Antologia O Mal que nos Habita: 1x09 - Mudéjar - WebTV - Compartilhar leitura está em nosso DNA

O que Procura?

HOT 3!

Antologia O Mal que nos Habita: 1x09 - Mudéjar

Conto de Gabrielle Mastella de Oliveira
Compartilhe:







Sinopse: Uma encadernação antiga - um Mudéjar contendo o roteiro de um discreto e misterioso diretor de cinema mudo, cuja identidade é desconhecida pelo grande público atrai Camila, uma experiente atriz até a capital Francesa, para dar vida a um cotidiano melancólico e nostálgico, talvez comuns para muitos, mas através da sua interpretação, dar vida ao momento da morte pode ser um passo único e silencioso. A visita da morte sempre silenciosa, surpreendente e ao mesmo tempo certa.


Mudéjar
de Gabrielle Mastella de Oliveira

  

Naquela manhã a sorte parecia ter despertado junto a Camila. Assim que abriu seus olhos, lançou-se em busca do seu aparelho celular, com a visão ainda turva fixou-se na tela e lá estava a notificação da sua agente confirmando sua presença no próximo filme. Com rapidez levantou-se, alongando o corpo pode perceber na sua silhueta refletida no espelho os resultados satisfatórios dos últimos dias no SPA.

Tomou um longo banho e vestindo seu roupão foi até a cozinha preparar um café marroquino, o mais forte que havia em toda a sua coleção de latas da cozinha e já com a xícara fumegante nas mãos caminhou em direção ao sofá, acomodando-se confortavelmente ao lado de uma frondosa pilha de papéis acomodados dentro de uma caixa plástica preta, com as suas iniciais. Verificou alguns sem muito prestar atenção, eram cartas de fãs, alguns pedidos de ajuda, convites para eventos e marketing de lojas, no fundo estava o roteiro. Uma encadernação bastante atípica, capa de couro negra e um símbolo em vermelho, que mais parecia vindo da era vitoriana com o logotipo da produtora, realmente em anos de carreira nunca recebera algo assim, precisava decorar prontamente todas aquelas falas para sentir-se segura em frente ao diretor, afinal um roteiro impecável merecia uma atuação que correspondesse.

Pegou em suas mãos aquele roteiro com capa de couro negra e abriu, na primeira página estava uma saudação objetiva, cordial e bastante elegante, logo abaixo, assinado com nanquim “Grigori Ravan”, seu diretor. O papel couchê chamou muito sua atenção, nunca recebera um roteiro naquela qualidade, nem mesmo quando trabalhou para uma das produtoras de maior expressão mundial, aquela encadernação era fabulosa, correu pesquisar no “Google” e soube que se tratava de um estilo utilizado na Espanha, entre os séculos XII e XVI denominado Mudéjar.   

O roteiro contava a história de uma mulher deprimida que passava os dias em seu apartamento imersos em recordações. Nostálgica, não apresentava sinais de depressão, ou qualquer outro tipo de transtorno, era egoísta, egocêntrica, de vida social restrita, não havia qualquer outro ator em cena, apenas diálogos remotos. Telefonemas, conversas em chat, interações sociais apenas virtuais, era a protagonista em seu mundo. Não precisava decorar grandes coisas, apenas saber os momentos de movimentar-se entre os diversos cômodos de um apartamento gigantesco, locado numa das periferias de Paris. Aparentemente prático, talvez um trabalho daqueles que ela havia sonhado ao longo de toda a sua carreira. Estava realmente satisfeita com o trabalho de Andrea, sua agente há mais de trinta anos, tão agradecida ficou que encomendou uma cesta de petiscos e aquele Miliasso Barolo, safra 2016 que ela tanto procurava.

Estava realmente sentindo-se em êxtase, seriam umas férias na Europa, com retorno financeiro gratificante, teria renda o suficiente para estar mais uns dois anos sem preocupar-se em estarem peregrinando em castings, eventos sociais e coisas do gênero, tampouco precisaria estar fazendo aquelas publicidades de péssimo gosto, mas que serviam para manter suas contas e dignidade em dia. Uma verdadeira alegria. Não tinham ensaios e ela rapidamente conversou com a assessora de Grigori via Skype. Marie, profissional elegante, competente e bastante disciplinada, uma pontualidade ímpar para com tudo. O dinheiro depositado com antecedência garantiu que o bem-estar entre ela e sua agente, há algum tempo estremecido, devido à recorrência de episódios complexos, onde ela apenas era acionada para trabalhos de baixo orçamento, ou com pessoas complexas, nessas ocasiões Camila perdeu sua paciência com a agente e ficaram sem se falar por um longo período. Inclusive pensou em substituí-lo, mas como era uma mulher bastante prática, apenas separou sua vida pessoal da profissional, o que deveria ter sido feito desde o início, conforme aconselhou sua falecida mãe. Realmente as coisas estavam nos eixos uma vez mais.

A única peculiaridade que Camila encontrou em toda a situação foi à insuficiência de informações, nas redes sociais, sobre o projeto, mas poderia ser o caráter sigiloso com que Marie lhe advertiu, na primeira conversa que tiveram sobre, na então reunião de produção, apenas as duas e via Skype, realmente as coisas estavam cada vez mais modernas e dinâmicas. Novos tempos estavam chegando, inclusive no cinema. Preparou-se, tal quais as recomendações que recebera por Marie e embarcou para a Europa antes do final daquela semana. Ao desembarcar, foi recebida por Maire e dirigiu-se ao hotel, a primeira cena seria no outro dia e foi advertida que não saísse do hotel sob qualquer hipótese. Camila não protestou, mesmo sendo sua primeira vez na capital francesa, pensava em estender sua estadia na Europa por dois meses mais.

Bastante ansiosa para iniciar seu trabalho e com todos os movimentos de cena decorados, despertou três horas antes, para fazer seu yoga, tomar seu café e ficar à espera do motorista no saguão do hotel, Camila primava pela pontualidade e estava bastante agradecida pela oportunidade financeira e profissional que o destino lhe reservou, sentia-se como a primeira vez em que foi premiada. No horário aprazado estacionou um Uber com as descrições que Marie lhe passou e Camila, ao certificar-se, ingressou no carro. Percorreram por meia hora Paris, tudo era lindo, mas estava causando uma agonia muito grande, uma vez que Camila não trocara uma palavra ainda com Grigori Ravan, que se servia apenas de Marie para qualquer recomendação, não havia visto nenhuma consideração sobre ele ou referências sobre o projeto e o mais angustiante, estavam indo rumo à periferia de Paris, um lugar bastante isolado. Chegando a frente ao endereço, um edifício de aparência abandonada e bastante feio, ela desceu com confiança, pois avistou Marie em frente, logo que o carro dobrou a esquina.

Vendo Marie subir as escadas com certa intimidade, Camila sentiu-se segura, e ao ingressaram no interior do imóvel destinado para a locação, sentiu que uma pequena ansiedade, mas era uma sensação já conhecida, afinal era seu primeiro dia. Entraram e não havia ninguém além de um técnico de som, ajustando a parte técnica, percebendo sua surpresa, Marie comentou que Grigori estaria dirigindo-a através daquelas telas, havia várias espalhadas em todos os cômodos, Marie repassando todos os detalhes do roteiro com Camila, no final do diálogo as câmeras foram ligadas e finalmente ela pode escutar a voz do diretor. Aproximando-se da tela gigante que estava na sala do gigantesco apartamento vazio, encaminhou-se para o sofá e iniciaram as gravações do primeiro dia. Terminada a diária, o mesmo Uber levou Camila para o hotel e assim foram seus dois primeiros dias, silenciosamente interpretava ao comando de Grigori, apenas ouvia sua voz, seu rosto nunca fora mostrado. No terceiro e último dia, Marie estava mais agitada que o normal, quando o Uber estacionou em frente ao edifício, ela recebeu Camila e trocou um olhar severo com o motorista. Subiu apressada a escada, seguida de Camila, está aparentando tranquilidade, pois seria a última cena, não percebeu a estranheza da situação. Marie então se certificou de que Camila estava com as marcações corretas, trocaram algumas palavras e esta então a abraçou despedindo-se, quando a atriz estranhando a frieza profissional da assistente lhe convidou para encontrarem-se no outro dia, Marie a olhou com frieza e respondeu afirmativamente, mas com distância. Naquele instante o técnico, um jovem, aparentando vinte e cinco anos, talvez menos, testou todas as câmeras, o microfone de Camila e saiu sem despedir-se, as luzes acenderam e a voz de Grigori surgiu.

A cena estava se encaminhando para o final, Camila deveria acomodar-se na banheira, tomar os comprimidos que estavam ao lado e alguns goles da taça de espumante, assim encerraria o filme.  Ao sentir o gelado da velha banheira, Camila apenas aguardava para que a voz de Grigori anunciasse o final daquela cena com um sonoro corta! Passaram-se cinco minutos, no roteiro fora estipulado dez, mas estavam sendo eternos. Camila de olhos fechado e concentrada em interpretar a cena do sono profundo, começou a sentir suas pernas adormecerem, até estava sentindo certo conforto em interpretar com maestria semelhante desconforto, com seus braços pesaram, a voz do diretor encerrando a cena não chegava, suas pálpebras não mais abriram, tudo transformou-se em silêncio.

A escuridão se fez presente e então ela ouviu ao longe a voz metálica de Grigori anunciando o final da cena.

As buscas por Camila foram suspensas, não era a primeira pessoa que desaparecia nesse mundo sem deixar qualquer vestígio. O corpo nunca fora encontrado, tampouco sinais de violência. Marie explicou diversas vezes para a Interpol o momento em que se despediu de Camila na locação destinada para as gravações do filme, na ocasião da sua última cena. Prestaram depoimento os atendentes do hotel e o motorista de Uber, nenhuma irregularidade fora encontrada. Ninguém nunca mais soube do paradeiro da atriz, com o tempo surgiram algumas especulações, alguns afirmavam tê-la visto em algum lugar remoto, nada se confirmou. Sua agente, surpreendida com um cartão postal, assinado por Camila, alguns meses depois, mostrava um belo lugar na Noruega, era o único indício de que ela não gostaria de ser encontrada, uma vez que a postagem ocorreu alguns meses depois do suposto desaparecimento. Seu último filme, do afamado e misterioso diretor Grigori Ravan eram exibidos nos circuitos destinados ao cinema independente e festivais pequenos, nele alguns fãs encontravam uma última interpretação de Camila, um filme mudo sobre o cotidiano de uma mulher melancólica entregue a nostalgia do passado, poético para alguns, enfadonho para outros.

Marie com um belo Mudéjar em mãos entra na agência de correios de uma cidade pequena da Noruega, confere o endereço, enquanto a atendente aprecia a bela encadernação em mãos, prestes a ocupar uma caixa sem graça da agência dos correios. Preenche atentamente o formulário de especificações e o cartão postal selado, ela apenas alcança para a atendente, que confere tudo e ambas as postagens são liberadas. Marie deixa a agência com pressa, o telefone toca insistentemente, é Grigori Ravan, ansioso por sua nova protagonista. 

Conto escrito por
Gabrielle Mastella de Oliveira

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO

""

Copyright 
© 2022 - WebTV
www.redewtv.com
Todos os direitos reservados
Proibida a cópia ou a reprodução




Compartilhe:

Antologia

Antologia O Mal que nos Habita

Episódios da Antologia O Mal que nos Habita

No Ar

Comentários:

0 comentários: