A Cadela Negona
de Fábio Alves Ferreira Leite
Ele a
recebeu de braços abertos. Neste dia, um sorriso diferente veio ao semblante,
ao rosto enrugado de Juvenal. Quem via a grande recepção, percebia que o dia
dele fora ganho por muitos prêmios.
Os
fortes abraços também a animava. Negona sorria na maneira dela, e ainda
mostrava os dentes. Os olhos mexiam-se sem parar; mas, necessariamente, Negona
olhava para um lado e outro, abarcando todos, ali presentes, naquele que seria
o encontro da vida de ambos.
Ela,
esperançosa e feliz por ter agora um companheiro de todos os dias, tinha
certeza que a nova vida estaria a trazer lindas emoções e passeios a dois. Juvenal
sentia o mesmo, pois há tanto tempo não tinha uma alegria tão simbólica aponto
de esquecer alguns dos seus problemas e solidão.
Agora,
Juvenal teria razões para viver. Agora, distrairia o tempo com ela, e cuidaria,
como se fosse sua própria carne, como se já a conhecesse há muito tempo; porém,
apenas veio conhecê-la naquele momento, porque não sabia da sua existência; mas
alguém os fez ter um belíssimo encontro.
O sol
passaria a brilhar mais forte no sentido de que uma nova vida faria parte da
dele.
Juvenal
conheceu outra pessoa antes dela, casou, teve dois filhos, contudo, com o
tempo, aquele relacionamento foi se desgastando. Os laços não se sustentaram
como deveriam, até que um dia, ele se separou. Juvenal tem um bom emprego,
convenhamos. Comprou a casa em que morava com a família, porém, com a
separação, teve que dar tudo para a ex-mulher e os filhos.
Os
filhos ficaram imensamente tristes, a mulher nem tanto, e Juvenal passou uns
meses quase em depressão; por esse motivo, quase perdeu o emprego que, por sinal,
é muito bom. Ele ficou apenas com o carro. Alugou uma casa e foi viver só.
Depois de um ano, a ex-mulher vendeu a casa e foi embora para outro Estado,
perto da família dela. Os filhos a acompanharam, uma vez que eram ainda
pequenos.
Para
acalmar o desespero e o sofrimento, Juvenal aliviava-os com a visita dos
pequenos, mas agora que eles estavam longe, o que seria? Pensava
constantemente. Muitas vezes, saía para passear, mas não conseguia sentir-se
bem, pois faltava alguma coisa, e essa coisa era a presença de alguém, da
família. Lembrava-se que sempre passeava com eles, os filhos e a mulher e,
assim, chorava com as inúmeras lembranças.
Quando
tentava distrair-se, fazendo caminhada, às vezes não conseguia. Via muitas
famílias; via crianças com os seus respectivos pais. Sentava num banco,
abaixava a cabeça, colocava os cotovelos sobre os joelhos, as mãos sobre o
rosto, e começava a chorar, bem baixinho. Em seguida, respirava fundo,
levantava, criava forças dentro de si e continuava a correr.
Em
casa, a solidão era sua amante. Nos fins de semanas, a situação piorava, pois
não tinha ninguém para conversar, olhar, brincar, cuidar. Era só ele e ele de
novo. Já fazia alguns meses que Juvenal estava nesse estado. Pensava até em ir
consultar um psicólogo. Bom mesmo se estivesse ido, talvez assim não tivesse
feito o que fez.
Mas
pensava também que a situação só ia melhorar quando encontrasse uma distração,
pequena que fosse. Precisava se importar com alguém além dele mesmo, porque os
filhos estavam longe, e sabia que os pequenos estavam em boas mãos. Falava de
vez em quando com eles, por telefone.
Anos se
passaram, até que finalmente conheceu Negona. Não esperava que isso fosse
acontecer. Mas o destino tinha planos para os dois. O destino sabia que ele
precisava dela e ela precisava dele, pelo menos por um tempo.
Foram alguns
dias de glórias que os dois tiveram. Um relacionamento agradável. As pessoas
elogiavam quando os viam juntos, andando pelo bairro. Ele esqueceu que estava
só. Ela preencheu os dias de solidão. Agora, Juvenal tinha com quem conversar e
cuidar. Os passeios durante os dias de folga e os fins de semanas, eram outros,
completamente diferentes.
