O Cavalo Reginaldo
de Fidel Mathias
Conta-se que numa pequena vila do interior existia um
cavalo que se chamava Reginaldo. Era um cavalo puxador de carroça, manso e
habilidoso em seu ofício. Seu dono era um carroceiro de nome Zé Propécio; um
sujeito simpático, apesar de sistemático, e que vivia quase que unicamente do
seu trabalho de carroceiro, desde a hora que acordava até a hora em que dormia.
Mas, o que importa mesmo nessa história é que
Reginaldo era um cavalo muito famoso; não necessariamente por ser um habilidoso
animal de carroça e muito menos por pertencer ao matuto carroceiro Zé Propécio.
A verdade é que o Reginaldo tinha a fama de sorrir para as pessoas. Isso mesmo.
Bastava alguém passar perto dele e dizer “bom
dia” ou “boa tarde Reginaldo” para
que o simpático pangaré abrisse um largo sorriso, de orelha a orelha, mostrando
todas as suas encardidas canjicas que tinha dentro da boca.
Podia estar solto, comendo o seu capim, ou até mesmo
encilhado à carroça, carregando pesadas cargas; não importava, o sorriso de
Reginaldo sempre estava lá, espontâneo e verdadeiro. Isso fez com que o cavalo
passasse a ser adorado e, até mesmo, reverenciado pelos moradores daquela
pacata vila perdida
nos confins do sertão.
Não demorou muito para que sua fama se espalhasse para
outras vilas e até mesmo para lugares mais distantes, atraindo gente dos mais
variados tipos e pelos mais diversos motivos. Uns viam vê-lo por mera
curiosidade, outros por achar que ele era um animal milagreiro e, por isso,
poderia curar doenças e outros infortúnios que acometiam aquelas malogradas
pessoas de vida besta e sem graça.
Até que num certo dia, chegou lá na vila um
comerciante, atraído pela história do tal cavalo sorridente. O seu problema não
era doença, nem incômodos com dívidas e, muito menos, infelicidade no amor. O
problema do comerciante é que ele não sabia sorrir. Nunca, desde criança, não conseguira dar uma
boa risada e nem mesmo um leve sorriso sequer. Não se sabia, exatamente, o
motivo de tal desventura, talvez por ter tido uma infância dura e sem
diversões, ou talvez por não ter recebido, ao longo de sua vida, gentilezas e
sorrisos sinceros que fizesse despertar nele a vontade de sorrir.
Com o passar do tempo, o comerciante percebeu que não
conseguiria se livrar desse mal através das pessoas, pois as pessoas pouco
sorriam para ele e, quando o faziam, não parecia ser de um gesto verdadeiro. Sendo assim, por que
não aprender a sorrir com um animal? E não um animal qualquer, e sim um
daqueles que sorria, de forma sincera, para tudo e para todos.
O comerciante ficou perambulando pela vila, que não
era muito grande, atrás de informações que o levasse até o bem-aventurado
cavalo. Até que passou perto de uns meninos magrinhos que jogavam bola embaixo
da sombra de um jatobazeiro. Parou e ficou ali, observando, acompanhando o vai
e vem daqueles meninos que corriam felizes e sorridentes, atrás de uma bola
murcha e sem cor. Escolheu um deles e perguntou:
___ Ei, moleque. Sabe me dizer onde eu encontro um tal
cavalo risonho de nome Reginaldo.
___ Sei sim senhor. ___ respondeu o moleque de forma
distraída. ___ Ele fica ali, no final daquela ruazinha. É só o senhor seguir
direto e vai dar de cara na casa do Seu Zé Propécio, o dono do cavalo. A essa
hora ele deve de estar lá na porta, comendo capim, como de costume.
___ Quem tá comendo capim menino? O cavalo ou o tal do
Zé Propécio? ___ perguntou o comerciante com cara de poucos amigos.
O menino olhou meio que espantado para aquele homem
que tinha um semblante amarrado e modos impacientes. Então respondeu:
___Uai seu moço. Deve de ser o Reginaldo né. Acho que
o Seu Zé Propécio não come capim não!
