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Antologia O Mal que nos Habita: 1x10 - O Impulso

Conto de Flávia Kuhnert
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Sinopse: Um homem casado, de meia idade, se vê questionando seus valores morais ao descobrir que sua esposa fez uma apólice de seguro no valor de um milhão de reais. Em uma luta com seus instintos ruins, quem irá vencer?


O Impulso
de Flávia Kuhnert

  

Parei por um segundo, cansado. Estava na igreja, ajudando como sempre. Amontoava os agasalhos em uma pilha. A campanha deste ano tinha sido ótima, e me sentia orgulhoso disso. Arrecadamos além da meta estipulada.

Dona Fátima apareceu com uma expressão de felicidade no rosto.

— Nossa, nem dá para acreditar. Não temos mais caixas. Ela disse rindo.

— Sim. Que maravilha!

— Foi tudo graças ao senhor. Obrigada por sua ajuda, senhor Heitor.

— Não precisa agradecer, não. É o mínimo que posso fazer.

— Como está a sua esposa?

— Ela está bem, só um pouco doente.

— Melhor ir ao médico. Já faz algumas semanas.

— É verdade. Ela vai sim.

— Você é um marido maravilhoso, se preocupa tanto com ela.

— Eu tento.

— Ela tem sorte de ter um homem como o senhor.

            Despedi-me da velhinha simpática. Ela era realmente muito bondosa. Uma alma dedicada a fazer o bem. Eu, perto dela, não era nada. Apesar de sempre tentar ser altruísta, em meu âmago, sentia que a vaidade e os elogios que recebia constituíam a real razão daquelas atitudes.

            Cheguei em casa e minha esposa, Marília, encontrava-se no sofá com o cobertor nas pernas. Mesmo doente, continuava a possuir uma aparência deslumbrante, com seus cabelos castanhos claros em coque, e sorriso encantador.

— Amor, finalmente. Você demorou.

— Demorei? Nem percebi.

— Sim. Não sabia o que você queria jantar. Estou indisposta para cozinhar.

— Eu faço o jantar, amor. Uma sopa, o que você acha?

— Pode ser.

            Cortei os legumes meticulosamente em pedaços pequenos, enquanto ela me contava sobre seu dia. Disse que foi ao médico e fez alguns exames. Era realmente estranho uma gripe que não ia embora, mas Marília esperava que os testes não apontassem nada sério.

            Comemos no sofá mesmo. Queria que ela poupasse seus esforços ao máximo para conseguir recuperar-se. Assistimos a um filme e fiz uma massagem em seus pés.

— Você é tão bom para mim.

— Que nada!

— É sim. Obrigada por entender o meu estado. Sei que não deve ser fácil para você.

— Como assim?

— A nossa intimidade não é mais a mesma.

— Que besteira. Não se preocupe com isso, amor.

— Tem certeza?

— Claro.

            Infelizmente, era uma mentira. Não transávamos fazia meses e isso era um tormento para mim. Minha libido ardia, sem ter como me satisfazer. Acabava recorrendo a vídeos na internet e, às vezes, até mesmo conversas. Era tudo no meu imaginário, então não via como algo errado.

            Ajudei-a a subir as escadas e se deitar. Cobri-a com um edredom grosso enquanto ela murmurava o quão fantástico eu era. Quando indagou o porquê de não me deitar também, inventei que tinha um jogo de futebol na televisão. Ela não precisava saber o verdadeiro motivo de meu sono tardio.

            Desci as escadas e, ao caminhar pela sala, percebi um documento em cima da mesa de jantar. Era uma apólice de seguro. Não entendi nada, mas Marília tinha feito um em seu nome. Caso ela morresse eu ganharia um milhão de reais.

            Aquilo era muito dinheiro. O suficiente para fazer a mente vagar e imaginar as piores coisas. Contudo, eu não me atrevia. Amava muito a minha mulher, e apesar de ter ficado um pouco irritado com o fato dela fazer aquilo sem me consultar, apreciei que estava zelando por mim, caso algo acontecesse.

            Sentei-me em frente ao computador e vi que tinha um e-mail novo. Era de uma moça que trabalhava comigo. Bruna. Fiquei realmente surpreso com a mensagem. Além de ela ser bem mais nova, era linda, do tipo que eu jamais imaginaria ao menos tentar seduzir. Uma parte do e-mail em especial me chamou atenção.

 

Sei que você é casado, mas não consigo parar de pensar em você. Se tiver interesse, amanhã me dê uma piscada. Vou entender o recado.

 

            Fiquei apavorado com o quão tentado me senti. Aquele não era eu. Podia não ser perfeito, claro, entretanto, sempre fui um homem bom. Será que Hobbes estava mesmo certo e todo homem já nasce mau? Ou estaria a sociedade me corrompendo, como dizia Rousseau? Pensava, observando meu reflexo na tela escura do computador.

            Não gostaria de descobrir. Então fui dormir. Entretanto, não se pode fugir de si mesmo. Nossos pensamentos mais íntimos muitas vezes podem ser aterrorizantes. Em parte, por sabermos que não somos totalmente honestos, mas também porque talvez o que esteja por dentro seja irreprimível.

O dia seguinte foi com certeza o início da decadência da minha alma. Fui ao trabalho e, ao passar pela Bruna, dei o sinal combinado, que foi recebido por um sorriso. Ah! Aquele sorriso. Concebi nesse momento que ela mexia comigo e despertava o pior de mim.

Olhando no espelho do banheiro pensei em como sempre segui regras cegamente, nunca meus sentimentos. Por que deveríamos viver uma vida tão correta? Sem cometer nenhum erro? Não somos humanos? Por que eu tinha tanto medo de ouvir meus instintos? Não sabia responder. Era como se eu estivesse controlando algo que vinha à tona cada vez mais, e aquilo me horripilava.

Fui para casa. A minha mulher pareceu notar que algo estava errado.

— Amor, você está bem?

— Não! Gritei. Desculpa. Eu só estou muito cansado. É só isso.

— Entendo, querido. Você pode descansar. Pedimos uma pizza.

— Às vezes eu acho que você não está doente coisa nenhuma. Que você só finge!

— O quê? Você está louco, Heitor? Por que eu faria isso?

— Não sei. Para ter a minha pena, os meus cuidados, para dominar o meu tempo. Eu não tenho uma vida além de você!

— Querido, entendo que é difícil, mas eu não estou mentindo. Em breve, com o resultado dos exames vamos finalmente descobrir o que tenho. Sinto muito.

— Chega! Estou cansado. Pede alguma coisa para comer. Vou sair.

— Vai aonde?

— Não te interessa!

            Era terrível falar com ela daquela forma, culpando-a por algo que estava fora de seu controle. Contudo, era assim que me sentia. Fora de controle, como se estivesse sendo possuído por algo. Ou simplesmente libertando uma raiva que sempre esteve ali, latente.

            Fui até um clube de strip-tease. Nunca tinha frequentado esse tipo de ambiente, todavia eu precisava extravasar tudo aquilo, ou iria explodir. As mulheres dançando e tirando a roupa eram todas sensuais. § Paguei uma delas por uma dança privada. Nunca perguntei o seu nome, mas ela era escultural, morena e com seios fartos. Apesar de não poder tocar nela, a stripper pediu que eu a esperasse sair, para irmos à sua casa.

            Esperei, cheio de tesão. Não conseguia nem mais lembrar do homem bom que eu devia ser. Era apenas um animal, pronto para caçar. Fomos até a sua casa e o sexo foi inexplicável. Nunca havia sido assim com minha mulher. Mordi seu pescoço tão forte enquanto chegava ao êxtase que até sangrou.

            Comecei a trair a minha esposa regularmente, não só com Bruna, mas com várias mulheres. Em meu tempo livre estava sempre em algum motel barato. Sabia que aquilo estava se tornando quase um vício, mas eu não conseguia parar. § Adquiri também hábitos ruins como beber, me drogar e apostar. Apenas dizia a Marília que estava na igreja e lá ia eu para mais uma noite louca. Ela estava, claro, começando a desconfiar de algo, já que esses locais tinham um cheiro muito distinto da casa do Senhor.

            Não conseguia parar de pensar naquela apólice de seguro. Então, após uma transa fenomenal regada a muita cocaína, contei à Bruna sobre o dinheiro.

— Você está falando sério? Um milhão? Isso é muita coisa.

— Eu sei.

— Por que você não a mata? Bruna disse e eu não conseguia distinguir em seu tom de voz se ela estava brincando ou não.

— O quê? Para com isso.

