No Ar
de Diógenes Carvalho Veras
Aeroporto
dos Guararapes, Recife, Brasil.
Quarta-feira,
13 de julho de 2011, 06.14 h.
ANDREIA SILVA SE DETEVE
no amplo saguão iluminado. Com a bolsa de napa preta do
notebook atravessada no ombro esquerdo, ela
agarrava a
alça da maleta enquanto buscava a cafeteria.
As portas
do refeitório do hotel só abririam aos hóspedes às 7, conforme o aviso no
cartaz em cima do balcão da recepção. Andreia tinha decidido abandonar mais
cedo sua suíte e rumar de táxi ao aeroporto.
Precisa confirmar
o embarque e beber algo quente, reconfortante. Está animada, não haverá mala a
despachar na bodega do avião e ter de recolhê-la mais tarde na esteira rolante.
A mão sobre
a boca ocultou um bocejo — despertara praticamente de madrugada —,
sentiu nos lábios o toque frio dos seus anéis trabalhados em ouro e o caro
perfume adocicado exalando entre os dedos magros. Enquanto digitava as
informações no teclado digital do terminal de
check-in.
Após
confirmar o horário do voo da companhia regional Poti Linhas Aéreas, programado
para decolar às seis e cinquenta, enfiou o papel do embarque no bolso do seu
terninho azul escuro engomado à perfeição.
Não foi
difícil para Andreia distinguir a
aglomeração reunida em torno da cafeteria situada ao fundo do corredor, a uns
cinquenta metros de onde estava, perto das fileiras de carrinhos para bagagens.
Joga
atrás as madeixas clareadas e estas lhe caem charmosas nas laterais da face sem
maquilhagem. Inclina a maleta de bordo, e a faz rolar. O estômago roncou quando
o aroma agradável do café penetrou suas narinas.
Fizera
bem em vir mais cedo ao aeroporto. Evitando topar no fluxo congestionado das
avenidas esburacadas do Recife, que ela sabia engarrafadas nas horas pontas. Ganhara
tempo extra para o desjejum antes do embarque.
Pensou no
pai. Apesar de o ter perdido a pouco mais de mês, depois de meses lutando contra
o câncer, ela não se permitia baixar a guarda. Retornava agora à casa com o
trabalho concluído. Claro que nunca o esqueceria, levava-o na mente aonde fosse.
Seu amado pai. Ao longo dos meses tivera presente a severidade do seu estado de
saúde. Temendo perdê-lo preparou-se para essa possibilidade e fez o que tinha
podido por ele. Ficando em sua companhia sempre que as folgas das inúmeras
viagens a permitiam. Era sua única filha. O processo de deterioração de sua
saúde foi tão rápido! O fim chegou antes do que Andreia supunha, três meses
após o diagnóstico agressivo no pâncreas. Chorara muito e sua mãe ficou
arrasada. Agora, sem a presença dele, devia cuidá-la, a idosa vivia só. Quanto a
ela, tinha a própria família esperando-a ao final de cada viagem. Retornava a Natal
mais uma vez. Em alguns dias faria quarenta e cinco anos, mas pela primeira vez
não via motivos para celebrar.
Distraiu-se
namorando a própria imagem na vitrine do balcão de alimentos do bar. Pagou
com o cartão, pegou a bandeja e sentou-se ao redor da mesinha
redonda. Bastou um trago da bebida quente para encher-se de energia. Para
desgosto do seu paladar a atendente tinha adicionado ao leite mais café do que
estava acostumada. Obrigou-se, então,
a suavizar a mistura. Rasgou sem culpa dois sachês de açúcar mascavo e
verteu-os no líquido, ignorando sua regra de
satisfazer-se com a porção de um invólucro. E mordeu o pão.
Meu Deus! Depois disso vou ter que me matar na
academia por umas duas horas sem descanso!
Animada,
relembrou a recente cirurgia estética a que se submetera antes do prognóstico médico
do pai quando ele ainda parecia gozar saúde. Apesar de bem sucedida, ela logo sofreria
durante meses tendo que suportar as notícias das constantes internações dele. Ao
contrário dos revezes do pai, Andreia tinha se recuperado bem da plástica. Desfrutava da deliciosa sensação de autoestima que
lhe envolvia no aeroporto, após sobreviver ao seu “sacrifício da faca”.
Empenhara-se
com gana em contar a história acerca de sua
cirurgia a cada uma das amigas que a visitavam, encorajadas a ouvirem-na
durante o seu período convalescente. Andreia esquecia,
nessas ocasiões, o abdômen dolorido dos primeiros dias após a
intervenção, encurvada no espaldar da poltrona instalada na suíte do primeiro
andar da casa nova deles.
Quando,
então, o médico-cirurgião recebeu-a na luxuosa clínica do Centro Comercial,
estampando um sorriso encantador, apontou gentilmente a
cadeira macia para que ela estivesse cômoda, encorajando-a de modo convincente.
Sua decisão em submeter-se ao procedimento cirúrgico valeria a pena, disse ele,
em pouco tempo ela se sentiria uma nova mulher.
— Sua satisfação não tem mesmo preço, dona
Andreia! Além do mais — garantiu —, é uma técnica segura.
Evidentemente — ressaltou —, a senhora se
alimentará, doravante, de forma adequada, para que perdurem os
resultados.
— Claro, doutor! Seguirei suas orientações à
risca. Aliás, eu só vim aqui — confessou, em
tom alegre — porque o senhor foi bem recomendado por duas
das minhas melhores amigas!
— Ora, obrigado! — Andreia percebeu-o baixar a
vista e estudar o volume dos seus seios sob a finíssima bata branca que a
enfermeira a tinha feito vestir. — Também deverá se
exercitar regularmente — disse, alçando a vista e
encontrando os olhos dela —, mas não se preocupe,
eu indicarei o momento certo após a cirurgia. — Dispensou outro amável
sorriso, e levantando-se, indicou-lhe a pequena
cama ao lado. — Deite-se, por favor, vou examiná-la.
Lembrou-se
ela do momento em que o cirurgião lhe retirou definitivamente a cinta envolta à
cintura. Tinha corrido imediatamente a medir-se frente ao espelho do
consultório.
— Ai! como estou feliz, doutor! —
A intervenção lhe pareceu realmente o melhor investimento em que
havia apostado nunca. Gastara respeitável soma.
Ela
apreciou o volume, o contorno dos seios e a linha espetacular do abdômen. Já
não havia rastros da passagem dos três filhos: o de 27, o de 14
e a caçula de 12 anos. Era quase como reviver sua
juventude dentro de um biquíni cavado se o quisesse.
— Não posso mais exagerar nas quantidades que
como — ressaltou à melhor amiga —,
e botar tudo a perder agora que posso exibir a barriguinha plana dos vinte
anos, minha querida! Não mesmo! — tinha prometido,
ainda tesa na poltrona do quarto, e ambas gargalharam.
Logo depois,
recordou, veio a má notícia da piora do pai. Quando tudo acabou ela julgou que jamais
se recuperaria da dor de sua partida. Ainda chorava as saudades de vez em
quando.
No
aeroporto, escancarou as páginas da agenda e
começou a programar as providências consideradas urgentes. Sorvendo goles do café
quente. Uma delas era contar ao marido e aos três filhos: Paulo, Anderson e
Mariana, assim que pusesse o pé na soleira da porta de casa naquela mesma manhã,
o interessante teor de um dos e-mails lidos na noite anterior.
Darei uma boa notícia para toda a família, disso eu não tenho qualquer
dúvida!
A ideia
fez-lhe sorrir. Ligara para Mateus no dia anterior e
comentara por alto suas pretensões, mas tinha preferido não lhe adiantar nada.
Diria pessoalmente. Não constituía uma opção arriscar-se em decepções, a morte
do pai tinha-lhe provocado dores na alma e ela ainda não se tinha refeito
totalmente. Se sentiria mais segura se o revelasse olhando diretamente nos
olhos do marido e avaliando como ele reagia, em vez de à distância. Tudo estava
saindo melhor do que planejara.
Considerou
a decisão. Não se equivocava ainda que a relação com Mateus não fosse das
melhores nos últimos meses. Se ele se agarrara a ideia de tocar firmemente seu
plano de doutoramento na Itália, ela, por outro lado, tivera cuidadosamente
outros aspectos em conta, e não o queria provocar
por nada desse mundo.
Ele ao
menos tinha respeitado a dor da perda do pai dela. O sogro foi seu “segundo”
pai, ele mesmo o confessara aos amigos durante a missa de sétimo dia havia pouco
mais de mês. Tinham durado meses as divergências no matrimônio deles, mas eram
agora pouco mais que gotas sujas na bacia de água limpa dos vinte anos juntos. Dera
lugar a uma trégua entre eles.
Bem...
tratarei de fazer a minha parte, ninguém poderá me acusar do contrário se as
coisas não voltarem a funcionar como antes!
Arqueou a
vista e suspirou profundamente. Ao fim e ao cabo tinha ponderado o futuro dos
três filhos, sobretudo dos dois pequenos. O mais velho já podia perfeitamente
se valer por si ao ter definida sua profissão.
Levou
minutos registrando outras tarefas a cumprir, de que
podia se lembrar, nos
horários e dias correspondentes nas folhas da agenda. Bebeu,
por fim, o conteúdo da xícara ouvindo ao fundo a música
agradável do restaurante. Durante o trajeto até Natal o único lanche que
costumavam servir a bordo era o pacotinho de biscoito.
Apenas cinquenta minutos... não comerei nada
mais até o almoço!
Suspenso
pelo fio de aço pendendo do teto, o relógio do terminal mostrava precisamente 6:34
quando Andreia deslizou sua maleta até o portão de embarque. Foi a
antepenúltima a mostrar o bilhete ao bonito comissário de gravata vermelha (não
pôde deixar de notar a discreta beleza do rapaz e a barba bem desenhada no
rosto semelhante ao do marido cuja pele era negra como café), e ar amável atrás
do balcão móvel da companhia. Cruzou a porta envidraçada e avançou vários
metros sobre a pista do aeroporto, o vento suave lhe acariciou a pele fresca,
obedecendo a fila indiana até subir a escadinha retrátil da pequena aeronave.
O céu
tropical tingira de vívido azul a agradável manhã.
Justamente
às 6:50, o bimotor modelo LET-410, com 13
passageiros e três tripulantes, taxiou na pista principal enquanto a aeromoça
esguia e impecavelmente vestida se equilibrava sobre saltos no corredor
estreito da aeronave, entediando os passageiros com normas de segurança. Dois
minutos depois, o avião acelerou sobre o
asfalto.
Através
da janelinha, Andreia viu as faixas brancas pintadas
simetricamente ao longo da pista passarem por ela cada vez mais velozes. Sentiu
o efeito da ilusão ótica. Reminiscências da viagem de poucos dias lhe povoam
agora à mente, guardadas no fundo do coração. Por alguma razão ela se recorda da
época em que vivera em Roma, quando sentia imensos ciúmes das colegas de
trabalho do marido, agora parte do seu passado. E sorri. Mudara muito desde
então. Por sorte, chegaria mais cedo em casa após ter trocado de
voo. O marido certamente estaria à sua espera no desembarque, e ela se sentiria
feliz em vê-lo.
Quase no
final da pista, o avião levantou o nariz negro para
alçar voo. Da torre de tráfego aéreo, os funcionários ouviram o que pareceu ser um retumbante tiro
de canhão rasgando o ar. Mas a aeronave azul e branca de seis
toneladas ganhou altura e seguiu.
— Outro
daqueles fogos de artifício do lado de fora do aeroporto — comentou,
ao companheiro, um dos técnicos que
monitorava
o radar, após o silêncio prolongado do piloto. Ele não ignorava as centenas de
residências cercando o perímetro da pista do aeroporto, praticamente metido na
zona urbana densamente povoada da cidade do Recife, e então associou o som a
tardios festejos juninos.
Nem bem
passou-se um minuto, o piloto alertou pelo rádio a falha no motor
esquerdo. Tinha deixado de funcionar após soluçar com força suficiente para
estremecer a fuselagem por alguns segundos:
— Vamos voltar! — anunciou ele ao
copiloto, e em seguida comunicou sua decisão à torre.
Conforme
as instruções de praxe, o controlador de voo autorizou o retorno da nave
avariada à pista do aeroporto. Era uma emergência. Deveria o comandante
regressar pelo mesmo trajeto por onde baixavam os aviões que aterrissavam. Só
agora o técnico compreendia a origem do estrondo, mas sabia que,
naquelas condições, seria perfeitamente possível ao piloto pousar
a nave valendo-se apenas de um dos motores.
— Permissão concedida ao voo 4896.
Imediatamente
um protocolo foi ativado nas instalações do aeroporto.
— OK, retornando — obedeceu,
lacônico, o comandante, torcendo o manche com
dificuldade para tentar dar a volta.
Um minuto
depois, ele se deu conta de que a turboélice da asa direita também não tinha força suficiente
para impulsionar sozinha o avião de fabricação tcheca.
— Torre! — chamou outra vez. —
Não há como chegar ao outro lado. O motor direito não está
respondendo com a potência necessária.
Estamos
praticamente planando! — informou com voz trêmula.
Reagindo
ao tom aflito do piloto, o controlador umedeceu os lábios e tentou aliviar a
incômoda pressão. Precisava se esforçar ao máximo para
controlar o nervosismo,
contava ter calma
suficiente e ajudar o piloto na difícil missão que se avizinhava.
— Autorizado a pousar na cabeceira da pista 2! —
instruiu ele firmemente, depois do que pareceu um longo silêncio vindo da
cabine compacta do bimotor.
A
turbulência obrigou a aeromoça a sentar e abrochar-se o cinto. Ela estuda as
expressões nos rostos dos passageiros, caso algum deles precise estará preparada
a auxiliá-lo. Acomodados nos assentos, parecem inocentes à
gravidade, acostumados às ligeiras turbulências rotineiras do bimotor, e
habituados ao vaivém semanal entre uma cidade e outra da
costa oriental do Nordeste brasileiro. Trata de passar-lhes serenidade com seus
gestos medidos.
Arriscando
a manobra, o experiente piloto acentuou o giro da curva,
contando apenas com a reduzida velocidade de arrasto do aparelho. Dada a
extrema condição, aterrissaria por onde havia subido, em vez de
tentar alcançar o asfalto pelo outro lado, como lhe havia
instruído inicialmente a torre. Ciente, porém, de que correria o infortúnio de
chocar-se com outra nave que por desventura decolasse em sentido contrário
naquele instante, caso se equivocassem. Confiaria cegamente nas informações do controlador.
A
sucessão de estalidos no rádio e, a seguir, o nervosismo das vozes solapadas
entre o comandante, seu auxiliar de cabine e o técnico na torre:
— Emergência! Não chegarei... não há força
suficiente para..., tentarei sobrevoar a praia! — gritou o comandante,
guinando violentamente o avião à direita.
— 4896, relate sua posição! —
disparou o técnico.
São
avisadas a Equipe de Segurança do Aeroporto e o Corpo de Bombeiros.
Do outro
lado, o desespero tomou conta, o avião era pesado
demais para atuar como planador.
— … baixe o nariz, baixe o nariz,
pelo amor de Deus! — berrou desesperado o copiloto,
quase ao mesmo tempo em que o companheiro grudado ao manche vociferou qualquer
coisa. Luzes vermelhas ao lado dos mostradores no painel não paravam de piscar
e dardejar bipes.
— ... tentando... porra... me ajude aqui! Meu Deus... — foi a última frase que ouviram o piloto gritar.
Olhando
para cima e vendo que o avião voava rente à cobertura dos prédios luxuosos e
sem aparente ruído, o pedreiro de uma obra próxima ligou rapidamente a câmera
do seu celular, focou no céu e começou a gravar.
— O avião vai cair! —
gritou aos companheiros, enquanto filmava num esforço por não fazer tremer a
câmera.
Segundos
depois, o bimotor enfiou por detrás dos edifícios da orla de Boa Viagem e
desapareceu momentaneamente do alcance da tela do telefone,
em direção à praia.
O
operário e os dois colegas acabavam de trocar de roupa para começarem a
trabalhar, e decidiram ver o que tinha acontecido do outro lado do prédio,
que lhes obstruía completamente a visão.
No afã da
correria, o solo estremeceu sob os pés deles.
Foram as
primeiras testemunhas ante o único terreno baldio existente entre o paredão de
arranha-céus e o oceano Atlântico à frente. Boquiabertos diante do emaranhado
de metais retorcidos como tecidos dobrados, fios e cabos pendurados, cadeiras
destroçadas e a poeira subindo dos objetos desconjuntados,
formando um acúmulo de ferro velho desgrenhado.
Cerraram
os dentes e correram em direção ao
que
permanecia de pé: a cauda branca do avião, despontando do
matagal igual a um pavilhão voluntarioso. Em suas mentes só havia o desejo de socorrer os acidentados.
Distinguindo
uma silhueta humana, quase como um fantasma, no meio da cortina cinzenta, a
cambalear entre as ferragens tentando escapar dos destroços, o operário sentiu
um calafrio demolidor a lhe percorrer a alma.
— Olha lá, é uma mulher! —
e avançaram em sua direção.
Mas recuaram bruscamente ao experimentarem nas faces a explosão instantânea e ensurdecedora de toneladas de ar quase atirando seus corpos para trás, sufocando-os de calor abrasador, e, em seguida, a visão ofuscada pelas ameaçadoras labaredas do fogo começando a arder ferozmente no que havia sobrado.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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