Sinopse: Uma bem-sucedida artista, apesar de controversa e militante, troca o auge de sua carreira com fama e sucesso para realizar sua obra mais contundente.
Aguares
de Tchello d'Barros
Acordou feliz. Ou melhor, acordaram Cicinha com
inúmeros telefonemas parabenizando-a por seu jubileu, afinal, não é todo dia
que se completa meio século de vida. Após beber um café forte, com um pouco de
cuscuz temperado com manteiga de garrafa, e de sobremesa um pedaço generoso de
queijo coalho com mel de engenho, acessou a internet pra conferir trocentos
parabéns nas redes sociais e ver seu nome em diversas mídias, badalando seus cinquenta
anos, boa parte deles dedicada a chamada arte. Artista premiada, sucesso de
público e aclamada pela crítica, sentia-se amarga, no entanto. Desligou o
telefone celular e resolveu caminhar um pouco. O sol cálido daquela manhã acalentava
sua caminhada a beira da lagoa, cujas águas lentamente deixavam o sol aparecer
por detrás dos prédios, Caminhava apenas, sentindo ainda um pouco de sono, sem
encontrar algum significado para esse número 50, até que as águas começaram a
brilhar como um tapete de estrelinhas estendido na superfície. Eram milhares de
peixes boiando, mortos. Já sabia que de vez em quando isso acontecia, pois o
canal da lagoa trocava pouca água com o mar e os peixes morriam por falta de
oxigênio. Mas o fato é que para Cicinha, o fato foi mais que isso, foi um
sinal.
Começou a sentir-se um pouco estranha, meditou
sobre o que já havia conquistado até ali. Achou que estava no lucro, para quem
veio ainda bebê com a família fugindo da seca nordestina. Eram tão pobres que
nem conseguiram chegar a São Paulo, tiveram que se acomodar na periferia do Rio
de Janeiro mesmo. Cresceu nessa periferia, sobreviveu à fome, à violência, aos
desamores, a morte dos pais. O que mais sentiu, foi a morte do avô, que havia
lhe ensinado a fazer bonequinhos de barro. Na produção de bonequinhos de barro
em afazeres cotidianos nascia a artista Cícera Socorro, misto de performer,
videoartista e instaladora, ícone da arte contemporânea carioca e nacional,
badalada nas principais galerias, queridinha da mídia, carreira internacional
galgada com dedicação obstinada, mas bem-sucedida. Famosa. Solitária. Infeliz.
Pensou no avô: uma lágrima caiu ao chão, reluzindo o sol daquela manhã de
verão, uma manhã de cinquenta primaveras.
Mas a verdade é que estava farta de tudo isso. Já
tinha um bom lastro de obras realizadas, muitos vídeos de suas performances
ousadas e questionadoras. Sentiu-se incomodada por estar há tanto tempo nessa
vida e não ter conseguido mudar o mundo. Divagava nesses pensamentos, enquanto
olhava ali, estática, os peixes prateados boiando, pareciam uma instalação de
arte conceitual. O leve movimento da água, produzia um efeito hipnótico em seu
semblante. Lembrou da premiação com a instalação de um pequeno aquário num
salão de arte, em que ninguém poderia alimentar o peixinho ou trocar a água,
até que ele morresse. Foi um escândalo. A ideia era chamar a atenção das autoridades
para o povo que morria de sede no Nordeste. Lembrou da intervenção urbana
espalhando um boato, onde a população foi alertada sobre um falso envenenamento
na água da cidade. Outro escândalo e novas premiações. Foi até detida por 24
horas, para esclarecimentos, mas ficou contente por ter mobilizado a opinião
pública sobre a questão da conscientização sobre a importância de não
desperdiçar a água. Lembrou do recente videoarte, onde gravou 1000 crianças
dizendo a frase “tenho sede!”. O vídeo bombou na Web e a artista foi convidada
para apresentar o trabalho na capital federal. Cada político da Câmara e do
Senado recebeu um convite para o evento, mas nenhum apareceu. Nadava nessas
lembranças, tentando ao mesmo tempo encontrar um sentido mais sólido para a
vida. Aos poucos foi nascendo uma epifania, uma visão, um alumbramento. Aqueles
milhares de peixes diziam-lhe um recado. Tomou uma decisão. Voltou ao estúdio,
enviou um apressado release para as editorias de cultura dos veículos de
comunicação, informando que começaria um novo trabalho.
Os jornalistas, colunistas e editores ficaram meio
atônitos quando leram que a obra consistia em chegar ao local de seu
nascimento, em pleno sertão e simplesmente ficar ao sol e a mercê das agruras
da seca, sem comer, nem beber e aos poucos ir definhando, até padecer
completamente, numa alusão aos sofrimentos de seus antepassados. A diferença é
que ela faria esse sacrifício por opção, como um manifesto, um protesto, uma
intervenção, sua última obra, uma obra letal sobre um tema fatal.
Viajou. Lá chegando, já estavam alguns repórteres
esperando-lhe. Bem que tentavam entrevistá-la, mas ela seguia firme, resoluta,
até um campo de terra árida, entre esqueletos de cabras, cacimbas ressequidas e
mandacarus espinhentos. Já nua, sentou-se na terra árida e enrugada de
rachaduras. E ficou lá, quieta, olhando para o nada. O sol queimando sua pele e
ela ali, sentindo a brasa do sol na epiderme, sem nada dizer nem fazer. Os
jornalistas e curiosos se arrumaram como puderam, uns com bonés, óculos escuros,
guarda-chuvas. Um repórter de TV trouxe um galão d’água no carro e compartilhou
o líquido com os presentes. Assim, acompanharam o primeiro dia e a primeira
noite do padecimento voluntário de Cícera Socorro.
No dia seguinte, continuavam todos ali, filmando,
fotografando, escrevendo. Alguns matutos locais improvisaram umas tendinhas
para acomodar aquela gente estranha da cidade grande. Mas ao redor da moça que
padecia, fizeram um grande círculo com velas acesas, num raio de vinte e cinco
metros ao redor daquele corpo feminino, cada vez mais árido, cada vez mais
seco. Foi aumentando a roda de curiosos, gente vindo das vilas e povoados
daquele pedaço de mundo, e mais carros com mais repórteres. Curiosos com
celulares e tablets fotografavam e filmavam, registravam tudo. Todos tinham
opinião, teorias, críticas, elogios. E a mulher lá, não falava com ninguém,
apenas apresentava um ar mais cansado. À noite dormida na terra, a falta de
alimento e água no corpo já denunciavam a dor e alguma fraqueza. Assim
passou-se o segundo dia. E o terceiro. E uma semana. Era o assunto da mídia
nacional e internacional. Tentaram tirá-la à força. A população não deixava, acostumada
com romarias e autos de fé, apenas permitia que se cumprisse sua sina, seu
martírio. Um pistoleiro afamado da região perguntou se podia matá-la para parar
o sofrimento. Não deixaram também. Visitantes jogavam comida e água, mas ela
nem olhava. E seu semblante ficando cada vez mais soturno, cadavérico.
Nessa comoção nacional, especulava-se politicamente
a autorização para transbordar o rio São Francisco em canais pelo Nordeste.
Falava-se na possibilidade de canalizar para a região o aquífero Alter do Chão,
da Amazônia, o maior do mundo. Debatiam-se mil soluções científicas e
econômicas contra a privatização da água. Enquanto isso, com ela já
praticamente sem forças, deixaram se aproximar um velho padre sertanejo, dali
da região mesmo, que havia conhecido o velho avô dessa peregrina. O ancião,
apiedado, nada disse, apenas se aproximou, ajoelhou-se e começou a rezar
baixinho, na métrica das carpideiras e freirinhas que rezavam em coro ali
perto. Num último alento, ela ouviu os murmúrios do velho e, juntando as
últimas forças, conseguiu se ajoelhar, olhando para o alto. A multidão
gritava, num vozerio desvairado que se misturava ao som dos cliques
fotográficos, o choro do povo e o zunido dos helicópteros.
O que de fato aconteceu naquela tarde calcinante,
ninguém sabe ao certo. Conta-se muita coisa a respeito, saiu muita bobagem na
imprensa, canções foram escritas, cordéis foram publicados e as lendas e causos
espalharam-se pelo caatinga. Dizem que a última coisa que o velho padre viu foi
uma pequena lágrima descendo dos olhos daquele pobre rosto de uma moribunda.
Uma lágrima cristalina, que rolou pela face e caiu num vão da terra rachada.
Nesse instante, ao tempo que ouviram um tremendo estrondo nas alturas, um raio
fulminante atingiu o peito da mulher. Um corpo caído. O povaréu aturdido. As
pessoas olhavam para o céu e viam as nuvens que se formavam rapidamente. Logo a
primeira gota de chuva caiu. O céu se desmanchando em lágrimas. O padre
agarrado ao rosário. O povo em polvorosa. Os repórteres em pânico. Um corpo jaz
sem vida. Ninguém jamais saberá o que exatamente aconteceu naquela tarde.
Sabe-se apenas que pela primeira vez em muito tempo caiu uma chuva torrencial
que inundou a região. Sabe-se apenas que aquela última lágrima misturou-se a
toda água que desceu das alturas naquela tarde tórrida perdida em alguma
esquina da história daquele velho sertão.
Conto escrito por
Tchello d'Barros
ProduçãoBruno Olsen
Carlos Mota
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
Copyright © 2020 - WebTV
www.redewtv.com
Todos os direitos reservados
Proibida a cópia ou a reprodução
Comentários:
0 comentários: