Um Dia de Cão na Vida do Cachorro Salomão
de Paulo Luís Ferreira
I - Cachorro que não ladra é mordido
Salomão é um típico cachorro de rua, tipo
vira-lata mesmo, mas tinha o focinho e uma elegância de cão com pedigree e uma personalidade bem própria. Ele vinha há alguns dias com uns
pensamentos, se é que cachorro pensa, mas no caso deste Salomão, era pensamento
mesmo. Imagine vocês que certo dia ele acordou com a ideia fixa de que queria
trabalhar, arrumar um trabalho a todo custo, pois estava cansado de sua vida
pândega, cansado de vagabundear pelas ruas, viver dependendo da boa vontade,
dos favores alheios; de estar sempre na dependência dos humores dos humanos.
Quando, hora eram simpáticos com ele, hora arrelientos, lhe enchendo de
enxovalhos e sopapos, chutes e todos os tipos de grosserias para com ele. Bom, vamos mostrar como tudo isso
se sucedeu: a começar pelo dia em que acordou com a divina disposição de
trabalhar.
Salomão acordou
meio enfadado, um tanto desalentado. Não era para menos, há dias vinha se
empenhando em procurar um emprego que lhe trouxesse estabilidade. Estava
cansado da madorra do dia a dia. Cansara das maçadas cotidianas; já não sabia
onde procurar uma ocupação que o alentasse. Estava enfastiado com aquela
vidinha sem lucros, já não suportava aquelas correrias atrás de pneu de carros,
aguentar aqueles horríveis gás carbônicos fumarentos dos escapes das motos no
focinho. Viver a lamber ossos já ruídos de tantas e tantas bocas. Decidira,
então, a procurar um emprego.
Antes, porém,
iria dar uma passadinha na porta do açougue, quem sabe logo cedo encontrasse um
osso carnudo. Decidido, tirou o rabo de entre as pernas; para demonstrar
dignidade, ergueu os quartos, abriu a boca num bocejo bem espichado, deu umas
passadas de patas nas orelhas, esticou as pernas dianteiras depois a esquerda,
se espreguiçou, deu uma fungada no ar e seguiu até a porta do açougue. Lá
chegando o que ganhou foi um balde de água suja nas fuças, jogado pelo
desgraçado do açougueiro. “Filho de uma... Logo cedo da manhã receber uma
cacetada dessas é de arrebentar qualquer um...” – rosnou Salomão para consigo
mesmo, encolheu a vergonha e saiu humilde, de rabo entre as pernas. – Mas não há de ser nada... Hoje é dia de
feira no bairro, lá devo arrumar alguma coisa para o desjejum. – presumiu ele.
Na feira
perambulou por trás de umas barracas, mordiscou umas frutas e legumes, mas
esses não eram dos gêneros alimentícios que lhe abriam o apetite,
principalmente sendo de manhã cedo ainda. Pela manhã o bom mesmo era um bom
osso carnudo, mas fruta, eca! A banca de peixe estava jogando fora umas
barbatanas e uns rabos, mas esse era o tipo de comida para aqueles babacas dos
gatos, racinha de merda! – divagava ele em suas ranzinzas de cão. – Mas logo
percebeu seu preconceito, coisa que ele tanto cobrava nos outros, então pediu
desculpas para ele mesmo pela gafe cometida.
Enfim, andou,
andou e não tirou proveito de nada; só tempo perdido. O melhor mesmo era ir
cuidar da vida como havia planejado, achar um emprego urgente, sair dessa vida
indigente! E caminhou sentido à cidade.
Chegando lá,
depois de umas incansáveis corridas na tentativa de urinar numa roda de
automóvel em movimento, ou morder um calcanhar de motoqueiro, pegou rumo por
uma calçada cheia de transeuntes que lhe atrapalhava a visão das placas de “PRECISA-SE DE EMPREGADOS”. Por fim deparou-se com uma muito boa numa
vitrine de loja e leu as exigências para o cargo: “O CANDIDATO DEVE DIGITAR 70 PALAVRAS POR MINUTO,
NO MÍNIMO; TER CONHECIMENTOS SÓLIDOS DE COMPUTAÇÃO E SER BILÍNGUE. EMPREGADOR
LIBERAL NÃO DISCRIMINA CANDIDATOS”.
Salomão, num
misto de entusiasmo e
ansiedade, deu uma balançada de rabo para mostrar que apreciara a
deferência, e adentrou resoluto pela loja em direção ao RH
com a clara intenção de candidatar-se à vaga. Mas foi rapidamente rejeitado.