Saíam
os dois para fazer caminhada, e isso se repetia todos os dias, à tardinha. Ele
levava água para saciar a sede de ambos. Algumas pessoas paravam e ficavam a
olhar para ela, enquanto os pombinhos caminhavam. Os amigos mais próximos de
Juvenal estavam muitíssimos felizes com isso, pois o semblante dele havia mudado
bastante. O comportamento de Juvenal fez com que os conhecidos se admirassem.
Pelo visto, a companhia de Negona trouxera muitos benefícios à saúde dele. Ela
era bela, simpática, carismática e alegre o tempo todo. Ao que parece, é que
ela era de outro planeta, pois não tinha dia ruim.
Negona
dançava para ele, quando os dois estavam no quarto. Tentava cantar, tentava
apenas, mas sua voz não era das melhores. Mas ele gostava. Ela levava o chinelo
para ele calçar, levava cuecas, e demais roupas. Pegava do chão os calções que
ele jogava por descuido ou por querer mesmo. Ela tentava mudar um pouco as
coisas. Ele a admirava ainda mais. Juvenal comprava bebida e tomava em casa, em
vez de ficar no bar, até altas horas, porque muitas vezes, no seu
desequilíbrio, ele brigava na rua, nos bares, enfim. Ela não ingeria álcool, óbvio,
mas observava-o em casa, na cama, enchendo a cara. Depois ele dormia.
Às
vezes, Juvenal e Negona saíam para fazer compras, mas Juvenal nunca a deixava
sair do carro, ela ficava mesmo no carro, até porque as compras eram poucas e
rápidas.
O
relacionamento deles era de dar inveja. Era um relacionamento saudável, de
respeito e cordialidade. Depois que Negona chegou a casa, Juvenal nunca mais
pensou em outra pessoa, porque ela completou-o. Negona tinha o dom de fazê-lo
feliz, que nem ele mesmo entendia como seria possível tal proeza.
Mas
como todo relacionamento tem suas provações, certo dia, Juvenal bebeu tanto que
a desconheceu como companheira. De repente, no quarto, ele começou a chutá-la.
Negona não entendeu a questão por si só. Juvenal quebrou a TV do quarto, e
gritava com ela. Pegou uma lata de cerveja e jogou sobre ela, acertando-a na
cabeça. Negona sentiu medo, e saiu correndo do quarto. Poderia revidar, mas o
amava muito, e também se lembrava dos meses que foram felizes, mas agora, o
companheiro, alcoolizado, a desprezava. Ela não entendia de fato. Ela que tanto
o animou e o fez feliz!
Juvenal
levantou-se cambaleando, parecendo que havia levado um tiro nas pernas, e saiu
segurando-se nas paredes, para não cair. Negona estava na cozinha, com o
coração a sair pela boca. Ele gritava ainda mais alto. Juvenal chegou à
cozinha, pegou um copo de vidro, que estava em cima da mesa, e jogou sobre ela,
acertando às suas costas; Negona saiu da cozinha para o quintal, aos gritos; o
copo se quebrou ao cair no azulejo.
Juvenal
caiu por cima dos cacos de vidros e se cortou. Negona não sabia o que fazer.
Ele sangrava. O piso da cozinha ficou vermelho de sangue. Os vizinhos ouviram
os gritos e foram até a casa. Viram a cena triste. Em seguida, levaram Juvenal
para o hospital. Ele passou alguns dias, lá, em recuperação, pois os cortes
foram fundos. Os vizinhos cuidaram de Negona; tentavam acalmá-la, mas ela
sentia a falta dele, mesmo maltratando-a sem merecer.
No
hospital, Juvenal pedia
que a trouxessem,
pois queria vê-la. Os vizinhos a levaram. Chegando ao quarto, Negona animou-se.
Juvenal pegou na cabeça dela, nas mãos, e acariciava-a. No outro dia, este teve
alta e foi para casa. Passadas algumas semanas, Juvenal estava “bem melhor”.
Negona
percebeu que o companheiro havia mudado, pois quando saía, não a levava. Negona
ficava o tempo todo trancada, praticamente. Era como se Juvenal não precisasse
mais dela, que esquecera os momentos bons que tiveram.
Certo
dia, Juvenal chegou do serviço, agitado, puxou Negona pelo pescoço, colocou-a
no carro e saíram. Negona não entendeu bem o que estava acontecendo, mas o medo
a acompanhava, pois Juvenal parecia transformado. Ele não dizia nada. Quando
chegaram num bairro próximo, perto de uma pequena ponte que separava uma rua da
outra, ele parou o carro. Negona ficou com mais medo ainda.
Juvenal
pensou um pouco, pôs a mão esquerda na cabeça, e olhou para o horizonte, a sua
frente. Em seguida, desceu rapidamente. Havia ali por perto algumas pessoas.
Negona estava no banco de trás, mas, todo passeio, ela sentava no banco da
frente.
Sem
mais nem menos, Juvenal tentou puxá-la para fora do carro, no entanto, Negona
resistiu; após uns segundos, ele pegou-a pelas pernas e ela continuava a não
querer sair do carro, pois temia o pior. De tanta raiva, Juvenal pegou um
pedaço de madeira que tinha próximo da ponte e começou a espancá-la dentro do
carro. Não vendo outra saída, Negona teve que sair, aos gritos. Juvenal deu
várias pancadas na parte de trás dela, da cintura para baixo, que Negona não
conseguia caminhar mais. Juvenal entrou no carro, imediatamente, e saiu. Negona
ficou lá, jogada ao meio-fio. Chorava. Não andava mais como antes, ao que
parece, sua pata traseira havia sido fraturada.
Os
transeuntes que passavam a pé perceberam o ocorrido e tiveram dó; levaram-na
para uma calçada. De repente, alguns vizinhos se aglomeram ao redor de Negona.
Ela abria a boca de dor, seus olhos lacrimejavam, e lágrimas saíam. As pessoas
se perguntavam quem teria sido o miserável da vez, para praticar tamanha
crueldade. Ninguém sabia de fato, apenas viram um carro preto, parado em cima
da pequena ponte, e em seguida uns gritos, e a encontraram deitada em estado
triste, precisando de ajuda. Negona tinha pêlos pretos e lisos, olhos pretos e
vivos.
Um
desses vizinhos disse que ia cuidar de Negona. Pegou-a e levou-a para casa.
Negona passava o dia inteiro deitada, e comia demoradamente; às vezes, nem
comia, não sentia fome nenhuma, pois ainda estava com o trauma da violência que
sofrera.
Meses
depois, Negona foi melhorando. Já caminhava devagar. O novo companheiro se
animava por vê-la mais feliz, mas Negona sabia que nada seria como antes.
Ficaram sequelas, feridas em seu ser. O psicológico fora abalado. Negona não
confiava mais numa amizade sincera. Não queria mais um lar, seu pensamento era
viver sozinha, na rua, vivendo com um e outro, quem sabe.
Negona
percebeu que o novo companheiro não queria sua saída, mas ela estava
transtornada. Quando começou a caminhar melhor, mesmo que puxando de uma pata,
saiu a conhecer o bairro. As pessoas já a conheciam pelo dia do inesperado e
triste encontro na ponte. No bairro, havia muitos cheiradores, e ela foi se
aproximando. Eles a aceitaram. Ela ficava entre eles. Praticamente todos os
dias, Negona saía para fazer companhia aos novos amigos de rua. O novo
companheiro conhecia a todos e perguntava por ela. Eles diziam que ela estava
bem assim, para não se preocupar tanto.
A rua
era sua segunda casa. Negona ficava nos becos até os novos amigos se dispersarem.
Ela passou a conhecer todos os cheira-farinhas da comunidade. Se Negona fosse
falar tudo que acontecia entre eles, seria uma grande caçada à polícia, mas não
abria a boca para nada, neste sentido. Ela era fiel.
Negona
dormia, nos anos seguintes, numa casa e outra. Comia numa casa e outra. Andava
pelas ruas do bairro como se vivesse o tempo todo a pensar, pensar, pensar, mas
ela não pensava. As pessoas falavam com ela, contudo, Negona apenas sorria.
Negona ficou famosa no bairro, por isso. Ela era tão fiel, que certo dia,
quando a polícia abordou os meninos da comunidade, por desconfiarem de tráfico
de drogas e roubo de carros, ela escondeu na própria boca o pouco de maconha
que os caras usavam, no momento. A polícia nem desconfiou. Saíram. Logo após,
Negona devolveu o saco para os novos amigos. Ela levava até cigarro de um
traficante a outro, e ninguém desconfiava. Na verdade, ela foi adotada, digamos
assim, depois de adulta, pelos traficantes.
Como
os meninos da comunidade não sabiam o nome dela, então, a apelidaram de Negona.
Negona andava para cima e para baixo, de carro, com os traficantes. Eles
gostavam muito dela, pois a viam como se fosse um deles.
Com o
passar dos anos, a idade se apresentava mais delicadamente a ela, sem contar
que o trauma da ponte a marcou para sempre. Mas todo mundo, ali do bairro,
quando ouvia falar em Negona já sabiam de quem se tratava. Mas Negona continuou
sem um lar fixo, talvez nem quisesse, porém, a idade exigia um. Então, por
sorte do destino, ela encontrou, numa padaria do bairro, um local onde passar
as noites, principalmente no frio. O dono da padaria permitiu que ela ficasse
dormindo lá. Negona passava o dia dormindo numa sala onde se faziam os pães.
Ninguém
do bairro sabia de fato se ela dormia lá. Os funcionários já viam Negona como
amiga de padaria. O dono a via como sócia. Ela dormia em cima de um papelão, de
preferência, coberta com um pano. À noite, saía a fim de ver pessoas e carros,
quem sabe respirar um pouco o ar de fora. Negona chegava à porta da padaria e
ficava olhando tudo ao redor, inclusive, à ponte onde ela, Negona, fora deixada
e espancada. A ponte ficava em frente à padaria.
O dono
da padaria gostava tanto de Negona, que na época do frio, ela dormia no
escritório. De manhã cedo, quando ele chegava, que abria a porta, ela já o
recebia com a alegria no rosto. Em seguida, ela saía, dava uma volta pelas ruas
e depois retornava. No tempo do calor, Negona fazia companhia para o padeiro,
pois este trabalhava à noite.
Ninguém
sabia ao certo de onde Negona teria vindo, nem ela falava, óbvio. Mas as
pessoas tinham curiosidades. Sabiam apenas que fora deixada no bairro, por um
irresponsável, e que ela foi tratada, cuidada, e passou a viver de casa em
casa. Teve um tempo que Negona passou a dormir num depósito de construção. Lá,
ela recebeu comida e lençol, mas sempre dormia no chão. Negona estava com as
marcas do sofrimento, pois embora tivesse sido cuidada por um e outro, ainda
sim, a dor a maltratava. A velhice complementava a figura, o rosto, as marcas.
Negona não tinha mais aquela beleza que encantava. As pessoas a ajudavam por
conhecer a situação e ver que ela, ao que parece, não tinha ninguém. E de fato
não tinha mesmo. O companheiro que cuidou dela quando fora encontrada na ponte,
se satisfez com a vida que Negona queria viver. Ele entendeu, e ficou feliz por
ajudá-la, quando esta precisou.
Todos
os clientes da padaria procuram por Negona, e quando a veem, estes lhe dão
carinho; ela agradece mexendo o rabo.
Juvenal,
depois de uns anos, adoeceu mais ainda, e o levaram para uma clínica psiquiátrica,
e esse foi o último lugar onde
Juvenal passou seus
dias, até chegar a hora.
A
padaria é, talvez, o último lar em que Negona vá dormir e passar os dias a
descansar até chegar a hora.
Mas o que Negona sempre soube, é que um dia amou e é amada por muitos. Que sua vida teve altos e baixos, assim como de muitas e muitas pessoas. Que aprendeu, ao longo da vida, que o amor tem lados diferentes, e que a tristeza pode cobri-lo caso seja ignorado um destes. Que mesmo tendo lembranças desagradáveis, percebe que foi mais alegre que triste.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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