Eurico Prates está sentado à sua mesa. Sobre ela, alguns papéis, pastas, um porta-retratos com a fotografia dele e de sua família: uma mulher de uns 50 anos, dois homens com menos de 30 anos, uma moça de seus 23 anos, e sete crianças. Eurico é um homem obeso, de seus 55 anos. Há duas cadeiras à frente de sua mesa; atrás, uma grande estante tem livros, enfeites. Num canto, há uma bandeira com o brasão e as cores da cidade: o vermelho, o branco e o azul. A porta se abre e Adelaide, sua jovem e elegante secretária, anuncia que os irmãos chegaram.
– Senhor prefeito, os dois irmãos da capital tão aqui. Eles já podem entrar?
Eurico Prates fez um sinal positivo. Logo que Odilon e
Odílio entram, Eurico se levanta e cumprimenta-os.
– Vamo, vamo. Se
sentem, meus amigos. Fiquem à vontade – recepciona Eurico Prates.
Todos se ajeitam em seus lugares.
– É um prazer rever o senhor, Odilon. E é uma grande
satisfação conhecer o senhor, seu Odílio.
– O prazer é meu seu Eurico
Prates – responde Odílio.
– Espero que cêis
tejam gostando de São Pedro. É uma cidade sossegada, não tem aquela
agitação toda que a gente vê em São Paulo... É um lugarzinho gostoso de se
viver.
– A gente procurava por tranquilidade mesmo – afirma Odilon.
– Às vezes eu preciso ir resolver umas coisas, em Taubaté,
em São José, ou em São Paulo, mas eu só fico tranquilo quando volto pra cá.
Aquele negócio do assalto do banco em São Paulo. Eu achava que a gente só via
essas coisas nos filme americano – confessa o prefeito.
Sem que os outros dois percebam, Odílio leva a mão até a sua
cintura. O seu coldre tem um revólver calibre 38. Ele destrava o coldre e
mantém a mão sobre a arma. Eurico completa.
– Eu entendo o porquê docêis
resorvê ir embora de lá. Ainda mais
depois do que cêis passaram com o
falecimento da amada mãe de vocês. Que Deus à tenha.
– A gente já tava decidido
a ir embora mesmo seu Eurico.
Infelizmente a criminalidade das cidades grandes estão fazendo com que muita
gente decida ir pra cidades menores em busca de sossego – explica Odilon.
– Aqui em São Pedro o povo é muito bom. E a gente tem as cachoeira, os rios pra pescar, tem essa
pracinha aconchegante, os barzinho de
comida e bebida boa. Tem os alambique
espaiado por aí; não sei se cêis
gostam duma pinguinha. Tem a festa da padroeira, as festas juninas. Vocês vão
se acostumar rápido aqui. Quem sabe até arranjem casamento, né não, seu Odílio?
Odílio olha para o prefeito sem prestar atenção em nada do
que acontece no diálogo. Ele já estava preparado para fazer Eurico refém, caso
a polícia invadisse o gabinete; calculava a melhor maneira de dar o bote.
– Hein, seu Odílio?
– repete o prefeito.
Odilon cutuca Odílio, que parecia sonhar acordado. Ele ergue
as sobrancelhas, questionando o que havia perdido do assunto.
– O prefeito tá dizendo que aqui quem sabe a gente até
arranje casamento – diz Odilon.
Odílio ri, enquanto retira a mão do coldre, baixando a
camisa e escondendo a arma.
– Olha, quem sabe, né? Mas eu sou um homem que vive bem
sozinho. Eu sou um lobo solitário – diz Odílio, sorrindo.
– Mas vamos ao que interessa – fala o prefeito. Tem uns
papéis que faltam só o registro do cartório, mas como aqui não tem, vamo esperar chegar de Taubaté, né? O
local já foi adequado, de acordo com as normas da prefeitura. O Odilon já
assinou, eu já assinei, o Odílio também assinou. Tá tudo praticamente pronto.
Logo que a papelada chegar, a casa funerária docêis já pode começar a funcionar.
Batidas na porta. Odílio se mexe na cadeira, levando a mão
novamente ao coldre. Ele se acomoda do melhor jeito para tomar o prefeito
refém, caso note a presença de policiais. A porta se abre e a charmosa Adelaide
reaparece.
– Senhor Eurico, o secretário chegou. Eu peço pra ele
esperar?
– Que nada. Mande ele entrar pra conhecer os irmão Batista – responde Eurico Prates.
