Os Bichos estão no Ar
de Denise Sintani
- Me intuba aí, porra!
O grito rouco no pancadão lá
embaixo ecoou assim, incorporado ao funk subindo até a janela; naquela noite,
havia dezenas de janelas isoladas pela cidade a ouvir o rancor-sarcasmo para
quem a vida tinha valor somente no grito. Grito de ódio, de desafio no pulo
seco. Necessidade de entender qual seria a razão daquele ato de guerra, nunca
antes tão nítido. Mas logo percebeu que só fingia não entender, espécie de
sonsice disfarçada de indignação. O próprio nome pelo que nomeou já denunciava:
rancor-sarcasmo que precisava explodir no pulo seco, nos braços ao alto, na
dança sensual do não-amanhã.
No contraste entre o alto da
janela e a comunidade fervendo lá embaixo, a falta de ar – como podia faltar
ar, se o planeta estava envolto pela atmosfera que sempre considerou infinita?
me intuba, porra? que merda é essa? Na torre-ilha, aquilo denunciava pura
zombaria, mas a ressentida provocação também ecoava de viés na fusão do tum-tum
e reco-reco da música alta na rua, única maneira de se revoltar. A voz
rouca de garota provocava o exterminador com o grito de exterminada, tanto faz,
a produção de salsichas não pode parar, mesmo porque quem vai alimentar o
cachorro-quente?
Experimentou o cinismo de quem
detesta salsicha. Falta de ar ou medo, seriam as duas coisas, nenhuma delas ou
aquela terceira que sempre evitava? Nunca teve sorte na vida, por isso não
imaginaria encontrar algum grande amor antes das
paredes-elevador-carro-trabalho-carro-elevador-paredes e a produção de salsicha
sempre no meio do caminho. Sentia-se homem, mulher, que importava, todas as
personagens destes tempos sombrios estão mal construídos, inacabados; sem idade
nem piedade, salve-se quem puder. A Gica Mendes, do financeiro, outro dia disse
graças a deus pude voltar pro trabalho, não aguentava mais ver meu marido
comendo pipoca na frente da TV, as crianças enlouquecidas iguais ao vírus, que
vírus! vírus, bactérias, germes, mosca, borboleta...
Então viu a barata. Antes
mesmo de ver, pressentia que seria difícil aquilo acabar bem. Fácil manter a
produção e lidar com tudo: isolamento, distanciamento social, solidão, pipoca,
televisão, até com a borboleta, mas lidar com barata exigia demais. Como ela
tinha entrado, demônio? e os sapatos do lado de fora, as roupas imediatamente
no cesto de lavar, álcool 70 nas patas do poodle, que escapou para o hall
naquela noite, quando chegou da rua com todo o medo do mundo, ainda mais depois
do que aconteceu com a Nicete, a prima da Vila Matilde que de repente foi
intubada e morreu sem nem mesmo se dar conta, uma vez que, antes de ir para o
hospital, tratou de deixar pago o boleto da última prestação da máquina de
lavar novinha. Depois que a gente morre, pouco importa o cadáver numa roupa ou
num saco, mas dói um pouco imaginar o saco.
As antenas da imunda
balançavam no ritmo do funck lá de fora e podia até ouvir me intuba, porra, mas
o resto do corpo grande e brilhante permanecia bem parado perto do pé da mesa
de jantar – madeira maciça, estrutura forte, poderosa, nem seis pessoas em cima
dela dançando funck a derrubariam – e a barata parecia muito pronta para
baratinhar a qualquer direção que fosse preciso para salvar a própria vida. Tric-tric-tric
e o poodle levantou as orelhas, até então cochilando em cima do pufe ao lado da
janela. Quando criarão vacina contra baratas, cadê os cientistas deste mundo?
Quieto, Capitão Duda, nada de
mexer com o bicho impuro. Conversou com o poodle sem tirar os olhos da barata,
elas sempre sumiam na distração e depois reapareciam nas horas mais impróprias.
Estratégia, vamos lá: meio litro de inseticida, ela fica tonta, não, primeiro
tranco Capitão Duda no banheiro, não, se eu me mexer a barata foge, ela só está
esperando meu movimento, sim, de qualquer modo tenho de me mexer pra pegar o
inseticida que está no armário do banheiro – vou providenciar latas de
inseticida espalhadas pela casa, assim como faço com álcool em gel, quem sabe
pra uma próxima barata – então faço o quê? nada, fico só olhando, pra descobrir
onde a dissimulada vai se esconder.
Capitão Duda pulou: caçador
primitivo atrás do bicho jurássico que correu para a cozinha e se enfiou
debaixo do fogão. Pelo menos a situação tinha mudado e então podia pegar o
inseticida no banheiro; resolveu trancar o poodle no quarto e depois ssssssssssh,
meio litro do inseticida debaixo do fogão, e a barata apareceu tonta, conforme
tinha previsto; caiu de barriga para cima ainda agonizando com as patas em
convulsão. Sim, a barata sentia falta de ar e agonizava, me intuba aí, porra.
Demoraria muito para
finalmente virar uma carcaça imóvel, não suportaria esperar. Sem falar que elas
fingem, são cínicas, podem se recuperar sem sequelas, ressuscitam e saem
andando como se nada tivesse acontecido; a lata de lixo não era opção e não se
coloca num saco qualquer coisa que ainda não estivesse bem morta. A pergunta
que não quer calar: teria eu ou o mundo enlouquecido? Achou a pá e, com
o máximo de cuidado suave, como se carregasse um passarinho moribundo, conduziu
o solene cortejo até a janela; me intuba aí, porra, suspirava ela, e se baratas
tivessem pulmões, estaria ofegante, sufocada, implorando; ela, que não podia se
isolar na busca por alimento e tinha de pegar o trem, implorava pela atmosfera
infinita.
Jogou a barata sobre o pancadão lá embaixo e deu um adeusinho com a mão esquerda; detalhe: sorria toda a maldade do mundo.
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
Copyright © 2021 - WebTV
www.redewtv.com
Comentários:
0 comentários: