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Cine Virtual: Os Bichos estão no Ar

Conto de Denise Sintani
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Sinopse: Em isolamento social, o personagem se encontra em um embate com uma barata em seu apartamento. 


== ENTREVISTA COM A AUTORA ==

CAL: Qual foi a inspiração para criar o conto?

DENISE: O atual contexto bizarro da pandemia.

CAL: O que o público pode esperar da história?

DENISE: Reflexão e diversão. 

CAL: Qual foi o maior desafio ao escrever o conto?

DENISE: Sempre é a revisão, reformulação. 

CAL: É a primeira vez que você escreve sobre o gênero abordado no conto?

DENISE: Não, costumo escrever sempre. 

CAL: Quais são suas expectativas para a estreia do conto?

DENISE: De verdade, não sei, nunca participei de um evento parecido; espero que as pessoas gostem. 

CAL: Se fosse para definir o conto em uma palavra, qual seria?

DENISE: Catarse.

CAL: Deixe uma mensagem para o público.

DENISE: Leiam, relaxem, de mente aberta e espero que se divirtam.
 


Os Bichos estão no Ar
de Denise Sintani

 

- Me intuba aí, porra!

O grito rouco no pancadão lá embaixo ecoou assim, incorporado ao funk subindo até a janela; naquela noite, havia dezenas de janelas isoladas pela cidade a ouvir o rancor-sarcasmo para quem a vida tinha valor somente no grito. Grito de ódio, de desafio no pulo seco. Necessidade de entender qual seria a razão daquele ato de guerra, nunca antes tão nítido. Mas logo percebeu que só fingia não entender, espécie de sonsice disfarçada de indignação. O próprio nome pelo que nomeou já denunciava: rancor-sarcasmo que precisava explodir no pulo seco, nos braços ao alto, na dança sensual do não-amanhã.

No contraste entre o alto da janela e a comunidade fervendo lá embaixo, a falta de ar – como podia faltar ar, se o planeta estava envolto pela atmosfera que sempre considerou infinita? me intuba, porra? que merda é essa? Na torre-ilha, aquilo denunciava pura zombaria, mas a ressentida provocação também ecoava de viés na fusão do tum-tum e reco-reco da música alta na rua, única maneira de se revoltar. A voz rouca de garota provocava o exterminador com o grito de exterminada, tanto faz, a produção de salsichas não pode parar, mesmo porque quem vai alimentar o cachorro-quente?

Experimentou o cinismo de quem detesta salsicha. Falta de ar ou medo, seriam as duas coisas, nenhuma delas ou aquela terceira que sempre evitava? Nunca teve sorte na vida, por isso não imaginaria encontrar algum grande amor antes das paredes-elevador-carro-trabalho-carro-elevador-paredes e a produção de salsicha sempre no meio do caminho. Sentia-se homem, mulher, que importava, todas as personagens destes tempos sombrios estão mal construídos, inacabados; sem idade nem piedade, salve-se quem puder. A Gica Mendes, do financeiro, outro dia disse graças a deus pude voltar pro trabalho, não aguentava mais ver meu marido comendo pipoca na frente da TV, as crianças enlouquecidas iguais ao vírus, que vírus! vírus, bactérias, germes, mosca, borboleta...

Então viu a barata. Antes mesmo de ver, pressentia que seria difícil aquilo acabar bem. Fácil manter a produção e lidar com tudo: isolamento, distanciamento social, solidão, pipoca, televisão, até com a borboleta, mas lidar com barata exigia demais. Como ela tinha entrado, demônio? e os sapatos do lado de fora, as roupas imediatamente no cesto de lavar, álcool 70 nas patas do poodle, que escapou para o hall naquela noite, quando chegou da rua com todo o medo do mundo, ainda mais depois do que aconteceu com a Nicete, a prima da Vila Matilde que de repente foi intubada e morreu sem nem mesmo se dar conta, uma vez que, antes de ir para o hospital, tratou de deixar pago o boleto da última prestação da máquina de lavar novinha. Depois que a gente morre, pouco importa o cadáver numa roupa ou num saco, mas dói um pouco imaginar o saco.

As antenas da imunda balançavam no ritmo do funck lá de fora e podia até ouvir me intuba, porra, mas o resto do corpo grande e brilhante permanecia bem parado perto do pé da mesa de jantar – madeira maciça, estrutura forte, poderosa, nem seis pessoas em cima dela dançando funck a derrubariam – e a barata parecia muito pronta para baratinhar a qualquer direção que fosse preciso para salvar a própria vida. Tric-tric-tric e o poodle levantou as orelhas, até então cochilando em cima do pufe ao lado da janela. Quando criarão vacina contra baratas, cadê os cientistas deste mundo?

Quieto, Capitão Duda, nada de mexer com o bicho impuro. Conversou com o poodle sem tirar os olhos da barata, elas sempre sumiam na distração e depois reapareciam nas horas mais impróprias. Estratégia, vamos lá: meio litro de inseticida, ela fica tonta, não, primeiro tranco Capitão Duda no banheiro, não, se eu me mexer a barata foge, ela só está esperando meu movimento, sim, de qualquer modo tenho de me mexer pra pegar o inseticida que está no armário do banheiro – vou providenciar latas de inseticida espalhadas pela casa, assim como faço com álcool em gel, quem sabe pra uma próxima barata – então faço o quê? nada, fico só olhando, pra descobrir onde a dissimulada vai se esconder.

Capitão Duda pulou: caçador primitivo atrás do bicho jurássico que correu para a cozinha e se enfiou debaixo do fogão. Pelo menos a situação tinha mudado e então podia pegar o inseticida no banheiro; resolveu trancar o poodle no quarto e depois ssssssssssh, meio litro do inseticida debaixo do fogão, e a barata apareceu tonta, conforme tinha previsto; caiu de barriga para cima ainda agonizando com as patas em convulsão. Sim, a barata sentia falta de ar e agonizava, me intuba aí, porra.

Demoraria muito para finalmente virar uma carcaça imóvel, não suportaria esperar. Sem falar que elas fingem, são cínicas, podem se recuperar sem sequelas, ressuscitam e saem andando como se nada tivesse acontecido; a lata de lixo não era opção e não se coloca num saco qualquer coisa que ainda não estivesse bem morta. A pergunta que não quer calar: teria eu ou o mundo enlouquecido? Achou a pá e, com o máximo de cuidado suave, como se carregasse um passarinho moribundo, conduziu o solene cortejo até a janela; me intuba aí, porra, suspirava ela, e se baratas tivessem pulmões, estaria ofegante, sufocada, implorando; ela, que não podia se isolar na busca por alimento e tinha de pegar o trem, implorava pela atmosfera infinita.

 Jogou a barata sobre o pancadão lá embaixo e deu um adeusinho com a mão esquerda; detalhe: sorria toda a maldade do mundo.


Conto escrito por
Denise Sintani

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima Eliane Rodrigues
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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