O Impulso
de Flávia Kuhnert
Parei
por um segundo, cansado.
Estava na igreja, ajudando como sempre. Amontoava os agasalhos em uma pilha. A
campanha deste ano tinha sido ótima, e me sentia orgulhoso disso. Arrecadamos
além da meta estipulada.
Dona Fátima apareceu com uma
expressão de felicidade no rosto.
— Nossa, nem dá para acreditar. Não temos mais caixas. – Ela disse rindo.
— Sim. Que maravilha!
— Foi tudo graças ao senhor. Obrigada por sua ajuda, senhor
Heitor.
— Não precisa agradecer, não. É o mínimo que posso fazer.
— Como está a sua esposa?
— Ela está bem, só um pouco doente.
— Melhor ir ao médico. Já faz algumas semanas.
— É verdade. Ela vai sim.
— Você é um marido maravilhoso, se preocupa tanto com ela.
— Eu tento.
— Ela tem sorte de ter um homem como o senhor.
Despedi-me da velhinha simpática. Ela era realmente muito
bondosa. Uma alma dedicada a fazer o bem. Eu, perto dela, não era nada. Apesar
de sempre tentar ser altruísta, em meu âmago, sentia que a vaidade e os elogios
que recebia constituíam a real razão daquelas atitudes.
Cheguei em casa e minha esposa, Marília, encontrava-se no
sofá com o cobertor nas pernas. Mesmo doente, continuava a possuir uma
aparência deslumbrante, com seus cabelos castanhos claros em
coque, e sorriso encantador.
— Amor, finalmente. Você
demorou.
— Demorei? Nem percebi.
— Sim. Não sabia o que
você queria jantar. Estou indisposta para cozinhar.
— Eu faço o jantar,
amor. Uma sopa, o que você acha?
— Pode ser.
Cortei os legumes meticulosamente em pedaços pequenos,
enquanto ela me contava sobre seu dia. Disse que foi ao médico e fez alguns
exames. Era realmente estranho uma gripe que não ia embora, mas Marília
esperava que os testes não apontassem nada sério.
Comemos no sofá mesmo. Queria que ela poupasse seus
esforços ao máximo para conseguir recuperar-se. Assistimos a
um filme e fiz uma massagem em seus pés.
— Você é tão bom para
mim.
— Que nada!
— É sim. Obrigada por
entender o meu estado. Sei que não deve ser fácil para você.
— Como assim?
— A nossa intimidade
não é mais a mesma.
— Que besteira. Não se
preocupe com isso, amor.
— Tem certeza?
— Claro.
Infelizmente,
era uma mentira. Não transávamos fazia meses e isso era um tormento para mim. Minha libido ardia,
sem ter como me satisfazer. Acabava recorrendo a vídeos na internet e, às vezes, até mesmo conversas.
Era tudo no meu imaginário, então não via como algo errado.
Ajudei-a a subir as escadas e se
deitar. Cobri-a com um edredom grosso enquanto ela
murmurava o quão fantástico eu era. Quando indagou o porquê de não me deitar
também, inventei que tinha um jogo de futebol na televisão. Ela não precisava
saber o verdadeiro motivo de meu sono tardio.
Desci as escadas e,
ao caminhar pela sala, percebi um documento em
cima da mesa de jantar. Era uma apólice de seguro. Não entendi nada, mas
Marília tinha feito um em seu nome. Caso ela morresse eu ganharia um milhão de
reais.
Aquilo era muito dinheiro. O suficiente para fazer a
mente vagar e imaginar as piores coisas. Contudo, eu não me atrevia. Amava
muito a minha mulher, e apesar de ter ficado um pouco irritado com o fato dela
fazer aquilo sem me consultar, apreciei que estava zelando por mim, caso algo
acontecesse.
Sentei-me em frente ao computador e vi que tinha um
e-mail novo. Era de uma moça que trabalhava comigo. Bruna. Fiquei realmente
surpreso com a mensagem. Além de ela ser bem mais
nova, era linda, do tipo que eu jamais imaginaria ao menos tentar seduzir. Uma
parte do e-mail em especial me chamou atenção.
Sei que você é casado, mas não consigo parar de pensar em
você. Se tiver interesse, amanhã me dê uma piscada. Vou entender o recado.