O comerciante deu as costas para o menino, sem sequer
agradecer pela informação e foi andando pela rua comprida e apertadinha até
chegar no local onde, supostamente, morava o tal cavalo sorridente. Não viu
nada e nem ninguém.
___ Será que não
estão em casa? Será que o cavalo ainda está na lida? Pensou o carrancudo
comerciante.
Resolveu chamar, bateu palmas, uma, duas, três vezes e
nada de aparecer alguém. Já estava desistindo e dando meia volta, quando um
senhor, já meio idoso, apareceu na porta da humilde casa para atender ao
estranho.
___ Pois não seu moço. O senhor deseja alguma coisa?
___ perguntou o senhor.
O comerciante então respondeu:
___ Olá. Boa tarde. Uns moleques ali da pracinha me
informaram que é aqui que eu encontro um cavalo que sorri para as pessoas,
imaginei encontrá-lo aqui na porta...
___ Olha seu moço. ___ disse o Zé Propécio. ___ É aqui
mesmo, mas ultimamente eu não deixo ele aqui na porta mais não. Estava
aglomerando muita gente e isso estava tirando nosso sossego.
Continuou o dono do cavalo:
___ Tinha dia que juntava tanta gente que ficava até
difícil de saber quais eram as intenções de cada um. Já vi de tudo aqui na
minha porta por causa do meu cavalo. Certa vez um homem de boa aparência e de
fala macia até tentou roubá-lo de mim, o senhor acredita numa coisa dessa? De
outra vez apareceram uns moços que tiveram a ousadia de querer levá-lo para a
capital para que pudesse ser estudado pelos cientistas. Sem contar no tanto de gente querendo passar
a mão no bicho ou até mesmo querendo arrancar pelos de sua crina, pois achavam
que isso ia trazer sorte ou acabaria com os males de cada um. Fora isso, ainda
tenho que aguentar uma procissão de gente que fica nos seguindo pelas ruas
quando estamos trabalhando, dá até medo de atropelar alguém com a carroça.
___ Então, como faço para vê-lo? Seria possível, ao
menos, eu dar boa tarde para o Reginaldo? ___ perguntou o comerciante.
Foi a vez do carroceiro falar:
___ Bom, ele está lá no fundo do quintal. É para lá
que eu levo ele toda vez que a gente chega dos carretos; assim ele tem paz para
comer seu capim e beber sua água e não corro o risco de alguém tentar roubá-lo
de mim. Mas, se o senhor deseja ver meu cavalo, tem que pagar.
___ O quê! Pagar para ver seu cavalo? ___ perguntou o
comerciante em tom de indignação. ___
Mas isso é um absurdo.
___ Absurdo nada seu moço. Eu não sei qual é o
problema que o senhor quer que ele resolva, mas a risada do Reginaldo pode ser
a solução para os seus males, seja ele qual for. Além do mais, o Reginaldo é
boca fina, gosta de um bom capim e com muita fartura e isso me custa um bom
dinheiro.
O comerciante pensou em dar meia volta, pensou em
dizer injúrias para o carroceiro, do tipo: se
quer vida boa para o seu cavalo, então que o tire do trabalho duro de puxar
carroça. Mas, achou mais prudente se calar e aceitar a situação. Afinal de
contas, tinha vindo de muito longe, já havia gasto um bom dinheiro na viagem e
ainda teria que gastar mais para comer e dormir na pensãozinha empoeirada da
vila. Desembolsar uns contos a mais não ia fazer muita diferença e ainda
poderia resolver o seu problema.
___ Tá bom, quanto custa? ___ perguntou o comerciante.
___ Quanto custa o quê? ___ respondeu com outra
pergunta o carroceiro.
___ Uê, quanto custa para ver o tal do cavalo, não é
disso que estamos falando?! ___ respondeu o comerciante num tom de impaciência.
___ São dez contos e o senhor pode ficar perto dele
por cinco minutos; pode conversar com ele, cumprimentá-lo... só não pode ficar
passando a mão ou tentar tirar fios da sua crina, isso não é permitido.
