Mudéjar
de Gabrielle Mastella de Oliveira
Naquela
manhã a sorte parecia ter despertado junto a Camila. Assim que abriu seus
olhos, lançou-se em busca do seu aparelho celular, com a visão ainda turva
fixou-se na tela e lá estava a notificação da sua agente confirmando sua
presença no próximo filme. Com rapidez levantou-se, alongando o corpo pode
perceber na sua silhueta refletida no espelho os resultados satisfatórios dos
últimos dias no SPA.
Tomou
um longo banho e vestindo seu roupão foi até a cozinha preparar um café
marroquino, o mais forte que havia em toda a sua coleção de latas da cozinha e
já com a xícara fumegante
nas mãos caminhou em direção ao sofá, acomodando-se confortavelmente ao lado de
uma frondosa pilha de papéis
acomodados dentro de uma caixa plástica preta, com as suas iniciais. Verificou
alguns sem muito prestar atenção, eram cartas de fãs, alguns pedidos de ajuda,
convites para eventos e marketing de lojas, no fundo estava o roteiro. Uma
encadernação bastante atípica, capa de couro negra e um símbolo em vermelho,
que mais parecia vindo da era vitoriana com o logotipo da produtora, realmente
em anos de carreira nunca recebera algo assim, precisava decorar prontamente
todas aquelas falas para sentir-se segura em frente ao diretor, afinal um
roteiro impecável merecia uma atuação que correspondesse.
Pegou
em suas mãos aquele roteiro com capa de couro negra e abriu, na primeira página
estava uma saudação objetiva, cordial e bastante elegante, logo abaixo,
assinado com nanquim “Grigori Ravan”, seu diretor. O papel couchê chamou muito sua
atenção, nunca recebera um roteiro naquela qualidade, nem mesmo quando
trabalhou para uma das produtoras de maior expressão mundial, aquela
encadernação era fabulosa, correu pesquisar no “Google” e soube que se tratava
de um estilo utilizado na Espanha, entre os séculos XII e XVI denominado Mudéjar.
O
roteiro contava a história de uma mulher deprimida que passava os dias em seu apartamento
imersos em recordações. Nostálgica, não apresentava sinais de depressão, ou
qualquer outro tipo de transtorno, era egoísta, egocêntrica, de vida social
restrita, não havia qualquer outro ator em cena, apenas diálogos remotos.
Telefonemas, conversas em chat, interações sociais apenas virtuais, era a
protagonista em seu mundo. Não precisava decorar grandes coisas, apenas saber
os momentos de movimentar-se entre os diversos cômodos de um apartamento
gigantesco, locado numa das periferias de Paris. Aparentemente prático, talvez
um trabalho daqueles que ela havia sonhado ao longo de toda a sua carreira.
Estava realmente satisfeita com o trabalho de Andrea, sua agente há mais de
trinta anos, tão agradecida ficou que encomendou uma cesta de petiscos e aquele
Miliasso Barolo, safra 2016 que ela
tanto procurava.
Estava
realmente sentindo-se em êxtase, seriam umas férias na Europa, com retorno
financeiro gratificante, teria renda o suficiente para estar mais uns dois anos
sem preocupar-se em estarem peregrinando em castings, eventos sociais e coisas
do gênero, tampouco precisaria estar fazendo aquelas publicidades de péssimo
gosto, mas que serviam para manter suas contas e dignidade em dia. Uma
verdadeira alegria. Não tinham ensaios e ela rapidamente conversou com a
assessora de Grigori via Skype. Marie, profissional elegante, competente e
bastante disciplinada, uma pontualidade ímpar para com tudo. O dinheiro
depositado com antecedência garantiu que o bem-estar entre ela e sua agente, há
algum tempo estremecido, devido à recorrência de episódios complexos, onde ela
apenas era acionada para trabalhos de baixo orçamento, ou com pessoas
complexas, nessas ocasiões Camila perdeu sua paciência com a agente e ficaram
sem se falar por um longo período. Inclusive pensou em substituí-lo, mas como era uma
mulher bastante prática, apenas separou sua vida pessoal da profissional, o que
deveria ter sido feito desde o início, conforme aconselhou sua falecida mãe.
Realmente as coisas estavam nos eixos uma vez mais.
A
única peculiaridade que Camila encontrou em toda a situação foi à insuficiência
de informações, nas redes sociais, sobre o projeto, mas poderia ser o caráter sigiloso com que
Marie lhe advertiu, na primeira conversa que tiveram sobre, na então reunião de
produção, apenas as duas e via Skype, realmente as coisas estavam cada vez mais
modernas e dinâmicas. Novos tempos estavam chegando, inclusive no cinema.
Preparou-se, tal quais as recomendações que recebera por Marie e embarcou para
a Europa antes do final daquela semana. Ao desembarcar, foi recebida por Maire
e dirigiu-se ao hotel, a primeira cena seria no outro dia e foi advertida que
não saísse do hotel sob qualquer hipótese. Camila não protestou, mesmo sendo
sua primeira vez na capital francesa, pensava em estender sua estadia na Europa
por dois meses mais.
