Meu Amigo Juninho
de Helen Souza
Um cachorro fofinho abanando o rabo. Um gato ronronando de
barriga para cima. Um peixinho balançando no aquário. Um coelhinho mordiscando
uma folha de alface. Todos esses bichinhos estavam na loja de petshop que
ficava em frente à minha casa. E eu passava o dia inteiro na janela observando
aquelas criaturinhas felizes, querendo que um dia eu pudesse levar um deles pra
casa. O único problema era...
"SEM ANIMAIS POR AQUI!" gritavam meus pais em
uníssono, toda a vez que eu pedia. Os dois eram alérgicos a pelos e não
gostavam de qualquer coisa que precisasse cuidar.
Àquilo
incluía eu mesmo.
Eu acordava sozinho, me vestia sozinho, fazia meu café
sozinho, ia pra escola sozinho, voltava sozinho, comia o resto da janta
sozinho, dormia sem nenhum boa noite. Se eu tivesse um emprego, já poderia
dizer que morava sozinho. Talvez eu arrumasse um, mesmo. O petshop estava à
procura de um novo funcionário...
...
Você não imagina minha alegria em simplesmente entrar
naquela loja. Era quase como um zoológico doméstico em que você podia tocar nos
bichinhos e passar algum tempo com eles. Não sei como tive tanto controle para
apenas olhá-los de longe, enquanto esperava a mulher voltar ao balcão.
Quando estava prestes a desistir do meu auto-controle, ela
surgiu. Tinha uns quarenta anos, talvez um pouco mais.
"Olá boa tarde, o que gostaria?"
Eu fiquei algum tempo paralisado, meio encantado em
conhecer a dona do lugar. Era como se ela fosse uma musa dos animais, e parte
de mim ficava nervosa só de pensar que ela era a única coisa que me impedia de
viver o meu sonho.
Quando ela percebeu que eu estava em transe, perguntou
novamente: "Rapaz, algum problema?"
Tive vontade de sair correndo, mas já era tarde. Repeti a
frase que havia ensaiado tantas vezes: "Eu gostaria de trabalhar
aqui."
Ela me olhou com alegria: "Ah, que ótimo! Qual o seu
nome?"
"Meu nome é Marley, senhora."
"Igual no filme, não é?" Ela deu uma risada.
"Meu nome é Mirtes, é um prazer conhecê-lo."
Ela me entrevistou ali mesmo, fazendo algumas perguntas
básicas, mas quando ela descobriu que eu morava bem ali na frente, pareceu
ficar ainda mais animada: "Perfeito! Você morando perto daqui facilita
muito as coisas." Ela abriu um sorriso. "Acho que você é um forte
candidato, Marley."
Eu quase não conseguia conter a minha felicidade dentro de
mim. Tive um bom pressentimento de que não seria a última vez que veria aquela
mulher.
Depois de terminar a entrevista, voltei para casa. Meus
pais não estavam lá, como sempre, mas aquilo não me importava mais. Se tudo
desse certo, eu estaria trabalhando e pouco depois não precisaria nem mesmo me
preocupar com eles. Tudo isso, da melhor forma possível: rodeado de animais
super fofinhos.
...
Como a proprietária havia dito, eu era um forte candidato.
E por sorte, era o mais forte de todos os que apareceram depois de mim. Alguns
dias depois da minha entrevista, Mirtes me chamou novamente. Na realidade, ela
nem precisava ter me chamado, porque eu tinha pego a mania de visitar o petshop
todos os dias para observar os animaizinhos. Eu não tocava em nenhum deles -
não tinha essa coragem e também não queria chegar com a roupa cheia de pelos em
casa - então me contentava em conversar com eles com os olhos.
Mirtes me olhava com a sua alegria habitual: "É,
parece que você vai trabalhar aqui, rapaz. Você vai ficar no caixa, e ajudar o
pessoal da organização, tudo bem?"
Fiz que sim com a cabeça. Depois de me explicar um pouco
sobre os horários e mais especificamente algumas outras obrigações, eu pude
começar naquela mesma hora a trabalhar.
Eu me sentia a pessoa mais feliz do mundo. Eu, que não
podia ter animais, estava rodeado deles, e ainda podia olhá-los enquanto
trabalhava. O que mais um solitário como eu poderia querer?
Os dias foram passando, e meus pais não haviam nem percebido
que eu estava trabalhando. Eu chegava em casa um pouco mais tarde do que o
normal, e por incrível que pareça, eles não me perguntaram nada. Era o cúmulo
da irresponsabilidade.
Meu mundo, no entanto, começou a se resumir naquele
petshop. Eu estudava e conseguia entender as matérias quando associava elas a
algum animal. Biologia, como você deve imaginar, se tornou minha matéria
favorita. Comecei a sonhar em ser um veterinário. Talvez aquilo fosse realmente
para mim.
Em um desses dias maravilhosos em que trabalhei no petshop,
estava conversando com um dos coelhos quando percebi um pequeno passarinho
acanhado nos fundos da loja. Me aproximei do bichinho com cuidado, tentando
descobrir o que havia acontecido. Quando cheguei perto, ele começou a se debater,
e eu tive um susto que quase me fez cair para trás.
Voltei ao balcão, peguei uma pequena toalha que servia para
limpar e me aproximei novamente do animalzinho. Joguei a toalha sobre ele, e
delicadamente o segurei na minha mão. Ele não ofereceu muita resistência, para
minha surpresa. O seu bico saiu para fora, procurando ar, e foi quando eu
percebi que ele não estava se sentindo muito bem. Seu piado era triste,
doloroso. Eu o pus na mesa e comecei a analisá-lo, porém não pude ir muito
longe, pois logo uma cliente apareceu. Tive que esconder o passarinho em uma
das gavetas pelo resto do dia.
No final do expediente, eu fui incapaz de deixá-lo sozinho
ali dentro. Aproveitando que meus pais provavelmente não estavam em casa, eu
levei o bichinho até o meu quarto. Lá, pude analisá-lo melhor e com mais calma
percebi que ele estava com
uma asa quebrada. Eu não sabia nada sobre cuidar de animais, então
procurei na internet como se cuidava de uma asa quebrada. Enquanto isso, deixei
ele confortável em um lençol velho que eu tinha. Não vou mentir, estava muito
preocupado com ele. E se eu não conseguisse salvá-lo? Eu não fazia ideia do que
fazer. Mas ao invés de me desesperar, resolvi usar essa preocupação como mais
um estímulo para minha pesquisa.
Passei boa parte da noite no computador. Eu não tinha certeza de como fazer o
que eu havia aprendido, mas decidi tentar mesmo assim. Lavei a asa quebrada e
enrolei ela no corpo dele. Tinha visto que demorava pelo menos duas a quatro
semanas para curar. Eu duvidava muito que meus pais deixariam eu ter um
passarinho, ainda mais um com asa quebrada, por isso decidi escondê-lo no
petshop, para que ficasse protegido e perto de mim.
Liguei para a dona Mirtes para explicar todo o ocorrido, e
ela, como uma boa protetora dos animais, concordou com a ideia. A partir daí,
passei a ter meu próprio assistente: Juninho, o passarinho.
No início, eu não deixava ele sair da gaveta. Com o tempo,
porém, ele foi melhorando ao ponto de não se contentar mais em ficar preso.
Passei a deixá-lo em cima do balcão, e toda vez que um cliente aparecia, achava
graça dele. Era quase uma marca registrada. Sempre que falavam de mim, era por
causa do passarinho: "Vem aí Marley e o Juninho", "Olha lá, é o
menino do passarinho".
Eu havia ganhado uma identidade. Quer dizer, Juninho tinha
me dado uma identidade. Era engraçado pensar nisso. Eu havia salvado o Juninho,
ou Juninho havia me salvado?
Um dia, porém, algo ruim aconteceu. Eu estava voltando do
meu trabalho quando cheguei em casa e me deparei com meus pais sentados na
sala, me esperando.
"Por que você está tão ausente esses dias,
filho?"
Eu não quis responder, e ele continuou: "Eu e sua mãe
tememos que você esteja no mau
caminho. Se tiver algum problema, pode dizer. Nós estamos aqui para te
ajudar."
"Me ajudar?! Desde quando vocês estão aqui para me
ajudar?!" Foi o que pensei, mas mesmo assim eu não disse nada.
Subi para o meu quarto, contudo, no meio do caminho um pio
veio da minha mochila. Meus pais ficaram em alerta imediatamente, levantando-se
do sofá: "O que é isso?!"
Achei aquilo estranho. Eu não levava Juninho de volta para
casa. Inocentemente, abri a minha mochila, só para constar que o danado estava
escondido ali dentro. Antes mesmo que eu pudesse escondê-lo de novo, meus pais
puxaram a mochila de mim, assustados e irritados pela presença do animalzinho.
Meu pai me olhou com raiva: "O que significa isso?!"
"É o meu bichinho!" Não pude conter meu grito.
"Desde quando você tem um animal?! Você sabe que nós
não queremos animais aqui em casa!"
"Estava mantendo ele fora de casa, no meu
trabalho!"
"Que história é essa de trabalho?! Você tem muito o
que explicar, rapaz!"
Naquela noite eu tomei uma surra, e fui obrigado a prometer
que não traria mais o Juninho para dentro de casa. Felizmente, a casa do
Juninho não era ali, então eu não tinha com o que me preocupar... certo?
No dia seguinte, eu voltei ao trabalho apenas para ouvir
uma péssima notícia.
A proprietária explicou: "É que o aluguel aqui está
muito caro, e eu achei um ótimo ponto pela metade do preço do outro lado da
cidade. Infelizmente, vamos ter que nos mudar."
Eu me senti muito mal. Ter que me afastar tanto daqueles
bichinhos novamente era uma coisa que eu não queria fazer. No entanto, não
podia culpar Mirtes por causa disso. Perguntei a ela quanto tempo a gente ainda
estaria ali e ela me disse que seria uma semana. Era só disso que eu precisava.
Naquela semana, fiz tudo aquilo que tinha medo de fazer:
abracei os coelhos e os gatos, tentei pegar os peixes no aquário, brinquei de
cabo de guerra com os filhotinhos de cachorro. Acima de tudo, aproveitei bem o
meu tempo com Juninho. Ele já estava quase se recuperando, e pouco tempo
depois, já estaria voando de novo. Sem ele, eu voltaria ser o velho Marley de
sempre, então eu precisava aproveitar.
Aquela semana passou rápido. Nos últimos dias, fiquei
ocupado tendo que ajudar Mirtes a empacotar as coisas. Quando o dia da mudança
chegou, me despedi de todos os animais, incluindo Juninho. Mirtes disse que ia
cuidar bem dele. Se eu pudesse abraçá-lo sem esmagá-lo, eu abraçaria. Mas como
não podia, me contentei acariciando a sua cabeça. Ele parecia não entender que
eu estava me despedindo, o que me doeu mais ainda.
Acenei enquanto o caminhão da mudança e o carro de Mirtes
se afastavam do ponto. Senti que uma parte de mim tinha ido embora também.
Mesmo assim, virei e entrei em casa. Naquela noite talvez eu tenha chorado, mas
nunca ia admitir com tanta facilidade assim para as outras pessoas.
...
Algumas semanas se passaram desde então. Minha vida voltou
a ser a mesma, praticamente. Eu consegui outro emprego, em uma outra loja, mas
que não era nada parecido com o do petshop.
Em um desses dias, em que voltava do trabalho, fiquei
olhando para os fios dos postes, sem ter o que fazer. Alguns passarinhos
estavam pousados lá, e voaram quando eu me aproximei. No entanto, quando eu
estava prestes a entrar em casa, ouvi um pio familiar. Virei para fora, e vi as
cores alegres do meu amigo Juninho, pousadas sobre um dos fios dos postes. Não
pude conter um grande sorriso ao ver ele: "Juninho!" disse eu,
tentando não gritar.
Ele apenas piou de longe, como se lembrasse daquela vez que
meus pais me deixaram de castigo por causa dele. Mas eu podia sentir que ele
estava feliz e que, o que quer que aconteça, nós continuaríamos sendo amigos. E
que, apesar da distância, ele estaria sempre ao meu lado.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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