Os Heróis de uma Infância quase Roubada
de Carlos Mota
O pai chega do trabalho, está exausto, foram mais de oito horas noturnas
enfrentando o caos urbano, exercendo uma das profissões menos desejadas da
atualidade, apesar de carregar nas costas o dever de se manter a ordem pública
a qualquer custo: a de policial.
Após
um bom banho, ele deita e logo adormece, contrariando uma rotina diária:
guardar o cinturão com a pistola calibre 38 em local seguro, inacessível ao
filho ou a qualquer outro civil. Viúvo, além das ruas, tem de manter a
organização da casa, os cuidados com a mãe de setenta e três anos e a educação
do filho de oito anos, um garoto lindo, esperto, de um refinamento sublime, em
cujo sorriso há o retrato inconteste da mulher que o céu lhe retirara por orgulho
ou plena inveja.
As
horas caminham... Ao se levantar, o pequeno corre para o quarto do pai, quer
lhe dar um beijo, revê-lo, como faz toda manhã. Mas este dia será diferente,
sobre o sofá há algo que lhe desperta a atenção, atiçando-lhe a curiosidade - parasita
que há séculos conduz o homem a caminhos ambíguos.
Calçando
sapatilhas cujos ruídos são quase imperceptíveis, ele caminha em direção ao
cinturão, quer tocá-lo, ter aquilo que carrega em mãos, matar o desejo sagaz de
poder, enfim, ser um policial como o pai, para matar bandidos, cumprir a lei,
ser um herói como os do cinema, desses como Homem-Aranha... Espere aí,
Homem-Aranha não usa armas, pelo menos não de metal. Então, ele seria o
Cavaleiro das Trevas, o Homem Morcego, conhecido por Batman. Ele sim cria suas
armas! E que armas! Mantendo o silêncio e com o cinturão em mãos, retorna ao
seu quarto.
Está
eufórico. Seus olhos reluzem feito faróis em alto-mar. Enfim, ele deixaria de ser um
simples mortal para exercer o papel do “senhor de todos os poderes”, aquele que
não tem medo de nada, que mata sem dó, em nome de uma Justiça que só existe nas
linhas inspiradas do quadrinista Stan Lee. Com o lençol amarrado ao pescoço
fazendo-se de capa e o cinturão do pai pendurado à cintura com a ajuda de um barbante,
ele pula sobre a cama e finge, ao viajar na própria imaginação - fértil como
ervas daninhas, ser indestrutível, defensor dos fracos e oprimidos.
Ao
tocar a arma, a brincadeira acaba. A curiosidade lhe sobe pela veia até chegar
à mente que, sem qualquer resquício de remorso, o faz tomá-la às mãos. De
frente ao espelho do guarda-roupa, ele diz em sussurros: “Sou o super...
super... é... o Batman!” Mas a ingenuidade não imita a arte, nem a vida real
manipula a fantasia; a fantasia é quem manipula, em muitos casos, a vida real,
tornando-a palco de tragédias que vão de Shakespeare a Nelson Rodrigues.
E
com a pistola calibre 38 em mãos, ele se exibe ante ao espelho, quando percebe
estar faltando algo para completar a então fantástica aventura ao mundo nada
crível dos poderosos da Marvel. Uma máscara! Isso, uma máscara! Procura um
papel; não encontra. É quando se dá conta que seu material da escola está na
cozinha, mas teme abrir a porta e despertar o pai que, ao vê-lo com seu
cinturão e sua arma em mãos, poderia lhe dar uma surra. Assim, resolve fazer o
herói sem máscaras, o primeiro super com a identidade revelada! Mas a fantasia
parece novamente ruir quando os raios solares atingem a arma e refletem sobre
os olhos do menino, que enfeitiçado, levanta-a até a altura da cabeça e,
vendo-se no espelho, aproxima-a devagar da fronte.
Com
os dedinhos no gatilho, parece perder a razão, naquele momento não há mais um
mortal diante de uma arma, há um Deus dos quadrinhos diante de um
arqui-inimigo, cujo vencedor herdará o direito de ter sua face estampada em
todas as capas de revistas e jornais do mundo todo. E na batalha que se
aproxima, apenas um sairá vencedor. Pelo que parece, a arma que enfeitava as
vestimentas do herói se rebela e agora quer dominá-lo, assim como já dominara
toda a raça humana, levando bilhões a sete palmos abaixo da terra. E assim
acontece! Com a arma rente à cabeça, dopado por um devaneio letal, ele dispara.
Um grito ensurdecedor é ouvido!
_FILHO!
FILHO!!! FALE COM O PAPAI... FALE!!! PELO AMOR DE DEUS!!! –diz, pegando-o no
colo, após pressentir a desgraça, acordar, notar a ausência de seus
instrumentos de trabalho e invadir o quarto do pequeno. FALE COM O PAPAI! MEU
DEUS! – chora, desvairado, culpando-se a si próprio pela tragédia.
_Pai...
você vai me bater? – rompe o desespero uma vozinha quase inaudível,
amedrontada, como se resgatada do precipício da morte.
A
arma não estava carregada. Mas poderia, e esta história deixaria de ser mais um
conto de fadas e heróis norte-americanos para se transformar em manchete nas
páginas policiais.
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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