Bastante
ansiosa para iniciar seu trabalho e com todos os movimentos de cena decorados,
despertou três horas antes, para fazer seu yoga, tomar seu café e ficar à
espera do motorista no saguão do hotel, Camila primava pela pontualidade e
estava bastante agradecida pela oportunidade financeira e profissional que o
destino lhe reservou, sentia-se como a primeira vez em que foi premiada. No
horário aprazado estacionou um Uber com as descrições que Marie lhe passou e
Camila, ao certificar-se,
ingressou no carro. Percorreram por meia hora Paris, tudo era lindo, mas estava
causando uma agonia muito grande, uma vez que Camila não trocara uma palavra
ainda com Grigori Ravan, que se servia apenas de Marie para qualquer
recomendação, não havia visto nenhuma consideração sobre ele ou referências
sobre o projeto e o mais angustiante, estavam indo rumo à periferia de Paris,
um lugar bastante isolado. Chegando a frente ao endereço, um edifício de
aparência abandonada e bastante feio, ela desceu com confiança, pois avistou
Marie em frente, logo que o carro dobrou a esquina.
Vendo
Marie subir as escadas com certa intimidade, Camila sentiu-se segura, e ao
ingressaram no interior do imóvel destinado para a locação, sentiu que uma
pequena ansiedade, mas era uma sensação já conhecida, afinal era seu primeiro
dia. Entraram e não havia ninguém além de um técnico de som, ajustando a parte
técnica, percebendo sua surpresa, Marie comentou que Grigori estaria
dirigindo-a através daquelas telas, havia várias espalhadas em todos os
cômodos, Marie repassando todos os detalhes do roteiro com Camila, no final do
diálogo as câmeras foram ligadas e finalmente ela pode escutar a voz do
diretor. Aproximando-se da tela gigante que estava na sala do gigantesco
apartamento vazio, encaminhou-se para o sofá e iniciaram as gravações do
primeiro dia. Terminada a diária, o mesmo Uber levou Camila para o hotel e
assim foram seus dois primeiros dias, silenciosamente interpretava ao comando
de Grigori, apenas ouvia sua voz, seu rosto nunca fora mostrado. No terceiro e
último dia, Marie estava mais agitada que o normal, quando o Uber estacionou em
frente ao edifício, ela recebeu Camila e trocou um olhar severo com o motorista.
Subiu apressada a escada, seguida de Camila, está aparentando tranquilidade, pois seria a última
cena, não percebeu a estranheza da situação. Marie então se certificou de que
Camila estava com as marcações corretas, trocaram algumas palavras e esta então
a abraçou despedindo-se, quando a atriz estranhando a frieza profissional da
assistente lhe convidou para encontrarem-se no outro dia, Marie a olhou com
frieza e respondeu afirmativamente, mas com distância. Naquele instante o técnico,
um jovem, aparentando vinte e cinco anos, talvez menos, testou todas as
câmeras, o microfone de Camila e saiu sem despedir-se, as luzes acenderam e a
voz de Grigori surgiu.
A cena
estava se encaminhando para o final, Camila deveria acomodar-se na banheira,
tomar os comprimidos que estavam ao lado e alguns goles da taça de espumante, assim
encerraria o filme. Ao sentir o gelado da velha banheira, Camila apenas aguardava
para que a voz de Grigori anunciasse o final daquela cena com um sonoro corta!
Passaram-se cinco minutos, no roteiro fora estipulado dez, mas estavam sendo
eternos. Camila de olhos fechado e concentrada em interpretar a cena do sono
profundo, começou a sentir suas pernas adormecerem, até estava sentindo certo
conforto em interpretar com maestria semelhante desconforto, com seus braços pesaram,
a voz do diretor encerrando a cena não chegava, suas pálpebras não mais
abriram, tudo transformou-se em silêncio.
A
escuridão se fez presente e então ela ouviu ao longe a voz metálica de Grigori
anunciando o final da cena.
As
buscas por Camila foram suspensas, não era a primeira pessoa que desaparecia
nesse mundo sem deixar qualquer vestígio. O corpo nunca fora encontrado,
tampouco sinais de violência. Marie explicou diversas vezes para a Interpol o
momento em que se despediu de Camila na locação destinada para as gravações do
filme, na ocasião da sua última cena. Prestaram depoimento os atendentes do
hotel e o motorista de Uber, nenhuma irregularidade fora encontrada. Ninguém
nunca mais soube do paradeiro da atriz, com o tempo surgiram algumas
especulações, alguns afirmavam tê-la visto em algum lugar remoto, nada se
confirmou. Sua agente, surpreendida com um cartão postal, assinado por Camila,
alguns meses depois, mostrava um belo lugar na Noruega, era o único indício de
que ela não gostaria de ser encontrada, uma vez que a postagem ocorreu alguns
meses depois do suposto desaparecimento. Seu último filme, do afamado e
misterioso diretor Grigori Ravan eram exibidos nos circuitos destinados ao
cinema independente e festivais pequenos, nele alguns fãs encontravam uma
última interpretação de Camila, um filme mudo sobre o cotidiano de uma mulher
melancólica entregue a nostalgia do passado, poético para alguns, enfadonho
para outros.
Marie com um belo Mudéjar em mãos entra na agência de correios de uma cidade pequena da Noruega, confere o endereço, enquanto a atendente aprecia a bela encadernação em mãos, prestes a ocupar uma caixa sem graça da agência dos correios. Preenche atentamente o formulário de especificações e o cartão postal selado, ela apenas alcança para a atendente, que confere tudo e ambas as postagens são liberadas. Marie deixa a agência com pressa, o telefone toca insistentemente, é Grigori Ravan, ansioso por sua nova protagonista.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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