— Não posso
contratar um cachorro para o emprego. – disse o entrevistador.
“Aqui abro uma
aspa para um breve pensamento canino.
Deve um cachorro, por
princípio, ladrar quando os imprevistos lhe surjam pela vida? Não, não deve,
porque não poderá saber de antemão se estas surpresas virão a tornar-se más
notícias, maus augúrios. Mas, por via das dúvidas a esta consciente constatação, foi que,
Salomão manteve-se quieto. E mais uma vez raciocinou para manter seu equilíbrio
e ponderamento canino. Quando disse para si mesmo, para acalmar os nervos:
“Assim, como à moda dos postes e dos muros, devemos nos manter, quietos, impávidos
a esperar que o tempo passe, se pouco se muito não importa”. O que foi muito
assertivo, porque os cães, não distinguem durações entre a hora e os minutos; a
semana e os dias; entre o mês e o ano. Para os animais, os cães, propriamente
dito, que é a raça da qual ele entende
bem, não há mais que presença e ausência”. – fecho aspas.
Salomão,
indignado com a rejeição, pegou da mão do cidadão e conduzi-o até a vitrine
onde estava exposta a placa e lhe apontou a “não discriminação”, e também
mostrou a referência ao caráter liberal do empregador nela escrita.
O entrevistador,
a contragosto e meio ressabiado, suspirou titubeante e respondeu:
— Mas você sabe
digitar?
Salomão, sem
rodeio e sem nenhum embaraço, dirigiu-se ao computador e sentou-se. E numa
agilidade extraordinária digitou uma carta, com as quatro patas, suas próprias
apresentações em uma lauda com cerca de 2400 caracteres em menos de dez minutos
– o chefe mais do que impressionado e um tanto incomodado com tanta presunção daquele vira-lata, o inquiriu:
— Entende de
computação, programação e web design?
Salomão deu mais
uma balançada de rabo, não só por um pouco de alegria, mas, muito mais, para
exaltar a dignidade canina. E mais lépido que uma lebre, empenhou-se na criação
de uma bela página para o Facebook para a própria empresa. O que foi motivo de
admiração e elogios pelos demais concorrentes à vaga que estavam presentes.
O gerente
continuou em sua relutância em contratá-lo. E já exasperado disse:
— Você tem muitas
qualidades, mas preciso de um funcionário que seja bilíngue, e pelo que tenho
conhecimento, cachorro não fala outra língua se não as dos cachorros mesmos,
certo?
Ah! O Salomão não
vacilou, e o encarou com o ponto mais alto da sua dignidade. Olhou nos olhos do sujeito com toda petulância e empáfia que Deus
lhe deu, e na cara dele proferiu dois sonoros: Miau! Miau!...
E se retirou do
local sem esperar por mais uma discriminação.
II - Seminário de desagravo pra cachorro
Ainda um tanto
transtornado saiu falando com seus botões. Sem perspectivas, estava se
atordoando. Era urgente arrumar um trabalho, já não estava aguentando aquela
vida de ócio, mas como arrumar uma vaga de emprego decente se a sua condição de
cachorro era um problema insolúvel, quando se vive numa sociedade mergulhada no
preconceito? Já não bastassem contra os negros, os homossexuais, os
deficientes, os pobres; e até para com os animais que, eles os humanos,
hipocritamente dizem gostar tanto, que os cachorros são os melhores amigos do
homem. É esse o troco que recebe? A rejeição, o desprezo, a indiferença, essa
discriminação tão cruel?
Nessas
conjecturas ia Salomão caminhando, quando se depara com um centro de
convenções, e uma placa lhe chamou a atenção, que dizia: “SEMINÁRIO SOBRE O TEMPO E O SILÊNCIO DAS
CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES”. Ele que se
dizia um apaixonado por criança e que tem interesse por tudo o que diga
respeito a elas, e como não estava atinando o que fazer com o seu próprio
tempo, entrou sem titubear. E foi se roçando pelas pernas de um, passando por
baixo de outras, até chegar num grande auditório. “Hum, isto aqui está bem
animado, quase cheio.” – observou ele – Não quis sentar nas cadeiras dos
humanos, não queria chamar muita atenção. Encostou-se numa lateral do corredor;
baixou os quartos traseiros, e se apoiou nas patas dianteiras, com as nádegas
no chão. “Nádegas! Quem chama isso de nádegas ou bunda nunca viu um separador
de pernas.” – resmungou Salomão, achando graça de seu comentário idiota.
A conferência
estava começando. Falavam, como dito no cartaz, sobre o tempo e o silêncio das
crianças em formação. Os palestrantes debatiam com entusiasmo o assunto.
Salomão começou a
achar estranho: “Oras! Um seminário sobre crianças, mas cadê as crianças? Só
sendo coisa de humanos mesmo!... Não que eu esteja fazendo juízo de valores,
mas isso não está certo. Onde já se viu tratar de crianças e adolescentes, sem
a participação das próprias, que são as mais interessadas...” E justamente na
hora em que um dos palestrantes ia falar sobre a gravidez precoce, a
importância do uso de preservativos e a vacina contra as doenças sexualmente
transmissíveis, a Aids; As Dsts., e
essa agora, a maldita Covid-19 ou Corona Vírus, ou seja lá o nome que dê a essa
famigerada pandemia, quando num repente,
sentiu um aperto, uma vontade desatinada de urinar. Mas não tendo ali nenhum
poste nem um arbusto por perto, ao encontrar uma coisa encostada na parede
resolveu que ali mesmo iria dar uma pequena descarga urinária. Rá, rá, pra
quê?... De repente tomou uma saraivada de impropérios. A penumbra da sala não
deixou ele perceber que era uma perna onde ele urinara. Ao constatar a besteira
que fizera não deu tempo para mais nada, só de sair ganindo, pois logo recebeu
de chofre uma enxurrada de palavrões acompanhados de chutes e tabefes por todos
os lados. E expulso sumariamente do local.
Acabrunhado, e mais uma vez
pondo o rabo entre as pernas, Salomão foi saindo de mansinho, mais que indignado, envergonhado
com mais aquela desfeita dos humanos para com ele. Ao contrário do que em geral
se pensa, os cães, por muitos cuidados e mimos de que gozam do convívio com os
humanos, não têm a vida fácil, em primeiro lugar por que até hoje ainda não
conseguiram chegar a uma compreensão ao menos satisfatória desse mundo em que
vivem. Em segundo lugar porque essa dificuldade é agravada pelas contradições e
pelos insultos e a má conduta dos seres humanos com quem partilham, por assim
dizer, de certa amizade que, arrogantemente, costumam dizer que tem pelos seres
da raça canina. Então mais uma vez se
aquietou. – e se perguntou: “Quem poderá alguma vez entender essa coisa
chamada de gente?”.
Ao passar pela
recepção, umas belíssimas senhoritas, distribuíam balas, revistas e livros
infantis. Que amavelmente lhe ofereceram alguns exemplares. Bala ele não quis,
apenas pegou alguns livros e revistas em quadrinhos. Lembrou de quando, no seu
bairro onde vivia, sempre que fazia um pequeno plantão no ponto de ônibus, de
manhã cedo, a meditar sobre os imbróglios e mazelas da vida, das monótonas
paisagens em preto e branco que só ele via, passavam um tanto de crianças a
caminho da escola e lhe afagavam a cabeça com suas delicadas mãozinhas...
Levaria umas revistinhas para elas, iriam gostar. Nesses pensamentos tomou a
rua de novo, com os presentes às costas.
III - As rosas também falam
E voltou a
caminhar. E caminhou, caminhou. Quando ao passar à frente de um jardim um tanto
descuidado. Maltratado mesmo. Parou um pouco e ficou a observar com certa
comoção: como seria bom um jardim bonito, ali de frente para a rua. O quanto
não iria alegrar o visual do bairro. Quando de repente observa que duas rosas
conversavam dissimuladamente entre si. Aguçou os ouvidos que, como é sabido, os
cães são uns privilegiados com o sentido da audição, mas ele procurou ficar
mais atento, pois as rosas, em verdade, cochichavam. Pôs-se, então, a ouvi-las
com muita atenção. Do que conversam as rosas, oras! E lançou um olhar ao todo
do jardim na intenção de ver se havia mais algum interlocutor. Não havia. Eram
só as duas rosas mesmas. Havia sim, mais ao canto três bromélias, mas estavam
mudas. Era mesmo de se admirar duas rosas conversando!
As rosas por
costume importam pouco ou quase nada com os problemas alheios. E esse hábito,
em não cuidar da vida dos outros, explica-se em virtude da curta duração de
suas efêmeras vidas, evidente que não era nada proveitoso desperdiçarem seu
precioso e fugaz tempo com as picuinhas alheias. Além do que as rosas bem sabem
que dos humanos não lhes guardam mágoas, visto serem elas mote para suas
poesias, com belas palavras de amor, aromas a servir suas águas de cheiro,
bálsamos aos olfatos dos enamorados; e todos os olhos as veem com carinho, admiração
e afeto. Era este prosear que Salomão ouvia. Quando pressentiu uma menção a
ele, pelo qual se surpreendeu.
— Ei, você aí,
que está nos espiando...
— Eu?...
— É você mesmo
que vinha conversando com seus botões.
— Não, só estava
dando uma olhadinha mesmo!...
— Ora, não se
abespinhe, entre na conversa conosco... O que acha dessas nossas considerações
com respeito aos humanos?
— É bem
interessante, mas eu sou meio bronco quanto a isso. Vocês são notáveis no
entendimento sobre os humanos. Eu já não posso dizer o mesmo...
— Ora, mas por
que tanta contrariedade?
— Ora, só hoje já
sofri três bordoadas, uma logo cedo ao mendigar um osso para roer como
desjejum. O desinfeliz do açougueiro me tacou um balde de água suja nos meus
focinhos e o outro, agora a pouco, ali no centro de convenções: sofri uns
sopapos e me expulsaram do
auditório. E o pior: ao me candidatar a uma vaga de emprego, em que pese, eu
passar em todos os testes para a vaga que eles pediam não me contrataram pelo
simples fato de eu ser cachorro, vocês acham isso justo?...
IV - Emprego pra que te quero?
Mas como eu
estava dizendo, só estava observando o jardim e percebi que vocês estão um
pouco maltratadas, sofrendo de falta de cuidados, até me parece que vocês estão
com sede, não sabe me dizer se estão precisando de um jardineiro?
— E você seria
esse tal jardineiro que se oferece?
— Sim, eu mesmo,
estou precisando muito de um emprego.
— Ora, ora!
Precisamos sim, não queira saber o valor de um jardineiro para nós, as rosas.
Eles nos são o bem maior que podemos ter. São eles que nos dão amor, carinho e
todos os cuidados que precisamos ter.
— Pois então,
vocês não me querem como o cuidador de vocês, serei seu jardineiro para todas
as horas?
— Ora, querer nós
queremos, mas não temos como lhe pagar, a não ser que a nossa humana lhe contrate. Por que
você não fala com ela?... Eh, olha, lá vem vindo ela... Vá, fale com ela.
De pronto,
Salomão se empertigou todo, aprumou o espinhaço, deu uma leve balançadinha de
rabo, para demonstrar um pouco de satisfação, para quem sabe sua futura humana?
Não deu outra,
logo as rosas, num espalhafato de entusiasmo, se alvoroçaram numa algazarra só.
– e gritaram na maior euforia:
— Lili, Lili!...
Olhe esse cachorrão está querendo ser nosso jardineiro. Fale com ele... contrate-o!
— Oh, que
bonito!... Quem é você mocinho, como se chama?... Eu sou a Lili. – e logo
passou a mão em sua cabeçorra acariciando-a.
Ah, o rabo do
Salomão só faltou pular fora do corpo de tanto que balançou, mais parecia um
limpador de para-brisa em tempo de tempestade, de tanta alegria.
— Meu nome é
Salomão...
— Oh, mas que
nome tão esquisito para um cachorro tão lindão!...
— “Ah, lá vem os
preconceitos de novo”. – balbuciou Salomão, mas engoliu seco e disse – Estou
procurando emprego, então eu vi esse seu jardim tão depauperado e resolvi me
oferecer para aquelas rosas, como jardineiro. Elas falaram para eu falar com a
senhorita.
— Oh, mais que
gentil, que amável... Principalmente vindo de um cão tão charmoso... Mas o meu
caso é tão sério quanto o seu. Eu também estou desempregada, por isso que meu
jardim está tão maltratado... Mas se você não se importar de trabalhar só por
comida, dormida, um banho gostoso todo dia e muito carinho... O emprego é todo
seu.
Salomão, mais uma
vez, agitou o rabo como nunca e falou bonito como nunca:
— Oh,
amabilíssima dama, como bem disse Epicuro:
“Tu, que não és
senhor do teu amanhã, não adies o momento de gozar o prazer possível.
Consumimos nossa vida a esperar e morremos empenhados nessa espera do prazer.”
E pelo que sinto,
chegou à hora de esquecer as amarguras da rua e vir para dentro de casa. É aqui
que viverei de muito gosto neste mar de rosas. E disse para consigo mesmo:
“Para aquilo que não se pode ser, a gente olha através”.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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