— Ué! Você não a ama. Ela se tornou um estorvo na sua vida. Dessa forma você se livra de um problema e ainda consegue uma boa grana.

— Você é maluca. Eu disse, como se nunca tivesse tido esse pensamento.

— Se você me der uma parte do dinheiro eu te ajudo. Ela disse, mas eu não levei a sério.

            No entanto, essa ideia começou a me atormentar noite e dia. A todo segundo me imaginava matando-a de todas as formas possíveis. Sufocar, ou talvez pílulas? Perguntava-me qual seria a maneira mais fácil de matá-la. Teria, claro, que ser algo que parecesse natural. Entretinha-me com aqueles devaneios. No fundo, gostava de acreditar que não teria coragem. Apesar de ter cada vez mais dificuldade de lidar com ela.

            Pelos exames não conseguimos descobrir o que tinha. O médico falava que podia ser psicológico. Eu julgava que era frescura e uma forma de chamar atenção. Sentia raiva da sua fraqueza e pedidos de ajuda com algo que ela conseguia fazer perfeitamente bem.

— Você não é mais o mesmo. Marília me cobrou. O que aconteceu?

— Acordei. Vejo perfeitamente bem agora como você é manipuladora. — Declarei, enchendo mais um copo de uísque.

— Você nunca foi de beber, sair assim o tempo todo. Você conheceu alguém? Está me traindo?

— Claro, ou você pensa que vou ficar esperando você se sentir bem para gente voltar a fazer aquele papai e mamãe sem graça?

            Eu dizia coisas horríveis para ela o tempo todo. Não conseguia mais restringir aquele veneno que escorria de mim. Era mais forte do que eu.

            Por fim, decidi que iria matá-la. Na minha cabeça idealizava que era um homem bom e o faria por misericórdia, para ajudá-la. Contudo, aquilo era uma mentira. Eu o faria por mim, pelo dinheiro, e por uma vontade de fazer o mal que crescia em mim.

            Combinei tudo com Bruna. Era tarde da noite. Ela veio a pé até a minha casa, para não levantar suspeitas. O plano era injetar um veneno enquanto ela dormia. Marília estava doente, não seria difícil fazer os outros acreditarem que a mulher acamada finalmente faleceu. E com a minha reputação intacta de bom marido e homem da igreja, não haveria dúvidas de que foi uma morte natural.

            A antecipação do crime nos excitava. Transamos na sala, ela me beijava e sussurrava em meu ouvido: “Um milhão de reais”. Não sabia o que mais a estimulava, a minha maldade, o crime, ou o dinheiro, provavelmente a combinação dos três.

            Fomos até o quarto, mas ninguém estava deitado na cama. Minha esposa havia acordado.

— Ferrou. Onde ela está?

— Acha essa cadela. Quero o meu dinheiro. Bruna gritou.

            Procuramos por ela pela casa inteira, sem sucesso. Marília estava se escondendo em algum lugar.

— Desiste, piranha, hoje você vai morrer. disse Bruna, segurando a injeção.

            De repente, ouvimos um barulho de um vaso quebrando e vimos que minha mulher corria. Fomos em direção a ela. Peguei-a por seus cabelos.

— Amor, não faz isso. Você é uma pessoa boa.

— Não, amor. Eu era uma pessoa boa. Eu disse antes de estrangulá-la com as minhas próprias mãos, que doíam, com tanta força que fiz, porém, ver seus olhos aos poucos ficando brancos e a boca roxa valiam a pena.

— Não era para estrangular. Bruna ponderou. Agora ninguém vai acreditar que ela morreu naturalmente.

— E quem disse que ligo para o dinheiro? Afirmei, cortando a garganta de Bruna, espirrando seu sangue rubro por todos os lados.

            Tentei ainda esconder o corpo das duas, todavia, em breve percebi que iria matar muitas vezes, tantas, que esse processo era cansativo demais. O monstro inativo agora acordava e me fazia de escravo dos seus desejos.

            Todo esse tempo tive medo de mim mesmo. De algo que tinha por dentro. E nessa noite descobri o porquê. Depois que matei pela primeira vez, não pretendo parar. A adrenalina de assassinar alguém é simplesmente algo inenarrável. Por isso que estou aqui hoje, entregando-me a vocês, policiais. E digo mais: se fosse vocês, me trancaria em uma jaula e nunca mais abriria. 

Conto escrito por
Flávia Kuhnert

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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