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Cine Virtual: O Legado

Conto de Luiz F. Haiml
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Sinopse: Depois de herdar, a contragosto, as terras e suas plantações, pela morte de seus pais, ele vai receber uma outra "herança" que lhe será bem mais perturbadora.


O Legado
de Luiz F. Haiml

  

Era 1969. Entrei na maioridade, ao mesmo tempo fiquei órfão, e herdei a Quinta. E por não me atraírem as lidas campeiras, arrendei as terras a Estevão e Elvira, agregados que viviam nelas desde antes de eu nascer.

A Quinta me veio por herança materna. Meu bisavô fora de alto cargo dos Dragões do Rei. Pelos serviços prestados, favoreceram-no com terras na Campanha que se espalha ao longo das margens do rio Jacuí, sul do Brasil. Em tais extensões – naqueles dias sem fronteiras – se daria o início de um grande negócio de criação de gado, encerrado por meu pai, que preferiu a agricultura.

Estevão e Elvira moravam num pequeno chalé distante da fazenda. Dei-lhes então uma casa melhor, ficando eles mais próximos às plantações, e ao cemitério da minha família. Do chalé fiz estufa, onde cultivei diversa flora, e na casa paterna, onde permaneci, montei vasta biblioteca. O grande galpão, longo e amplo, que havia na Quinta, continuou a servir de temporária morada a errantes peões que por ali passavam, e pouso fixo a outros empregados que não tinham seu próprio teto. Quanto a mim, poderia teria ido viver numa cidade, aproveitar os prazeres que essa me oferecesse, mas me encantava a solidão que envolvia a Quinta, e os pagos ao redor. E havia a natureza. Admirava-a, observava-a em longos passeios nos quais fazia muitas anotações.

Numa chuvosa manhã, estava a divertir-me com o ótimo Catálogo da Flora Sul-Rio-Grandense, de Henrich R. Dietschi, quando Estevão apareceu portando um inesperado recado: convidava-me um vizinho a visitar seu sítio, e tal convocatória pedia certa urgência. Apesar de tal vizinho e eu vivermos, há muito, naquela região, seria a primeira vez que nos encontraríamos pessoalmente. Abraão era seu nome. O conhecia apenas de vista, assim como à sua filha, Lúcia. Estranheza e curiosidade me instigaram e logo estávamos a degustar um chá cujo sabor eu tentava reconhecer. Tal essência, de início mostrava-se amarga, ácida, depois liberava um gosto adocicado, e refrescante, e eu a sorvia com mais avidez.

Era a primeira vez que eu entrava na casa de Abraão: um prédio simples, de madeira e de poucas peças, cercado por inúmeros canteiros que formavam um irregular tapete de vistosos e variados tons de verde. Por dentro muitos livros se espalhavam. Amarfanhadas, rabiscadas, surradas edições que indicavam um constante manuseio, a maioria tratava do poder das plantas e da cura dos males do corpo, da mente e do espirito por métodos diversos. Chamou-me a atenção, numa prateleira, minúsculas estatuetas. Vistas de perto, porém, eram raízes. Por certas proporções e enlaces, elas imitavam de forma extraordinariamente perfeita, partes da anatomia humana.

Quanto ao meu anfitrião, era ele moreno, magro, espichado. Um tímido branco invadia seus cabelos contrastando de modo belo com o negror dos mesmos. Os olhos grandes, portadores de um brilho jovial, passavam uma calma que tinha eco na sua forma de pronunciar as palavras. Rosto e pescoço sulcavam-se como um solo estriado pela seca. Os grandes pés – em sandálias – e mãos alongavam-se cobertos por saltadas veias de diferentes espessuras, e tinha eu a impressão de que Abraão se enraizava no lugar onde sentava. Sobre ele, na verdade eu já sabia algumas coisas. Uma, que trabalhava com ervas, ervas que tinham o poder de curar, reavivar, rejuvenescer. A outra, que, quando chegara, anos atrás, trazia consigo a filha e uma aura de boatos que tinham a ver com o misterioso sumiço de sua esposa. Mas Abraão, por um irrepreensível caráter, foi fazendo com que as especulações sobre tal caso se desvanecessem até não mais servirem de preocupação a ninguém. Depois de várias xícaras de chá, ele entabulou por aquele que era o real motivo do convite.

Mas e Lúcia? Essa passara pela sala só uma vez. Sem nenhum barulho, nenhuma palavra. Era o mesmo tênue ser que algumas vezes eu vira em dias primaveris e de verão, sempre vestida de branco, ocasiões em que parecia pairar sobre as verdes coxilhas, e falava, não com animais ou outros humanos – estava sempre só – mas com entes imaginários, invisíveis à nossa comum percepção.

Já nos vinte anos, tinha ainda ar pueril. De baixa estatura, corpo quase sem contornos, os seios pouco perceptíveis, as mãos pequeninas, assim como os pés, esses em trançados chinelos. Sedutor era o contraste da pequena boca com a opulência dos lábios que a emolduravam. A rósea borda de cima, salientando-se por uma leve projeção causada pelos dois principais dentes superiores, dava-lhe um ar de peraltice e lembrava certos animaizinhos das histórias infantis. Os olhos, quietos e atentos, enormes e oníricas esmeraldas dentro das quais as pupilas – tronos negros – ganhavam contornos mais definidos pelo brilho que as circundava. Da cor do trigo em pleno viço era a vasta cabeleira a descer sobre seus ombros. A palidez da pele e a clareza, do longo e translúcido vestido que a cobria, se uniam quase indistintas. Enquanto atravessava o aposento e desaparecia para outra peça, ela sorria, era um enigmático sorriso, e dirigido a mim.

Anoitecia quando os deixei. Na volta, tomou-me forte letargia. Ao chegar à Quinta, fui logo deitar.

Eis agora o porquê de meu chamado. Alcançado em anos, embora não parecesse velho, nem doente, Abraão disse-me que em breve nenhum poder da medicina, nem erva alguma que conhecia poderiam salvá-lo, pois o Ser Supremo – assim se referiu a um poder maior – decidira que findara o tempo de seu corpo carnal. Preocupado com o destino da filha, que eu não estranhasse seu pedido:

– Se te agradares, faz de Lúcia tua esposa.

Diante de meu espanto, alegou que conhecera meus pais, que acompanhara, de longe, a minha vida, e tinha a convicção de que eu seria um bom marido, um companheiro ideal para Lúcia. Revelou-me também o desejo de ainda ter a alegria de contemplar um neto, o que seria possível, segundo ele, mesmo não estando mais unido às carnes do corpo, à matéria desta vida. No sétimo dia, após nosso único encontro, ele se foi. Sepultei-o em minha propriedade. Lúcia foi viver conosco.

A nova moradora logo encantou Elvira, e mútua era a admiração. Satisfeito, eu percebia Lúcia a alegrar-se com o matraquear inofensivo e constante daquela a quem eu considerava minha segunda mãe. Estevão, adotado por mim como pai substituto, também gostava de Lúcia. Porém, mantinha-se longe, evitando maior intimidade com ela. Por minha vez, tomei-a como irmã, como amiga, e Lúcia com isso concordava. E assim, éramos felizes.

Lúcia trazia em si a saudável vivacidade das moças criadas no meio campestre. E, dizendo ser herança do pai, surpreendeu-me com seu vasto conhecimento sobre fauna e flora da região, ajudando-me em minhas anotações, para as quais fazia belos desenhos, além de se tornar rica e divertida companhia nas minhas diligências, então, não mais solitárias.

Porém, algo existe que não quer a alegria dos homens, e a fortuna decidiu que chegara a hora de cobrar o preço: Lúcia adoeceu. Nenhum recurso que meu dinheiro podia oferecer, ou as muitas ervas milagrosas que ela conhecia, conseguiam reverter seu mal. Nada adiantava. E, tal qual seu pai, ela dizia:

– Ismael, é definido o meu último momento.

Lúcia partia, sem gritos, gemidos, lágrimas. Em total quietude fenecia.

Elvira entristecia cada vez mais, perdia a filha que a vida não lhe permitira ter. Estevão, esse conseguia esconder o que sentia, e eu, eu fugia daquela realidade tornando-me amigo habitual do absinto.

Era o fim de uma tarde de outono, úmida, cinzenta. Já fatalmente prostrada no leito, do qual não mais se erguia, pediu por mim. Senti um miasma enjoativo, antes mesmo de entrar no aposento. Recuei, mas, de repente, lá estava ante a enferma. E só então percebi o longo tempo que passara sem visitá-la. Perturbei-me. O verme irreversível, rápido, tecia-lhe os fúnebres trajes.

Devagar, pouco à vontade, curvei-me sobre ela. Evolava da enferma uma mescla de diferentes ervas aromáticas. Uma rede de finas veias de tom coagulado descia-lhe às faces, por seu pescoço e avançava por ombros e braços desenhando-se em sinistras e pérfidas garras. O vítreo dos olhos secara, as pupilas iam esfarelar-se a qualquer momento. A pele ganhava as características dos velados, dando a incômoda impressão de que, num repente, seria rasgada pelos ossos. Vasta ainda era sua cabeleira, mas dela o viço se fora, restando apenas uma opaca massa de desgrenhados fios.

Lúcia murchava, ressequia-se.

Como teve forças para, naquela situação, desejar-me, puxar-me para si, despir-me de modo tão ansioso e fazer com que, finalmente, consumássemos nosso casamento, não sei. E como me entreguei a ela, alucinado, sem antes nunca tê-la tocado ou desejado em seu estado normal, também não sei. Lembro apenas que, em determinado momento, já noite então, Lúcia acordou-me. Queria que eu a visse ainda com um resto de vida.  Adormeceu. Vinda a manhã, estava morta.  Vinda a manhã, era o último dia de outubro, estava morta. Sem saber a data em que nascera, gravei em sua lápide: Falecida em 31.10.1972

Dois dias se passaram, quando Estevão, agitado, entrou em meu quarto. Eu sonhava, naquele momento, em sono de absinto “achava-me ajoelhado diante um grande boi, que sabia ter sido abatido por uma peste, a mesma que começou a encher a pampa sem fim que me circundava de bestas mortas. Surgiu um homem todo em vestes negras, o rosto de feições charruas que se alternavam ora nítidas ora a se desfazerem como fumo, aproximou-se sem dizer palavra estendendo-me uma faca, e eu entendia que deveria courear os bichos –  procedimento que se faz em tais desastres” e aqui se encerra o onírico episódio, interrompido por Estevão.

O agregado falava rápido, nervoso, acordara por uma incessante sucessão de raios e poderosos estrondos, sons de pedras a se romper, e, o que mais o perturbara, gritos, gritos humanos, gritos desesperados e infindáveis de mulher, e vinham eles do cemitério da família. Antes o tivesse ignorado e voltado a dormir – e aí, talvez, nossa vida ali na Quinta continuasse como estava – mas sua agitação era tanta que percebi não me largaria enquanto não o acompanhasse no elucidar do mistério.

Vesti-me bem a proteger-me do frio, ouvindo-o dizer que estávamos sós, a peonada debandara, havia baile na cidade, e que a meia-noite há muito passara e anunciava-se a madrugada. Fora, a escuridão era ainda quase completa.

Os raios haviam parado e o cenário estava todo quieto. Seguíamos como dois viajantes capturados pela estranha atmosfera de um mesmo inquietante sonho até que, súbito, a luz de minha lanterna pousou sobre um anjo de pedra, desfigurado.

A sepultura de Lúcia.

Parte da estrutura sob a qual repousava a morta estava fulminada e enegrecida pela força de um raio, uma rachadura surgia como uma informe mancha se abrindo através dela.

Colocamos as lanternas sobre a cripta ao lado, a de Abraão. Mal havíamos acabado de largá-las um forte vento vindo do nada as derrubou e extinguiu a nossa luz, mas já estávamos então debruçados por sobre a campa em ruínas. Nada enxergávamos, além de trevas, e eu sentia a minha mão esquerda cada vez mais viscosa dando-me conta de que, sem saber onde nem como, eu a ferira profundamente.

Estávamos ali, dependurados sobre o breu, e um odor inenarrável dele subia. Foi então que as grandes e escuras nuvens lá do alto, impiedosas, se abriram, e dos céus uma luminosidade esférica e macilenta veio sobre nós e se espalhou pelas negruras que aguardavam sob a fria laje destroçada, e vi meu sangue a gotejar como que a alimentar a corrompida fossa mortuária.

Mas vi mais, e Estevão é igual testemunha. O que se revelou a nós, lá de baixo, lá dentro da garganta rasgada da pedra sepulcral, superava as pinturas mais macabras que eu já contemplara.

Havia cacos de lousa que caíram ao romper a laje superior, havia restos das madeiras de um caixão, e entre tudo isso, a luz celeste, indiferente, expôs a nossos olhos incrédulos um ventre aberto de mulher.

E não era só.

Nas expostas entranhas – ao redor das quais finos e úmidos caules entrelaçavam-se numa espécie de berço e não se via as outras partes da morta – aninhava-se um miúdo corpinho de criança.

Houve, então, um último e extraordinário estrondo e meu horror ainda mais se ampliou. Pela luz desse último clarão que pareceu durar uma eternidade vi tudo à minha frente começar a ruir, soçobrar, e vi Estevão a saltar para dentro do negro poço. 

Quando finalmente minha certeza arraigou em sólido terreno, decidi partir. Não ia estragar a inesperada felicidade que preenchia agora os dias de Estevão e Elvira. E, por certo, ambos talvez nem acreditassem em mim. Talvez até me achassem louco, que falava por amargura, algum arrependimento, afinal, de novo eu lhes passara uma porção de meu legado. O que eu sabia, e essa é a verdade, é que na criança que oferecia a eles a chance de um futuro de muitos risos e alegrias, na menina que ficava a vagar, como em sonambúlico estado, pela Quinta, que crescia entrançando-se esguia e etérea, habitava não outra senão aquela que fora minha única amiga, única irmã, única companheira – aquela a quem, somente uma vez, eu tivera.

Sim, naquele ser ainda inocente, naquele receptáculo ainda não maculado, ela, Lúcia, voltava, e minha angústia, minha agonia, meu desejo insano de novamente possuí-la, também. 

Conto escrito por
Luiz F. Haiml

Foto:
Alex Hackmann

Edição da Foto:
Aroldo Benkenstein

Modelo:
Graziela CBoom

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima Eliane Rodrigues
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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