Odílio se ajeita tão logo percebe que não há nenhuma ameaça
policial. Logo, um homem franzino, jovem, mas um pouco calvo, vestindo um paletó
de linho e usando óculos redondos, entra no gabinete. O secretário Fagundes tem
seus 40 anos. Atrás dele, Adelaide traz uma cadeira, onde ele se senta. Ela sai
em seguida.
– Fagundes, esses são os irmãos Odilon e Odílio Batista –
apresenta o prefeito.
Todos se cumprimentam.
– Odilon e Odílio, esse é Fagundes, o nosso secretário de
saúde da prefeitura.
– É uma grande satisfação conhecer os jovens que irão montar
a primeira casa funerária de São Pedro da Cachoeira. Realmente o empreendimento
de vocês é o assunto mais falado da cidade – elogia o secretário, sorrindo.
– Nós que somos gratos pela hospitalidade do povo daqui,
secretário Fagundes – agradece Odilon.
– Sim. As pessoas daqui são bastante boas e hospitaleiras. Não
temos do que reclamar – completa Odílio.
Fagundes ajeita os óculos no rosto e incha o peito.
– Mas as pessoas daqui não se comparam às pessoas das
grandes cidades. Entendam bem, não é preconceito de minha parte, mas gente do
Rio, de São Paulo, de Belo Horizonte é diferente. São pessoas bem mais
educadas. As pessoas daqui são boas, mas são caipiras; é gente simplória. Eu
estudei medicina em São Paulo. Lógico, não quero que vocês imaginem que tô cuspindo no prato em que comi, afinal
sou filho de São Pedro da Cachoeira também, mas a vinda de gente da capital pra
cá traz um pouco de civilidade pra essa gente tão capiau. Os contatos de gente
de cidades grandes, de capitais, com o povo daqui ensinam nossa gente a ter um
pouco de compostura e educação; a se comportarem e terem boas maneiras.
– Acho que todas as cidades têm suas vantagens e
desvantagens, Fagundes. Eu andei por várias cidades do interior, visando a que
reunisse melhores atrativos pro nosso comércio, e não tenho dúvidas que São
Pedro foi a melhor escolha. Não é mesmo, Odílio? – ressalta Odilon.
– É. É um bom lugar. Foi uma ótima escolha, Odilon.
– Realmente São Pedro mudou muito nas últimas décadas. São
Pedro da Cachoeira teve um desenvolvimento bastante significativo. Por muito
tempo foi um povoado de passagem de tropeiros. Mas desde a emancipação, o avô,
o pai, e o próprio prefeito Eurico Prates, trouxeram muitas melhorias pro
lugar. Toda a família dele sempre se preocupou com o povo, e sempre trabalhou
muito duro para que a população tivesse dignidade – explica o secretário.
Eurico Prates sorri. Fagundes prossegue.
– É verdade, o Eurico é um homem modesto, não gosta de se
gabar, mas nós estamos adotando práticas na área de saúde que está colocando
nossa cidade com as melhores estatísticas da região. Temos índices melhores até
do que muitas cidades do Vale.
Fagundes levanta uma das mãos, fechando os dedos, mas
mantendo o indicador para o alto.
– Técnicas europeias de política de saúde pública.
Visitações, vistorias feitas por mim mesmo e por nossa equipe. Campanhas de vacinações;
melhor prevenir do que remediar, não é mesmo? – explica Fagundes, rindo e
orgulhoso. Praticamente erradicamos doenças como varíola e sarampo.
Neste momento Odílio olha para Odilon, que desvia o olhar.
Eurico não se contém e fala sorrindo:
– Meus amigos, quando completamos um ano sem nenhuma morte
de varíola na cidade, organizamos uma festa enorme. Trouxemos até a Aracy de
Almeida pra fazer um show. Foi um momento histórico pra cidade.
– Bom, acho que já tomamos demais o tempo dos senhores. Acho
que vamos andando – diz Odílio.
Ele se levanta e puxa Odilon pelo braço para se levantar
também. E todos se cumprimentam. Os dois “irmãos” tomam o caminho da porta e
saem. Na recepção veem um homem bastante nervoso e agitado falando com
Adelaide. Irineu é um homem robusto, com cerca de 60 anos e um grosso bigode
grisalho; ele usa roupas grosseiras e um chapéu sertanejo de couro. Ele é um
fazendeiro, um dos homens mais ricos de São Pedro da Cachoeira. Adelaide tenta
acalmá-lo.
– Tenha calma, seu Irineu.
O prefeito já vai atender o senhor.
– Mais carma que
eu já tenho? Como? – responde Irineu com seu forte sotaque caipira.
Odílio e Odilon se sentam em duas das cadeiras que estão
encostadas na parede e é inevitável não prestarem atenção na discussão de Irineu
com Adelaide.
– Garanto que o doutor Eurico vai resolver tudo da melhor
maneira possível – afirma Adelaide.
– Cê não tá
entendendo, criatura. Eu já pedi uma porção de vezes pra ele tomar
providências, mas esse homem não fez nada até agora. Vou na delegacia, falo co delegado Ferreira, e ele também não
faz nada. Aí eu tento resorvê do meu
jeito e eu recebo uma visita duma
merda dum fiscal ambiental! –
contesta o fazendeiro.
– Deixa o secretário Fagundes sair, você entra e conversa
direitinho com ele. Eu não posso fazer nada, seu Irineu – justifica Adelaide.
Irineu se vira para Odílio e Odilon.
– Ei. Viu, ô. Cêis tão
morando aqui em São Pedro ou tão só
de passagem?
– Tamo morando –
responde Odílio.
– Onde?
– No final da Rua do Sino, já perto da estrada – completa
Odílio.
– Então não é muito longe de onde começa a minha fazenda. Óia, não fiquem andando de noite por
aquela estrada e nem pela mata à noite não, viu, ô.
– Por quê? – questiona Odilon.
– Essas terras são da minha família desde que aqui é só
parada de tropeiros. Nós sempre vivemos aqui. Eu vivo aqui desde criança e
nunca saí daqui. Nós sempre criamo bovinos,
caprinos e umas avezinhas. E desde sempre tem suçuarana que frequenta essas mata. E às veiz elas entram na fazenda, matam galinha, bezerro, e a gente
sempre tenta espantar. Mas quando elas não vão, a gente tem que matar, né. Aí
agora o pessoar da prefeitura
inventou que não pode mais matar, fica mandando esses fiscal de bosta na minha casa. Essas onça ataca até gente; se pegar uma criança, pode inté matar.
– Entendo – diz Odílio.
Irineu continua:
– Aí eu resorvi
colocar uns rapazes armados nuns pontos estratégicos da minha fazenda, nas
divisas com a mata. E agora fica esse pessoar
indo me atormentar. Respondam: eu não tô certo
em proteger os meus bichos?
– O senhor tá certo.
Mas é perigoso ir até a cachoeira do Jaú? – questiona Odilon.
– Óia. É bom cêis evitar ir lá à noite. De dia ela
fica escondidinha, mas à noite ela sai.
Adelaide intervém:
– O mais perigoso da cachoeira do Jaú é o caminho, a trilha
estreita e intrincada em precipícios.
A cachoeira do Jaú não estava entre as mais procuradas, nem
por turistas e nem por “cachoeirenses”. Além de muito distante, o caminho era
bem perigoso, com trilha estreitas em terrenos acidentados. Várias cachoeiras
mais próximas do núcleo urbano e mais bonitas atraíam os visitantes de fora e
gente da cidade, para piqueniques e lazer nos finais de semana. Pouquíssimas pessoas
tinham o costume de frequentar a cachoeira do Jaú. Na verdade quase ninguém
tinha interesse em ir para um lugar tão distante, nadar, comer, beber, e ter
que voltar no suplício.
A porta do gabinete se abre. Irineu se vira de repente e
segue para lá, trombando com o secretário Fagundes e falando alto com o
prefeito. De tão nervoso, nem se despediu dos dois “irmãos”.
– Mas, Irineu, comé
que ocê faz um negócio desse comigo,
rapaz? Nós somos como irmãos, nos se
conhece desde criança.
A porta se fecha. Fagundes acena para os dois e sai. De sua
mesa, Adelaide fala com os dois “irmãos”.
– Vocês não reparem o comportamento dele não. Mas não deem
muita atenção pra o que ele fala, viu. Ele é uma pessoa muito exagerada. Essas
suçuaranas aparecem de vez em quando, e quase nunca entram na cidade, elas
ficam só pela mata mesmo; elas têm medo de gente. Lá tem outros bichos que elas
se alimentam, água, tudo que elas precisam. E sobre atacar gente, é exagero
dele. Nunca uma suçuarana atacou ninguém na cidade.
– Tudo bem, dona Adelaide. Não precisa se preocupar. A gente
só queria agendar uma reunião com o prefeito semana que vem. Pode ser? – diz
Odilon.
Adelaide abre uma agenda. Folheia algumas páginas.
– Pode ser na quarta? Às 3:30?
Tereza
direção
Carlos Mota
Cristina Ravela
Copyright © 2021 - WebTV
www.redewtv.com
Todos os direitos reservados
Proibida a cópia ou a reprodução
Comentários:
0 comentários: