Alla Puttanesca
de Mayra Luiza Corrêa
Ela vivia em um bairro normal, com casas normais, carros normais e maridos normais. Tinha amigas há mais tempo do que contavam as pessoas, pois esposas normais não revelam suas idades. Na teoria, ela repudiava tudo que saía do padrão: acordar às 6 horas, fazer o café-da-manhã, limpar a sala, trocar as lâmpadas, aspirar os quartos, fazer almoço, ir à academia, fazer compras, ajustar as sobrancelhas, buscar as crianças no colégio, voltar para casa, tomar um banho, colocar o novo vestido, preparar o jantar e esperar todos chegarem para a refeição.
Todo santo dia, as mulheres do bairro da Tijuca viviam uma versão de suas próprias vidas, presas num comercial de margarina. As pílulas para dormir misturadas, num coquetel, desciam o esôfago e se transformavam em pólvora para, quem sabe, algo explosivo dentro dela. É que, para muitas, o normal não é suficiente, só o extraordinário importa. Essas são as anormais!
Jane era uma anormal, não que alguém soubesse de verdade disso, apenas suspeitavam. Se ela pudesse, gritaria para o mundo que odiava aquela vida regrada e idiota. Mas o que tinha a perder ainda era maior do que a vontade de correr o risco. Ela sorria, acenava a cabeça e continuava com a farsa.
Passaram-se anos até o segundo filho pedir um tutor de matemática. Ela não se importou “mais um homem normal, com notas normais e recomendações normais.” Esperava outro robô que regurgitasse fórmulas e equações decoradas. E foi o que teve. Uma. Duas. Três vezes. O filho não se “adaptava” muito bem aos homens velhos e enfadonhos. Quem poderia culpá-lo?
Até que um primo distante mencionou o colega engenheiro que precisava de um extra, enquanto estava desempregado. O menino adorou a tutoria, mas isso pouco importou para Jane. Foi botar os olhos nele que soube: “era com este que colocava sua anormalidade para fora”.
Faltou falar de Eva, a melhor amiga de Jane. Dentre todas as mulheres normais, ela podia ganhar um prêmio de “A Mais Normal”. Ela estava sempre com suas saias rodadas em tom pastel, blusas brancas pouco reveladoras e um belo penteado que enaltecia sua maquiagem.
Enquanto Jane flertava em tardes a
fio com o tutor do filho, Eva aparecia com chás, revistas de fofoca, bordados
difíceis… qualquer coisa que pudesse usar como subterfúgio para espionar o
quase-casal.
É importante expressar que Jane odiava Eva com todas as células de seu corpo. Todas!
Um dia, o menino adoeceu e Jane esqueceu de ligar para o tutor - que cabeça de vento! E ele acabou por chegar, ora bolas, sendo recebido pela mãe do aluno adoentado. Entre café e biscoitos, foram se aproximando, mãos se tocando, narizes encostando… Sua fuga das amarras do cotidiano estava pronta e prestes a acontecer, a ponto dela esquecer de Eva.
Aqueles lábios, enfim, se encontraram e uma chama acendeu no seu peito, clamando por mais, o queria por inteiro. Suas línguas se acariciavam enquanto ela fazia um movimento ambivalente: jogava o seu corpo para cima dele enquanto puxava o rosto do professor para perto. Ela queria ser consumida por ele, desejada como nunca antes - campainha.
Os dois se afastaram em um transe enquanto ela se perguntava se o som tinha sido real. Campainha. Campainha! CAMPAINHA!
Ela pediu desculpa e foi até a porta sabendo que era Eva. Quem mais podia ser num raio de dez quilômetros?
- Olá, querida! Queria ver como estava o pequeno. Maria me contou que ele não foi à escola hoje - a filha enxerida daquela fofoqueira - Ele está melhor?
Ela precisava de um minuto para se recompor. Um palavrão daqueles que só os marinheiros sabem passou pela sua cabeça ao determinar que não tinha um espelho à sua volta. Ou uma explicação para o tutor na sua sala.
- Ele está melhorando e eu preciso verificar sua febre. Mas obrigada por ter passado.
Ela fez menção de fechar a porta, mas Eva empurrou a madeira com uma das mãos, empenhada em não encerrar a conversa tão abruptamente. Jane não podia imaginar o que aquela mulher tenebrosa ainda queira.
- Eu não pude deixar de notar que o tutor dele veio hoje. Estou correta?
- Eu esqueci de desmarcar com a correria - suas palavras soavam verdadeiras para os próprios ouvidos, mas será que Eva compraria a desculpa?
- Pobrezinha! Tanta coisa na sua cabeça. Deixe-me ajudar com um lanchinho para vocês - disse empurrando a porta com um pouco mais de força; e forçando sua passagem.
O inimigo estava dentro do ninho! Ela tratou de espantar o tutor para fora da sua casa e, pela pressa e gestos nervosos, ele sequer discutiu. O fogo que sentia, há alguns momentos, já havia se transformado em gelo nas suas veias e ela ajustava, freneticamente, as laterais do seu vestido verde plissado enquanto respirava com calma.
Ao se aproximar da cozinha, viu que aquela mulher tinha se apossado do fogão como se fosse propriedade dela. E uma sensação desconfortável tomou conta do estômago de Jane, pois ela nunca sentira que pertencia aquela casa com objetos reluzindo, papéis de parede florais, móveis de mogno pintados, itens de cozinhar combinando na bancada… ela sentia-se um alienígena! Mas, e sua vizinha?! Parecia que era a dona daquele espaço. Seu domínio com as panelas para fazer um simples pão na chapa eram inebriantes.
- Sabe... - não, Jane não sabia o que Eva queria dizer, mas isso não a impediu de continuar - Eu acho que você passa muito tempo com esse rapaz. Se não tomar conta, os vizinhos vão falar. - correção: ela vai falar para os vizinhos.
- Não sei o que você quer dizer, eu apenas trato bem um funcionário.
- Querida, tratar bem é levar um café enquanto eles estudam. Se eu não chegasse todo dia para te salvar, era capaz dele entender errado sua amizade.
Jane desejou ter um copo para jogar direto na cabeça normal de Eva. Esse pensamento nunca lhe ocorrera antes, mas fazia uma quantidade de sentido absurda. Imaginou tirar os cacos de vidro do couro cabeludo e limpar o sangue quente dos fios escuros do cabelo. Em outro momento, decidiu aceitar o sanduíche normal que a vizinha fizera e tentou engolir junto, os pedaços do ódio dela.
- Pronto, agora você não vai desmaiar - riu como se fosse sua salvadora - Mas voltando ao assunto, você não tem medo do seu marido estranhar?!
Jane pousou o sanduíche e fez algo anormal para sua vidinha normal: trucidou Eva com o olhar.
- Não coloque meu marido no meio disso!
- Querida, ele tem todo direito de saber, você não acha? Eu acho!
Agora ambas estavam em pé, dividindo a mesa da cozinha como se ela fosse o Rio Somme e ambas estivessem prontas para uma nova Guerra Mundial. A dona da casa chegou a botar a mão sobre a mesa imaginando a mesma entrando na testa da outra. De onde estavam vindo esses pensamentos intrusos?
- Você não teria coragem! - desafiou.
- Lógico que teria. Falar para ele de como eu peguei sua esposa sozinha em casa fazendo companhia para o tutor, e totalmente desarrumada… Claro que sim!
- Pare de inventar coisas, Eva! - ela berrou sem se importar com o filho doente.
- Você esqueceu de olhar no espelho, minha querida - disse a vizinha andando até a sala e apontando para o grande espelho de decoração -. Seu batom borrado entrega tudo.
Jane tinha esquecido de checar sua aparência: botões abertos do corpete do vestido, a maquiagem ligeiramente borrada, exceto pelo batom que estava todo espalhado em volta da boca. A maldita aguardou até o momento da barganha para apontar a aparência dela.
- O que você quer para manter esse segredo?!
Com certeza havia algo que a vizinha quisesse. Todo mundo quer sempre algo! Jane queria incendiar a casa, tirando, antes, seu filho de dentro. Queria se desfazer de tudo, incluindo cada item, até mesmo o jardim estúpido e normal que ela se obrigava a cuidar.
- Nada - ela disse ajustando o anel de casamento - Mas, espero que me entenda: não poderíamos saber de um affair acontecendo debaixo dos narizes de todos da nossa vizinhança e ninguém fazer nada - ela se aproximou e colocou as mãos nos ombros de Jane e falou - Infelizmente, o escândalo será inevitável!
- Inevitável - a palavra rolou pela língua de Jane enquanto ressoava em sua cabeça.
Jane era uma pessoa anormal. O extraordinário era suficiente. Ela estava sujeita a, um dia, mostrar para que veio ao mundo. Foi até a cozinha enquanto Eva continuava falando sobre a importância do matrimônio para a sociedade. Pegou uma faca recém afiada e escondeu-a nas costas, pendurada na fita do vestido. Daria o susto da vida da vizinha.
- É isso… Espero que entenda, querida!
- Entendo - disse, pegando uma almofada e forçando o rosto de Eva para baixo, que começou a se debater para tentar afastar a outra mulher de cima dela.
A intenção inicial era espantá-la da sua casa com a faca depois de um susto, mas a vizinha estava fazendo muito barulho e seu filho poderia descer para ver sua mãe totalmente desgrenhada, em cima da mãe da sua colega de turma. Só havia uma única saída: a faca.
Eva puxou o objeto cortante e começou a golpear a barriga da outra, enquanto achou a cabeça de Jane e começava a puxar seu cabelo. Mas a anormal era mais rápida, tomada por uma eletricidade que nunca sentira antes. Estava viva pela primeira vez na vida! Ela aproveitou para enfiar a faca por debaixo da almofada. A respiração da vizinha cessou. Acertara o pescoço?! Provavelmente.
“Eva, a primeira mulher que eu matei.” Pensou Jane rindo de si mesma.
Após algumas respirações aceleradas, puxou o corpo sem vida para carregá-lo no colo até o jardim. As horas se passaram e, sem pressa alguma, ela cavou o maior buraco possível, rolou o corpo até lá e admirou seu feito. O cadáver estava de costas, sem nenhuma pompa, jogado com um braço para cima e outro para baixo. Era o que ela merecia.
O motivo daquele monte de terra era suspeito, então ela aproveitou e lembrou das mudas na garagem. Seu marido tinha pensado que ela estava entrando em depressão, e resolveu que uma horta seria uma ótima ocupação para cabeça. Mal sabia que Jane odiava jardinagem, e com gosto. Agora os temperos serviriam para encobrir sua pilha de segredos.
Assim que terminara sua plantação, voltou para casa e fez uma mistura de detergente com tira manchas para eliminar o sangue que havia escorrido pela cozinha. Esfregou em todo lugar que via, nem que fosse para remover apenas uma gotinha. O trabalho foi limpo e certeiro. Ela estava mais suja que o sofá, então conferiu a febre do filho e foi tomar um banho.
- Amor, cheguei! - seu marido disse, caminhando até a cozinha - Nossa, que cheiroso isso aqui. O que será hoje?
- Spaghetti alla puttanesca - ela disse enquanto cortava tomates com a mesma faca usada horas antes.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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