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Feriadão WebTV: Bichos Soltos

Conto de Arthur Vieira
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Sinopse: Dois irmãos vivem nas comissuras da vida na busca dos ‘seus corres’ diários. Em meio a desatinos e descasos, os dois – ladinamente – vão escapando das sinucas que lhe são impostas cotidianamente. No entanto, uma figura suspicaz gera um transvio no decurso de suas pequenas vidas. Ao se verem atados a tal figura, o medo e a apreensão vão deformando suas substâncias.



Bichos Soltos
de Arthur Vieira


Anda! Vem logo! Parece uma viada andando...

Sô não...

Anda, mizera! Parou e esperou com uma carranca, o outro menor que se apressava, passou e levou uma cachuleta pra se ligar no movimento.

Aí! Vô fala pra mãe... Fez cara de choro, mas recuou com as lágrimas.

Fala... ela vai dá é um pau em tu.

O maior dos dois cata um pedregulho bem burilado e o fecha em sua pequena palma e cerra o punho. O sol encandeava aquelas duas cabecinhas desprendidas que vadiavam. Descalços, seus pés já evoluíram para cascos.

Oia, faz cara de choro e diz que tá com fomi quando eles vi. Não esquece se não te moo no pau. Fez menção de que ia descer o braço, foi só um “pantim” de alerta.  

Tá bom, seu mizera... tá bom... já sei comué.

Ladearam a calçada pela parte da sombra. Cada qual tinha o seu cheiro particular de leite azedo. Suas moleiras só sabiam que existia uma única forma de ganhar um corre: metendo a cara na vida dos adultos das outras casas.

Pá! Pá! Pá! (Pequenas mãos encardidas fazendo ecoar o barulho de um portão de zinco pintado à zarcão). ÔÔÔÔÔÔ de caaaasa!

Uma demora em que o vento silvava em meio ao silêncio da casa de boca fechada. Ao começo do desânimo e da desistência, um murmúrio de passos revigorou a energia do maior dos menores, o pequeno-pequeno realmente tinha fome e indiferença, sabia que precisava pedir em outra porta mesmo.

Quem é? Uma voz receosa perguntou de dentro da fortificação familiar.

Dona Maria, ajuda nóis com algo pra comer. Tamo passando fome em casa.

Quem tá falando? O receio se comutara em impaciência.

Maxsuel. O maior dos menores, respondeu.

Maxsuel, cadê sua mãe?

Ela tá em casa. Doente...

A sua família precisa procurar o conselho tutelar. E o seu pai?

Sei não, viu dona Maria... Tem como ajudar a gente? Meu irmão pequeno tá com fome.

Olha, hoje não. Não tenho nada pra dá pra vocês não. Ouviram-se passos que sumiam para as tripas da edificação.

Bateram mais algumas vezes, só que a casa ficara muda novamente. Já estavam acostumados, porém um amasso no portão ficara de lembrança nesta visita mal recebida. O barulho da pedra em choque com aquela massa de metal produziu um estrondo sentido pela rua afora e lar adentro.

Pularam as próximas cinco casas sem perceber que pousavam sobre si olhos perscrutadores. Ao retornarem pela outra perna da rua, somente com um pacote de macarrão Paraíba na mão do menor dos menores, um tio de óculos escuros e boné aparece com um sorriso na cara, tal como alguém que não se conhece, mas que deseja abrir papo.

Ei, seus putos! Tão fazendo isso tudo errado.

Os moleques congelaram, depois ficaram acabrunhados e se picaram para a calçada oposta com passos arroxados.

Vem cá, seus porra! Eu quero ajudar vocês, caralho! Cês tão fazendo merda. Vocês têm que ir pra outro canto, porra! Sua indignação foi mais por ter apertado o passo pra poder chamar a atenção e isso lhe roubou o pouco fôlego que seus pulmões ainda conseguiam armazenar. Olha... é o seguinte... tão a fim de descolar uma prata pra levar pra casa? Pra mãe de vocês? Vem comigo que vocês ganha, porra. Eu tô falando, ô.

O cara meteu a mão no bolso e puxou uma onça esmaecida que cheirava àquela mesma sujeira que faz lote abaixo das unhas.

Toma ô. Um adianto pra vocês... Ué, que foi? Eu não vou machucar vocês não, tá doido é? E aí, o que você acham? Vamos lá?!

Os muleques estavam com o cu na mão, só que o maior dos menores, para não aparentar a sua paúra, deu uma de queixudo. Pegou a nota e colou no cós do roto calção.

Vamo sim.

Porra! É assim mesmo, tu é cabra homi, já vi que vamo ganhar uma prata fudida. Tu é aranha demais, muleque. Bora!

Caminharam em direção à praça da Pinguela onde o cara havia estacionado o seu Celta Verde modelo 2007. Colocou-os dentro, foi no porta-malas, vasculhou algo que a curiosidade dos pequenos não conseguira decifrar. Da porta do motorista, ele apareceu e uma camiseta puída para cada. Olhou para os pés que estavam descalços: “Puta merda! Vocês são fudidinhos mesmo, hein?! Descalços?! Vai assim mesmo”. Sentou no banco, olhou no retrovisor, expulsou o boné do seu coco e desprezou por um momento a repulsa pela sua própria calvície ao deslizar a palma da sua mão sobre a superfície oblonga.

Rodou a ignição e se mandou ao som da Tabajara AM envolvendo o interior do carro.  O período de Festas Juninas deixa todos eufóricos e anestesiados. Muito xote, xaxado e arrasta pé consumiam toda a audiência, então as pequenas prevaricações se moviam para fora dos bueiros da cidade sem a necessidade de cautela. 

Vamos passar na casa de uma amiga minha pra ajudar a gente nesse trampo, valeu?!

Ficaram calados.

Sei... tão com fome?

Silêncio repetido.

O cara abriu o porta-luvas e puxou um pacote de Treloso desfalcado e jogou na direção do maior. Os dois pequenos observavam abismados pelas janelas do carro o tamanho da cidade que pouco conheciam enquanto mastigavam. Rasgaram a BR e chegaram à comunidade do Corisco. Reduziu a velocidade. Colocou os óculos escuros na gola da camisa para que não o confundissem com algum desconhecido do pedaço. O Celta deslizava com muito cuidado, pois não havia pavimentação e as valas que golfavam esgoto pareciam arapucas. Aos poucos, até parar de vez, chegou. O barraco nunca teve dias melhores, sempre foi o que é agora, o pior. Duas buzinadas, daquelas que já são arranjadas há tempos. Não havia impaciência com a demora ao sair de quem estava dentro.  Ele colocou os óculos novamente e saiu do carro já com um cigarro no bico, e o acendeu já do lado de fora. Ao se virar para a frente da baiuca, surgiu uma mulher que aparentemente usava um turbante, porém era apenas uma camisa velha amarrada à cabeça e uma velha roupa desbotada que desfavorecia os seus predicados.

Aí Gi, te dava um trato, mesmo mulambenta assim...

Alício, seu velhaco, tratante de merda. Onde você roubou essas duas crianças?

Ei! Cuidado com a boca. Você mesma viu que tem criança ouvindo suas sujaiadas. Mostrou os dentes assim como algo semelhante a um riso de felicidade e malícia. Entra logo.

Gi entrou sob um sol irredutível onde o carro era um protótipo de uma estufa para pessoas com estatura média.

Olha, essa aqui vai ser a mãe de vocês. Tá ligado?!

Essa não é minha mãe, não. Resmungou o menorzinho.

Alício por um breve momento esgotou o estoque de paciência e deu um espano na orelha do muleque.

Se liga, muleque! Esse negócio não é brincadeira, não. Ô, avisa pro teu irmão, que acho que você sacou aqui o trampo, mas ele precisa tá no jogo também. Entendeu?!

O mais velho sentiu-se ameaçado, tanto que suas pálpebras sumiram dentro das órbitas e seus olhos se abriram como duas janelas quebradas. Não disse nada. Só balançou a cabeça, claro que com o sinal de “sim”. Isso não negou que as suas tripas sentissem um frio corrosivo, daqueles parecidos como quando se dorme no chão em noite de chuva.

Gi o reprovou apenas com o olhar, mas não ousou dizer nada. Um hiato de palavras se assomou até que estacionassem há duas ruas da Farmácia Permanente.

É o seguinte, acostumem. A Gi é a mãe de vocês e fim de papo. Tu, qual é teu nome mesmo?

Max-suel.

Como, caraio?!

É Maxsuel. Conseguiu se desvencilhar da gagueira de medo.

Saca só, Max-suel, avisa pro teu irmãzin que ele só faz cara de quem tem fome e não fala porra nenhuma. E tu, vai falar que o teu pai perdeu a perna na obra e que precisa de ajuda pra comida, sacô?!           

Alício, isso não vai...

Cala a boca, Gi! Deixa que eu sei onde me meto. Olha, o negócio é bem fácil. A Gi fala, você pede e o mulequin aqui ô, só faz cara de fome. Beleza?! Sim, não vai logo na grana, pede um leite... uma fralda... espia o que tem na farmácia e mete a cara.

Os três se moviam vagarosamente tal qual bois que se lançam ao matadouro. Quando Alício irrompe a miserável procissão profana para mais um de seus “toques”.

Ei! Ei! Outra coisa, você Maxsuel, faz como a Gi... Usa o nome de Deus, a maioria das pessoas acha que “Ele” ‘é’ vocês. Aponta pra cima e depois na direção da tríade patuleia.

E o almoço, hein?!

Num fode, Gi...


Conto escrito por
Arthur Vieira

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima Eliane Rodrigues
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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