A Tela
de Amanda Kraft
Bateu a porta com força. Não se lembrou de
trancar a maldita. Sua mente estava focada naquilo que os olhos se negavam
esquecer. Seu coração fora despedaçado. Pegou uma tela em branco e a colocou no
cavalete. Ódio! Que cega e fere! Quase quebrou o grafite ao começar os
primeiros riscos. Como pôde? Fez o primeiro contorno sem nem perceber. Seus
pensamentos corriam soltos. Hipócrita!
Segundo contorno. Sua mente insistia em voltar à cena que pusera seu
mundo de cabeça para baixo. Riscou a tela novamente sem enxergá-la. Via apenas
o idiota na cama com outra. O próximo risco quase perfurou a pobre tela.
Por que sempre temos que acreditar que nosso
mundo será melhor se houver alguém caminhando ao nosso lado? Por que não nos
bastamos? Gritava a moça no silêncio da sala. Riscos cegos e febris. Tão negros
quantos seus sentimentos. Para a direita, para a esquerda. Um passo atrás.
Analisa a tela sem julgá-la. Quantas vezes dissemos que será a última vez?
Quebrou o grafite enquanto sua boca proferia perguntas ao apartamento vazio que
jamais teriam respostas.
Seu coração tremia. Nem se dera o trabalho de
tentar negar o óbvio. Os riscos passaram a ser rápidos e furiosos. A loira, esparramada sobre
seu corpo, era alguém que conhecera no bar que ele a levara. Burra! Deveria ter
sacado logo de cara. Aquela troca de olhares, quando se sentaram à mesa do
canto, sua preferida, não foi aleatória. Pegou um tubo de tinta a óleo azul e
apertou no prato com violência. O desgraçado tinha uma boa lábia. Enrolou-a
como se fosse uma adolescente deslumbrada com o primeiro elogio. Quando ela o
interpelou o maldito apenas sorriu.
— É apenas uma amiga.
— Não me pareceu apenas uma amiga. — Encarou-o
furiosa.
— Não vá estragar a noite, gatinha. Ou vai? —
Perguntou-lhe com voz mansa, porém seu olhar estava duro.
— Não.
Seus lábios reproduziam a lembrança do diálogo
eloquente que a feria. Uma pincelada dura, quase sem jeito, para a direita. Não
houvera testemunha, apenas ela cumprindo o papel da boa namorada. Namorada? Que
significado tal palavra teria para ele? Outra pincelada rígida levou o pincel
ao chão. A marca de tinta não a incomodou. Apenas uma lembrança persistente de
seu erro. Quem em sã consciência espera que um cara que te leva às nuvens, te
faz ver estrelas ao dizer palavras doces, jurando amor eterno na fusão de
corpos, vai logo sorrir para outra na sua frente como se você não existisse?
Gritou para as paredes imaculadas onde seus quadros acusavam dias felizes.
Um tubo novo. Amarelo Cádmio. Fora tão gentil e
encantador. Lindo! Como era lindo! Porém, perverso! Verde Folha. O tipo que
coleciona mulheres. Por que não percebi logo de cara que um homem desses jamais
se contenta com apenas uma? Que as usa como se fossem descartáveis. Idiota.
Basta um sorriso e já me derreti. Burra! Insana! Cinza. Da cor da sua alma.
Preto. Seus beijos intensos a fizera enlouquecer. Terebintina. O toque de suas
mãos sedosas a fez suspirar e desejar muito mais. Pincel. Maldito! Tinha que
ser tão desejável?
As lágrimas vieram anuviando os pensamentos e os
olhos. A boca se calou. A tela se transformou num borrão. Entretanto sequer
reparou. Estava apenas pondo para fora o ódio que se avolumara. Cuspia-o no
emaranhado de cores e traços cegos. Precisava de uma bebida. A adrenalina
estava alta. Correu à geladeira e pegou o vinho. Olhou o líquido escuro, pela
metade na garrafa verde, por alguns segundos. Sua mente se perdeu mais uma vez.
Bebeu do gargalo.
A porta da geladeira sofreu em suas mãos
furiosas. Aquilo sempre se repetia. Uma lição esquecida do passado. Bastou
apenas um segundo para revivê-la. Mergulhou no pranto em frente à tela úmida.
Outro gole. Verde musgo, misturado ao verde folha, com um toque de laranja.
Pincelada vigorosa para a esquerda.
Música. Precisava de algo alegre para afugentar
o quadro que cravara na retina. Rebolou no samba do abandono, cantarolando a
letra vazia.
— Quero te
encontrar e encenar o que escrevi pra mim. E transformar meus sonhos em atos
onde você tem o papel principal...
Sorriu com escárnio ao misturar o marrom com o
rosa pink. Sombreou. Sua vida era uma
sombra. Tantas promessas em vão. Tantas vezes fora ao chão se maldizendo,
rezando aos anjos, pedindo, implorando. Por que essa necessidade de amor? Não
poderia apenas se amar? Ser a mulher sobre o salto? Empoderada,
independente? Tinha que ser carente? Azul turquesa. Não! Turquesa não. Azul
lunar. Pinceladas cruzadas. Um gole no gargalo, a dor no coração.
O samba crescera. Ela sorria no refrão,
cantarolando para os rostos pendurados na parede que a fitavam sem vida.
Deveria ter pintado natureza morta. Foda-se!
— Vem me dar
calor, na esperança não há dor. Só a liberdade. Só a liberdade. Vem me
dar calor. Me faz juras de amor...
Um soluço no meio do refrão quase a faz derrubar
a garrafa. Uivou na noite, agachada em frente à tela. Os cabelos caíam soltos
no rosto borrado. A garrafa, quase vazia jazia, entre as pernas, manchando o
tapete. Ela não se importou. Nada mais importa. A marca da traição a fere. O
ódio avolumou-se. Ergueu-se trôpega. Nem tanto. Outro gole, outra cor. Violeta.
Apertou a bisnaga com força, respingando no vestido novo. Merda! Compraria
outro.
Nova pincelada. Agora mais calma. A tela tomava
forma, entretanto, a moça não tinha olhos para ela. Uma pincelada vigorosa e os
corpos entrelaçados faziam sua mão tremer. O ódio a consumia. Os olhos dele se
deliciando com a loira a enlouquecera. Não pôde se segurar. Prometera a ele que
não estragaria a noite, entretanto ele não parou de engolir a vadia com os
olhos. As pinceladas se tornaram vigorosas. O azul fundido ao preto deslizou na
parte superior. Ela o deixou no restaurante. Mandou-o para o inferno que era
seu lugar.
O ar frio da noite clareou seus sentimentos.
Estava sendo uma tola infantil. Afinal era uma mulher. Não uma dessas
menininhas tolas que acham que podem tudo por conta de um rostinho bonito.
Recriminou-se por um tempo enquanto ouvia o solado do scarpin na rua escura. Desculpar-se-ia. Caminhou resoluta até o
ninho de amor dele. Esperava encontrá-lo tão arrasado quanto ela, cheio de
remorso. Outra pincelada vigorosa. Esquerda. Direita. Meio. A maldita gritou
quando a viu aos pés da cama! Ele, em sua luxúria de macho
alfa, achou que fosse a mulher sobre ele, extravasando seus extintos animais.
Demorou a abrir os olhos e ver o ódio estampado na face da namorada a contemplá-los
em sua volúpia. Agora, ex-namorada. O pincel quase foi ao chão quando sua mão
tremeu diante da lembrança.
A loira rolou de lado. Ele ainda teve a ousadia
de convidá-la a se juntar a eles. O tubo cor de pele varreu a parte central da
tela. Suas mãos tremiam. Um misto de desejo quase a fez ceder quando o viu
estender as mãos, sorrindo manso, seduzindo-a. Que mal haveria? Derrubou o
pincel. Fechou os olhos, tentando apagar aquela imagem que a atormentava. Ele
era um homem de muitas. Talvez sua beleza o fizera assim. Precisava possuir e
ser possuído. Mas jamais sob amarras. A vadia também lhe sorriu. Com certeza o conhecia
melhor do que ela.
Um toque de preto e deixou a dor fluir. Deu um
passo à frente, então o ódio a dominou. Quase se deixara enganar. Por pouco,
insensata, não se embrenhou no meio deles. Apertou o pincel, como se o pobre
fosse o culpado. Deixou aquele maldito lugar esperando que ele viesse atrás
dela e visse o quanto fora idiota, pela segunda vez. Um borrão! Não veio.
Esperou alguns minutos e nada. Pegou a espátula. Colocou os ouvidos na porta.
Amarelo da direita para a esquerda. Ele gemia. A vaca também. Negro. Na tela e
nos olhos.
Saiu batendo o salto na penumbra do corredor,
sentindo o coração martelando nos ouvidos. Marrom. Seus olhos enxergavam apenas
o vermelho sangue. Deixou o prédio com a respiração acelerada. Alguém buzinou
quando atravessou a rua sem olhar para os lados. Magenta. Encostou o corpo no
prédio vizinho. Deixou o soluço romper o vazio da noite. Carros passavam
velozes pela rua quase deserta. Pensamentos destilavam ameaças. Por que com
ela? Voltou, abandonada, para a segurança do lar, onde tudo era familiar e
calmo. Branco. Pegou o vinho na geladeira. Roxo. Uma, duas, três taças que
bebera feito água. Preto. Voltou a garrafa para a geladeira, quase na metade.
Olhou a primeira hora da manhã chegar mansa. Seu olhar endureceu. Azul. Nada no
celular. Nenhuma mensagem. Ainda ontem ele havia lhe dito que seu sonho era se
casar. Ter filhos. Já estava na hora de assentar. Laranja. Tinha certeza de que
lhe falara ao ouvido por tê-la escolhido.
Sépia. Pegou a bolsa. O carro. Ele teria que lhe
dar algumas respostas. Pele. Estacionou dois quarteirões longe do prédio.
Precisava caminhar novamente. Refrescar as ideias embriagadas. Prestava atenção
apenas nas batidas rítmicas dos passos apressados. Esse compasso a acalmava e
ao mesmo tempo lhe dava coragem. Agora sim. Turquesa. Da cor daqueles olhos
mentirosos. Esgueirou-se pelo saguão do prédio. O vigia estava distraído ao
interfone. Ganhou as escadas. Teria coragem? Um pouco mais de tempo. Misturou
marrom e amarelo. Tentaria a porta. A vadia teria ficado. Com certeza, ela
ficaria. Não perderia a oportunidade de acordar nos braços meigos do traidor.
Girou a maçaneta. Pele. Lá estavam os dois. Saciados. Adormecidos no sono dos
justos. Ficou um tempo contemplando a cena. A bagunça na sala, revelando as
roupas espalhadas, lhe revirava o estômago. Verde. Musgo.
Sentiu vertigem. Respirou. Clareou as ideias.
Abriu a bolsa devagar. Quem iria primeiro? Ele? Ela? Ela? Ele? Negro. Ele!
Andou em silêncio. Não seria bom se acordassem. A vadia estava do lado esquerdo
da cama, de bruços. Ótimo. Cinza. Ele ronronava. Ela adorava aquele som. Mas
não se permitiria levar. Vermelho. Contemplou os dois, num sentimento profundo.
Tudo escureceu.
Havia sangue em suas mãos misturado à tinta, mas
ela nem percebeu. Gostava de usar os dedos, além dos pincéis. Um último gole,
antes de deixar a garrafa escorrer. Riu feito menina. Branco. Precisava dar um
pequeno efeito de luz em algum lugar da tela, ela se lembrava. Mas abraçou o
corpo e girou no ar, feliz. Estacou em frente à tela, horrorizada. Ele estava
bem à sua frente. Sorria com olhos mortos, mostrando dentes manchados de
sangue. Ela gritou, fechando os olhos, enquanto seu corpo tombava desacordado.
Toques estridentes da campainha a trouxeram de
volta. A cabeça doía na luz estridente
da manhã. Ergueu-se confusa. As mãos marcadas de um vermelho queimado, seco.
Limpou-as no vestido. Caminhou trôpega até a porta e girou a maçaneta. Dois
homens uniformizados pediram para entrar. Encarou-os perplexa. Disseram ter
algumas perguntas a fazer. Ela assentiu, atordoada. Perguntaram se ela o
conhecia. Sim. Por que negar? O que é isso em suas mãos? Tinta. Passei a noite
pintando. Um deles pediu para ver a obra. Ela não negou. Nem sabia o que
colocara naquela tela. Apenas despejara seus sentimentos sombrios.
Os três contemplaram a profusão de cores em
silêncio. Ela gritou e foi amparada por um deles. O amante permanecia na cama e
de seu peito aberto jorrava sangue, encharcando o carpete. A loira estava no
chão, encolhida entre a cama e a parede. A mão pendia desamparada no lençol que
lhe cobria parte do corpo. Havia um grito mudo em seus olhos castanhos opacos,
revelando um ferimento que abria a boca até a orelha. Uma faca fora cravada no alto da
cabeça. Na parede atrás da cama, em vermelho sangue, a palavra: TRAIDOR.
— Venha conosco, senhora.
— Eu não entendo. Por que estou sendo levada?
— O quadro. — Respondeu o jovem simpático,
contemplando-a desconfiado.
— O que tem ele? — Perguntou sentindo o ódio
avolumar-se dentro dela. — Não posso mais me expressar? Você quer o quê? Uma
pintura de natureza morta?
— Senhora, venha conosco. O vigia do prédio
disse tê-la visto se esgueirando pela escada na noite passada.
Ela nem pensou em negar. O desgraçado estava
ali, rosto plúmbeo, sorrindo num esgar ao lado dos policiais. Segurou o grito
confesso. Nem morto a deixava em paz. Maldito.
— Preciso ir ao quarto pegar minha bolsa.
— Por favor, não demore. Vou levar a tela para a
delegacia.
— Não.
— É sua confissão.
Ela o encarou com o cenho franzido. Seguiu para
o quarto, conduzida por mãos de aço. Disse que iria ao banheiro. Pediu para que
o jovem fardado esperasse do lado de fora. Não demoraria. Fechou a porta atrás
de si e segurou o grito na garganta. Lá estava ele
na porta da varanda, chamando-a para a escuridão. Seus lábios sorriam,
entretanto o olhar era aterrador. Estendia-lhe a mão em convite. Ela olhou para
a porta que gemia nas mãos de aço que a açoitava. Sabia o que a aguardava.
Encarou-o mais uma vez, aquiescendo.
Seu último pensamento, antes de saltar para o
vazio, foi para a tela no suporte. Não havia arrependimento. Aquele fora seu
melhor trabalho.
Música
Vem Me Dar Calor - Lamaris
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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