___ Dez contos? Mas isso não é muito dinheiro? ___
reclamou o comerciante.
___ Muito dinheiro nada seu moço. ___ respondeu o
carroceiro. ___ O senhor é uma pessoa distinta e parece ser de boas condições.
Não justifica ficar aí amarrando mixaria, ainda mais para ver o Reginaldo.
O comerciante ainda ficou, por um momento, encarando
aquele astuto carroceiro e pareceu ficar um pouco relutante com aquela
negociação, mas, por fim, aceitou as condições. Além do mais, já era fim de
tarde, ele estava cansado após ter feito longa viagem, queria resolver aquilo
logo e ir embora dali.
Tirou do bolso os dez contos e entregou ao carroceiro
que o levou até o fundo do quintal e lá estava ele, o Reginaldo, embaixo de um
pé de manga, comendo tranquilamente o seu capim.
___ Fique à vontade moço, pode chegar lá perto dele.
Ele não morde não, ele mostra os dentes, mas é só para sorrir. ___ disse o carroceiro
dando uma risada de sua própria piada sem graça.
O comerciante chegou bem perto do cavalo que levantou
a cabeça logo que percebeu sua aproximação.
___ Boa tarde Reginaldo. ___ disse o comerciante de
forma meia desconcertada e olhando para os lados para se certificar de que mais
ninguém estaria presenciando aquela cena.
O cavalo, como já era de costume, olhou para o homem e
abriu um largo e farto sorriso, de orelha a orelha e com direito a um leve e
simpático relincho. E ficou assim, por um bom tempo, encarando o homem e
sorrindo, de forma espontânea e sincera.
O comerciante ficou meio encabulado, pois, por mais
que soubesse da fama do Reginaldo não esperava que, de fato, ele sorrisse de
forma tão verdadeira. Então abaixou a cabeça e sentiu uma tristeza, o fato de
estar ali na frente do cavalo ainda não foi o suficiente para fazê-lo sorrir.
Deu meia volta, despediu-se do carroceiro e do pangaré, fez o caminho de volta
pela ruazinha, até chegar na pracinha onde, mais cedo, as crianças magrinhas e
felizes, jogavam bola. Sentou num banquinho de madeira embaixo do pé de jatobá
e suspirou. O que restava a fazer agora era procurar a tal pensãozinha para
poder descansar durante a noite pois, no outro dia, voltaria para sua terra.
No dia seguinte, bem cedo, o comerciante saiu da
pensão onde ele havia dormido e foi procurar uma bodega para poder tomar um
café antes de ir embora. Passou pela pracinha e percebeu que o menino magrinho
e feliz do dia anterior estava sentado no banquinho da praça, de cabeça baixa e
muito triste.
___ O que aconteceu moleque? Acaso está doente? ___
perguntou o comerciante de forma carrancuda, como sempre.
___ Nada não seu moço. É que nossa bola rasgou no jogo
de ontem e por isso não tem mais como a gente brincar.
Então o comerciante lembrou da sua infância, quando
tinha mais ou menos a idade daquele garoto, dos dias em que a meninada da sua
rua se juntava para
brincar de bola ou de pega-pega. Todos se divertiam, menos eles, pois não podia
sair de casa, a não ser que fosse para trabalhar ou para acompanhar seus pais
na ladainha da igreja.
Abaixou a cabeça e foi em direção à bodega que ficava
ali perto. Entrou e pediu um café. Ficou sentado, observando aquele lugar que,
além de servir café com pão, ainda tinha uma mercearia, sortida e bagunçada.
Percebeu então que atrás do balcão, penduradas numa corda de barbante, havia
umas bolas de futebol. Ficou tomando seu café e olhando para elas, ficou
pensando em como deveria ser divertido jogar bola, correr, cair, sujar e sorrir
no meio da molecada.
Terminou o café e foi até o balconista:
___ Moço, quanto custa uma bola de futebol?
___ Quatro contos. ___ respondeu o vendedor.
___ Vou querer duas. Pega aquelas do alto que são mais
coloridas, por favor.
Assim que pagou a conta, o comerciante saiu da bodega
com as bolas coloridas na mão e foi andando em direção à pracinha. Lá estava o
menino que, à essa altura, já tinha a companhia de mais dois magricelas. Todos
sentados no banquinho, tristes e desconsolados.
___ Ei menino. Toma. É para vocês brincarem.
___ Nossa seu moço. É para nós? Muito obrigado! ___
respondeu o menino, abrindo um sorriso de orelha a orelha, do mesmo jeito de
sorrir do cavalo Reginaldo.
___ Mas, por que duas seu moço? ___ perguntou o
menino.
___ Uma fica de reserva, caso a outra se estrague e
deixa de relia e vá brincar com seus amigos, anda. ___ disse o comerciante de
forma desajeitada.
Nisso, os meninos começaram a brincar. O comerciante
ainda ficou ali por um tempinho, observando e admirando a alegria daqueles
meninos que agora já eram mais de cinco.
Então o moleque magrinho olhou para o comerciante e
perguntou;
___ O senhor não quer brincar com a gente? Vem brincar
um pouquinho, é divertido.
O comerciante ficou surpreso com o convite que até se
atrapalhou na resposta.
___ Não, não meu filho. Já não tenho mais idade para
isso. Isso é coisa de criança.
___ Que nada seu moço, jogar bola é coisa de adulto
também. Meu avô, que já é velhinho, costuma jogar bola com a gente quando ele
vem aqui na vila. E ele ainda pula para comemorar quando faz gol.
Ainda pego de surpresa o comerciante entrou no
campinho, sem saber exatamente o que estava fazendo. E começou a correr atrás
da bola com os meninos. Foi correndo, foi suando, foi chutando, foi se
empoeirando, até que, sem querer, um dos meninos lhe deu uma bolada na cara.
Ele parou, passou a mão na testa, olhou para o menino e, para surpresa de todos
e até dele mesmo, começou a sorrir. No início foi um sorriso tímido e sem jeito
que logo foi se transformando em um sorriso maior e, não demorou muito, aquele
sorriso se converteu numa longa e interminável risada.
Suas risadas foram tantas que até contagiou os meninos
que também deram boas gargalhadas com toda aquela diversão. O comerciante
brincou tanto de bola que, em pouco tempo, estava esgotado e muito feliz. A
meninada também se divertiu muito e, por fim, todos se sentaram no banquinho e
no chão da pracinha, inclusive o comerciante, exaustos e contentes.
Foi então que ele percebeu que uma carroça se
aproximava, vinda da ruazinha comprida e apertada em direção à pracinha, puxada
por um cavalo altivo e de aspecto feliz. Estavam começando a lida do dia. Assim
que passou por onde estavam, o carroceiro lhe acenou com a cabeça e o
Reginaldo, bom, o Reginaldo olhou para ele e lhe deu um largo e volumoso sorriso,
daqueles que iam de orelha a orelha, como de costume.
O comerciante ainda ficou observando a carroça até ela
sumir na curva da esquina, então sacudiu a poeira da roupa, limpou o suor do
rosto e, novamente, sorriu para as crianças que estavam à sua volta. Foi um dia maravilhoso e
inesquecível.
Então a vida continuou. Os meninos continuaram a
brincar de bola, todos os dias, naquela empoeirada pracinha, protegida pela
sombra do jatobazeiro. O comerciante voltou para a sua terra, feliz por ter
aprendido a sorrir e, daquele dia em diante, passou a sorrir sempre. E o
Reginaldo continuou a ser o famoso cavalo sorridente. Não importava onde ele
estava, se na rua puxando carroça, se no fundo do quintal comendo capim. Ele
sempre estava pronto para sorrir e fazer as pessoas sorrirem, mostrando todas
as suas canjicas da boca, como diziam as pessoas daquele lugar.
Tudo isso aconteceu em um lugarzinho perdido, num cantinho qualquer e quase esquecido, nos confins do sertão.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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