atacariam, simulando um coito agressivo e sedutor, reverenciando-as, mas
invadindo seu mais profundo órgão para que produzissem criaturas temerárias,
sendo as mais novas as de preferência, para gerarem na sua maestria aqueles
fetos semi-humanos.
Decidiu
que desceria as escadas e encararia o medo de frente. Já tinha decidido. Não
importa tudo o que sabia, teria que lidar com o barulho seco. Tunc! Um degrau de cada vez, pendendo a
cabeça para que pudesse adiantar os olhos ao corpo e assim, se antecipar a
qualquer surpresa. Mas de que adiantava isso, se não via coisa alguma naquele
escuro? Deveria ter acendido a luz, mas agora já estava no meio da escada,
teria que subir novamente até o topo para conseguir alcançar o interruptor. Já
não podia mais. Ascenderia assim que descesse.
Agora,
através da janela não tão bem fechada pelo vidro, podia ver a cortina se
balançar. Talvez tivesse vento ou esses animais somente disfarçavam para
enganar? Comunicariam-se sem uivos? A porta permanecia fechada. Tinha certeza
que tinha conferido o trinco por três vezes. Era velha, mas a cabeça
funcionava.
Chegando
ao último degrau, conseguiu tocar no trinco da porta antes que saísse da escada
e, dobrando a maçaneta, essa girou. Destrancada!
Alguém
entrou? Ou melhor, teria Carola saído?
Rondando
a casa com os olhos e virando lentamente a cabeça analisou a sala, a cortina
fazia um barulho assustador de tão baixo, precisava ir até a janela fechar o
vidro antes de se preocupar com a porta. Virando-se diretamente para a cozinha
viu a luz da área acesa. Carola nunca se lembrava de desligar. Ou teria alguém
entrado?
Tomou
coragem e foi até a janela, fechou o vidro por entre a cortina entreaberta, não
olhou para fora, pois,
o vento aumentara, o uivo em breve iniciaria a sua demonstração afinada de
apavoramento avisando os requintes daquela noite de coito reprodutor.
O
parto era doloroso para essas mulheres, as patas saiam primeiro na cavidade
humana que não aceitava a forma quadrúpede, e as entranhas femininas não
facilitavam o nascimento. Eram litros de sangue perdidos, a ponto de ao final,
após as horas de dor que beiravam a insanidade, houvesse a morte pela
dilaceração dos órgãos, pela anemia e pela afronta às regras da natureza. A
vida da mãe era ceifada de forma proposital para dar ao filho, toda força
humana que fosse necessária para que o embrião vingasse.
Sabia
quem eram os que viviam dessa forma. Era visível aos olhos, o livro tinha lhe
dado esse conhecimento. Pagaria pelo resto dos seus dias o castigo de ter
descumprido a regra do não saber. Ela queria saber, e soube!
Um
barulho de carro enguiçado que tentava dar a partida se fez ouvir. Estaria na esquina? Pela rapidez com que
tentava sem sucesso girar a chave, se via a pressa da criatura em fuga. Não
teria como, seria pega. Sabia disso.
Melhor
seria abrir a porta e verificar se precisava de ajuda, não corria mais o risco
de ser uma reprodutora na sua idade, mas podiam, vendo-a sem função para o fim
desejado, estraçalha-la a ponto de não poder ser reconhecida em seu caixão.
A
velocidade do barulho do motor em ignição frustrada aumentava, em breve sabia
que reconheceria os urros femininos de pavor, que romperiam os uivos daquela
noite, já que o vento fantasiado, aquietando-se, comunicava em seu silêncio que
a missão já teria sido cumprida. A caça tinha sido abatida.
Precisava
ajudar, era necessário. Aproveitou a maçaneta sem tranca, girou com cuidado na
sua mão já não tão firme, olhou para trás e pensando na luz acesa, achou melhor
cuidar disso depois. Abriu a porta com dificuldade com os dedos curvados e se
deparando com a tela rente a sua face, olhou para ambos os lados, seu jardim
estava intacto. Andaria com calma e tranquilidade até o portão.
Sentia-se
arcada, como se houvessem travas em suas juntas. Já não era nova, mas conseguia
se movimentar, agiria com cautela e atenção, sabendo dos seus limites. Sabia da sua posição naquela corporação.
Diante da dor nas mãos, abriu a porta de tela com a cabeça, devagar para não
machucar e nem fazer barulho. Encaminhando-se para o portão pequeno defronte ao
seu jardim, olhou para o lado e viu, já na sua linha de visão, o montinho de
terra com grama crescida e tratada onde tinha enterrado aquele livro. Por que
fora lê-lo?
A
partida do carro não se completava, e a pressa da presa continuava, parecia
ouvir-se o choro abafado de uma mulher em desespero. Precisava ajudar a
finalizar essa situação e com as costas da mão, diante das dores nos dedos já
transformados, tentou abrir o trinco do portão sem sucesso. Puxou uma força que
não sabia ainda existente e saltou por sobre a grade baixa, o que a deixou
assustada com tamanha astúcia.
Pela
continuidade do barulho da partida interrompida pela falta de queima suficiente
do combustível, pôde dirigir-se para a esquina com garantia que estava indo ao
local certo. Seu corpo dolorido e mais arcado, não se sabe se pela vida ou pelo
salto recente, dificultava os passos, mas lhe dava uma agilidade que não tinha
até descer as escadas.
Chegando
próximo ao barulho, ao invés de se dirigir diretamente ao carro, analisou a
situação, e com um jeito sorrateiro escondeu-se atrás de um pequeno arbusto,
averiguando o perigo. O que faria se visse algo? Teria condições de salvar-se?
Sentindo-se
segura iniciou o caminho até o veículo, que já parecia afogado. Essa era a hora
certa.
Dando
a volta por trás, de forma traiçoeira, agora já tocando com as mãos o asfalto
frio, chegou próximo da vítima. Viu e sentiu o cheiro dos cabelos compridos,
negros e ondulados de Carola, que com a porta aberta gritava de pavor, sem
saber se continuava tentando ou se saía correndo sozinha pela rua. Era um choro
misturado com reza. Era tarde.
Por
que teria saído? Tanto que alertou para que não fizesse. Mas
agora o mal já estava feito, e ela não podia mais ajudar. Agora era executar o
seu legado.
Chegou
de forma lenta e roçando seu corpo junto ao metal gelado na lateral do carro,
seu nariz transformado em focinho colaborava para adiantar o faro à visão.
Viu-a sentada no banco do motorista. Assim que os olhos se cruzaram, Carola
gritou. Por que grita, sou eu?
Ela
não mais conseguia identificar a minha fisionomia, já não era mais eu, estava
de quatro, peluda e com os dentes arreganhados. Não tinha mais o que fazer,
agora era atacar.
Num
salto súbito agrediu Carola e com o faro aguçado, roçou a boca que berrava de
terror. Já não podia se certificar pela consciência, mas o seu faro jamais a
enganou. Era realmente Carola.
Enquanto
deslizava seu nariz preto e gelado pelo rosto que transpirava sem cessar,
constatava que aquela era a presa certa para emprenhar a constituição da
próxima a nascer em setenta dias, numa noite de transição entre os dois mundos.
Seu
nascimento relembraria os que já foram e para que enfim, alguém de força
suficiente viesse a assumir o seu papel no futuro. Não suportava mais,
exercia-o há milênios, e até o momento não tinha preparado a presa certa para
procriar aquela que lhe sucederia. Chegou sua hora de partir.
Carola
tinha esse dom. As outras que conheceu eram fracas e franzinas. Carola, não,
era robusta, vistosa, possuía ancas largas e uma postura decidida. Procriaria
da forma desejada. Sua obra era apenas imobilizá-la.
Tinha
sentido amor por Carola, não queria que sofresse e nem morresse, mas a
juventude não deu atenção para os avisos de não sair às quintas-feiras.
Insistiu, descumpriu, arriscou-se. Agora era tarde.
Sua
obra estava pronta, seria o seu último ato. Num rápido arranhão, feriu o rosto da presa,
fazendo-a cair desmaiada de pavor e dor, estendendo-se o corpanzil bem feito no
passadiço, cessando o grito de horror. Sua pele estava molhada de suor do
pânico vivido, o que aguçava ainda mais o instinto viril daquele que viria
romper os preceitos naturais da mistura de espécies.
De pé
sobre a vítima, demonstrando vitória, pisou com a pata dianteira sobre o rosto
ensanguentado de Carola e com um uivo alto demonstrou o trabalho bem feito e
acabado, deixando para o reprodutor somente a atuação masculina sobre aquele
corpo imobilizado.
Os
subalternos que respeitavam a rainha foram chegando com a mesma melodia que
aterrorizava a noite de terror. Aproximaram-se, cheiraram de forma calma e
tranquila o sangue que ainda escorria do corpo adormecido. Rasgaram com os
dentes a roupa da fêmea humana, causando escoriações e aumentando o odor do
sangue para que o reprodutor, com passos lentos e seu faro bem apurado,
chegasse e, empurrando a rainha para o lado, lambesse e cheirasse a presa,
podendo enfim, fazer com que sua cria pudesse através daquele corpo ser gerada.
Todos
se afastaram assistindo à consumação do ato. A rainha não ficou para o
espetáculo nefasto, se afastou lentamente, após a excelência do trabalho
realizado, sabendo que ao retornar para a sua casa, talvez sua vida fosse
ceifada, diante das centenas de anos que já exercia seu papel.
A
filha de Carola assumiria seu cargo, a mãe, no entanto, morreria, não
suportaria as feridas do ataque para concepção forçada nem o parto a ser
executado brevemente.
Onde se esconderia? Já
não era mais seu papel se preocupar com Carola, era seu papel morrer, deixando
para a próxima geração comandar a alcateia de maneira firme.
Pulou o portão de volta
fraca e cansada, a porta que não deveria estar destrancada, agora ficaria, sua
casa receberia Carola até sua morte prematura na luz que daria àquele ser quase
humano.
Cabia a ela somente
deitar e esperar a morte chegar. Jazeria
humana ou como loba? Quem saberia dizer? Mas precisava de um último ato, precisava
deixar uma pista de onde a substituta, a criança-loba, conquistaria mais de mil
anos de vida no comando dos lobos e nos rituais de quinta.
Decidiu, antes de deitar
para morte, raspar com a pata suja de sangue o jardim de grama crescida,
deixando à mostra o livro enterrado há muitos séculos e que faria da filha de
Carola a substituta que tanto aguardava.
Ela
cometerá o mesmo erro, e fungando pela última vez deitou-se sobre a capa preta de
couro, sentindo vibrar-lhe as fibras ao constatar em sua certeza de que a
sucessora seria dominada pela ânsia de conhecer o proibido, lendo as letras que
a levariam aos seus únicos dois caminhos, de sucesso ao executar seu reinado milenar
junto à matilha e ao martírio de viver sozinha mais de mil anos entre mundo
consciente e animal.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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