Fiquei
apavorado com o quão tentado me senti. Aquele não era eu. Podia não ser
perfeito, claro, entretanto, sempre fui um homem bom. Será que Hobbes estava
mesmo certo e todo homem já nasce mau? Ou estaria a sociedade me corrompendo,
como dizia Rousseau? Pensava, observando meu reflexo na tela escura do
computador.
Não gostaria de descobrir. Então fui dormir. Entretanto,
não se pode fugir de si mesmo. Nossos pensamentos mais íntimos muitas vezes
podem ser aterrorizantes. Em parte,
por sabermos que não somos totalmente honestos, mas também porque talvez o que
esteja por dentro seja irreprimível.
O
dia seguinte foi com certeza o início da decadência da minha alma. Fui ao
trabalho e, ao passar pela Bruna, dei o sinal
combinado, que foi recebido por um sorriso. Ah! Aquele sorriso. Concebi nesse
momento que ela mexia comigo e despertava o pior de mim.
Olhando no espelho do banheiro pensei
em como sempre segui regras cegamente, nunca meus sentimentos. Por que
deveríamos viver uma vida tão correta? Sem cometer nenhum erro? Não somos
humanos? Por que eu tinha tanto medo de ouvir meus instintos? Não sabia
responder. Era como se eu estivesse controlando algo que vinha à tona cada vez
mais, e aquilo me horripilava.
Fui para casa. A minha mulher pareceu
notar que algo estava errado.
— Amor, você está bem?
— Não!
– Gritei. – Desculpa. Eu só estou
muito cansado. É só isso.
— Entendo, querido. Você pode descansar. Pedimos uma pizza.
— Às vezes eu acho que você não está doente coisa nenhuma.
Que você só finge!
— O quê?
Você está louco, Heitor? Por que eu faria isso?
— Não sei. Para ter a minha pena, os meus cuidados, para
dominar o meu tempo. Eu não tenho uma vida além de você!
— Querido, entendo que é difícil, mas eu não estou mentindo.
Em breve, com o resultado dos exames vamos finalmente descobrir o que tenho.
Sinto muito.
— Chega! Estou cansado. Pede alguma coisa para comer. Vou
sair.
— Vai aonde?
— Não te interessa!
Era
terrível falar com ela daquela forma, culpando-a por algo que estava fora de
seu controle. Contudo, era assim que me sentia. Fora de controle, como se
estivesse sendo possuído por algo. Ou simplesmente libertando uma raiva que
sempre esteve ali, latente.
Fui até um clube de strip-tease.
Nunca tinha frequentado esse tipo de ambiente, todavia eu precisava extravasar
tudo aquilo, ou iria explodir. As mulheres dançando e tirando a roupa eram
todas sensuais. § Paguei uma delas por uma dança privada. Nunca perguntei o
seu nome, mas ela era escultural, morena e com seios fartos. Apesar de não
poder tocar nela, a stripper
pediu que eu a esperasse sair, para irmos à sua casa.
Esperei, cheio de tesão. Não conseguia nem mais lembrar
do homem bom que eu devia ser. Era apenas um animal, pronto para caçar. Fomos
até a sua casa e o sexo foi inexplicável. Nunca havia sido assim com minha
mulher. Mordi seu pescoço tão forte enquanto chegava ao êxtase que até sangrou.
Comecei a trair a minha esposa regularmente, não só com
Bruna, mas com várias mulheres. Em meu tempo livre estava sempre em algum motel
barato. Sabia que aquilo estava se tornando quase um vício, mas eu não
conseguia parar. § Adquiri também hábitos
ruins como beber, me drogar e apostar. Apenas dizia a Marília que estava na
igreja e lá ia eu para mais uma noite louca. Ela estava, claro, começando a
desconfiar de algo, já que esses locais tinham um cheiro muito distinto da casa
do Senhor.
Não
conseguia parar de pensar naquela apólice de seguro. Então, após uma transa
fenomenal regada a muita cocaína, contei à Bruna sobre o dinheiro.
— Você está falando sério? Um milhão? Isso é muita coisa.
— Eu sei.
— Por que você não a mata? –
Bruna disse e eu não conseguia distinguir em seu tom de voz se ela estava
brincando ou não.
— O quê?
Para com isso.
— Ué! Você não a ama. Ela se tornou um estorvo na sua vida.
Dessa forma você se livra de um problema e ainda consegue uma boa grana.
— Você é maluca. – Eu disse, como se nunca tivesse tido esse pensamento.
— Se você me der uma parte do dinheiro eu te ajudo. – Ela disse, mas eu não
levei a sério.
No entanto, essa ideia começou a me atormentar noite e
dia. A todo segundo me imaginava matando-a de todas as formas possíveis.
Sufocar, ou talvez pílulas? Perguntava-me qual seria a maneira mais fácil de
matá-la. Teria, claro,
que ser algo que parecesse natural. Entretinha-me com aqueles devaneios. No
fundo, gostava de acreditar que não teria coragem. Apesar de ter cada vez mais
dificuldade de lidar com ela.
Pelos exames não conseguimos descobrir o que tinha. O
médico falava que podia ser psicológico. Eu julgava que era frescura e uma
forma de chamar atenção. Sentia raiva da sua fraqueza e pedidos de ajuda com
algo que ela conseguia fazer perfeitamente bem.
— Você não é mais o mesmo. – Marília me cobrou. – O que aconteceu?
— Acordei. Vejo perfeitamente bem agora como você é
manipuladora. — Declarei, enchendo mais um copo de uísque.
— Você nunca foi de beber, sair assim o tempo todo. Você
conheceu alguém? Está me traindo?
— Claro, ou você pensa que vou ficar esperando você se sentir
bem para gente voltar a fazer aquele papai e mamãe sem graça?
Eu dizia coisas horríveis para ela o tempo todo. Não
conseguia mais restringir aquele veneno que escorria de mim. Era mais forte do
que eu.
Por fim, decidi que iria matá-la. Na minha cabeça
idealizava que era um homem bom e o faria por misericórdia, para ajudá-la.
Contudo, aquilo era uma mentira. Eu o faria por mim, pelo dinheiro, e por uma
vontade de fazer o mal que crescia em mim.
Combinei tudo com Bruna. Era tarde da noite. Ela veio a
pé até a minha casa, para não levantar suspeitas. O plano era injetar um veneno
enquanto ela dormia. Marília estava doente, não seria difícil fazer os outros
acreditarem que a mulher acamada finalmente faleceu. E com a minha reputação
intacta de bom marido e homem da igreja, não haveria dúvidas de que foi uma
morte natural.
A
antecipação do crime nos excitava. Transamos na sala, ela me beijava e
sussurrava em meu ouvido: “Um milhão de reais”. Não sabia o que mais a estimulava, a minha
maldade, o crime, ou o dinheiro, provavelmente a combinação dos três.
Fomos até o quarto, mas ninguém estava deitado na cama.
Minha esposa havia acordado.
— Ferrou. Onde ela está?
— Acha essa cadela.
Quero o meu dinheiro. – Bruna gritou.
Procuramos por ela pela casa inteira, sem sucesso.
Marília estava se escondendo em algum lugar.
— Desiste, piranha, hoje
você vai morrer. – disse Bruna,
segurando a injeção.
De repente, ouvimos um barulho de um vaso quebrando e
vimos que minha mulher corria. Fomos em direção a ela. Peguei-a por seus
cabelos.
— Amor, não faz isso.
Você é uma pessoa boa.
— Não, amor. Eu era uma pessoa boa. –
Eu disse antes de estrangulá-la com as minhas próprias mãos, que doíam, com
tanta força que fiz, porém, ver seus olhos aos poucos ficando brancos e a boca
roxa valiam a pena.
— Não era para
estrangular. – Bruna ponderou. –
Agora ninguém vai acreditar que ela morreu naturalmente.
— E quem disse que ligo
para o dinheiro? – Afirmei, cortando a garganta
de Bruna, espirrando seu sangue rubro por todos os lados.
Tentei ainda esconder o corpo das duas, todavia, em breve
percebi que iria matar muitas vezes, tantas, que esse processo era cansativo
demais. O monstro inativo agora acordava e me fazia de escravo dos seus
desejos.
Todo esse tempo tive medo de mim mesmo. De algo que tinha por dentro. E nessa noite descobri o porquê. Depois que matei pela primeira vez, não pretendo parar. A adrenalina de assassinar alguém é simplesmente algo inenarrável. Por isso que estou aqui hoje, entregando-me a vocês, policiais. E digo mais: se fosse vocês, me trancaria em uma jaula e nunca mais abriria.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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